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terça-feira, fevereiro 07, 2023

A vida depois da morte do cinema

A Árvore da Vida (2011), ou a condição humana do cinema

O cinema está a morrer, ferido por muitas formas de mercantilismo? Talvez, mas os filmes sobrevivem — este texto foi publicado no Diário de Notícias (22 janeiro).

Que aconteceu no cinema ao longo da segunda década do século XXI? Continuando a sua tradição de organizar as memórias cinéfilas por décadas, a editora Taschen lançou recentemente o volume 100 Movies of the 2010s. A série de livros, sempre com coordenação de Jürgen Müller, chega, assim, ao décimo título, completando o balanço de cem anos de filmes a partir dos anos 20 do século passado (a publicação não seguiu a ordem cronológica, tendo começado, em 2001, com o volume dedicado aos anos 90).
Como acontece face a qualquer lista, é sempre possível fazer um inventário dos títulos que faltam — entenda-se: dos títulos que “alguém” entende que faltam, na certeza de que esse “alguém” não possui a razão de uma lei inquestionável. Por mim, então, atrevo-me a perguntar como é possível compreender as dinâmicas dos anos evocados (2011-2020) sem citar, pelo menos, um filme de Jean-Luc Godard, a começar pela prodigiosa experiência com o 3D que é Adeus à Linguagem. Ou que sentido faz evocar “modernices” pretensiosas como A Lagosta, de Yorgos Lantimos, ao mesmo tempo que verificamos que entre os ausentes estão autores da dimensão de Pedro Costa, Pablo Larraín ou Steven Spielberg?
Enfim, não deitemos fora a cinefilia com a água das listas e sublinhemos o essencial: 100 Movies of the 2010s é um guia estimulante para reavaliarmos a pluralidade de um tempo de produção em que, dos criadores aos espectadores, conscientemente ou não, todos fomos (e continuamos a ser) protagonistas de uma avalanche de mudanças.
A conjuntura pode resumir-se através da dicotomia, tão dramática quanto sugestiva, que todos passámos a conhecer. A saber: a coexistência, nem sempre pacífica, entre o circuito tradicional das salas e as alternativas de consumo caseiro — a década ficou marcada, precisamente, pelas convulsões dessa coexistência.
Assim se escreve numa breve, mas muito concisa, apresentação: “Mesmo antes de os habituais intervalos entre o lançamento nas salas e posteriores formas de distribuição se terem tornado ainda mais pequenos, os filmes viram-se muitas vezes reduzidos à condição de mero “conteúdo”, para serem vistos através de um click em ecrãs coloridos.” Daí a angustiada interrogação: “Será que tudo o que resta do cinema é o culto da celebridade, os blockbusters e os efeitos visuais fabricados por computador?”
Apesar de tudo isso (ou através disso tudo), a resposta é negativa. Entenda-se: o que resta do cinema possui a energia positiva inerente a qualquer crise artística, mesmo quando, como é o caso, contaminada por muitos valores predominantemente industriais e comerciais. Se quisermos adoptar a ironia de uma célebre frase de Godard, cada um de nós pode mesmo dizer: “Aguardo a morte do cinema com optimismo.” Sem esquecer que, também no cinema e nas suas histórias, não há axiomas mágicos nem definitivos — a frase, convém lembrar, pertence a uma resposta dada a um inquérito sobre o futuro do cinema francês, organizado pelos Cahiers du Cinéma em… 1965.
Os filmes resistem. Eis a certeza que não podemos nem devemos banalizar, mesmo quando reconhecemos que, face à nossa fraqueza educacional, as gerações mais novas foram (e continuam a ser) massacradas pela ideologia de um marketing transnacional que reduz a percepção do cinema a uma acumulação pueril de proezas técnicas. Mais do que isso: o cinema é frequentemente apresentado — e, por consequência, vivido — como uma coleção mais ou menos espectacular de “eventos” sustentados por gigantescas promoções, não uma paisagem de narrativas. O que, bem entendido, define uma concepção mercantil das artes que afecta muito mais do que o cinema — grande questão política (e para os protagonistas da cena política).
Aquilo que resiste nos filmes começa (ou acaba) por ser um insubstituível princípio ético: o valor humano das narrativas, ou seja, o valor narrativo das personagens. O exemplo está na capa de 100 Movies of the 2010s: aí encontramos a imagem manipulada, mas belíssima, de Joaquin Phoenix no filme Joker (2019), de Todd Phillips — demasiado humanos, actor e personagem transcendem as fronteiras do próprio factor humano, afirmando-se como entidades que só existem no cinema, pelo cinema, através do cinema.
Afinal de contas, por aqui passam títulos tão especiais como A Árvore da Vida (2011), de Terrence Malick, Amor (2012), de Michael Haneke, Chama-me pelo Teu Nome (2017), de Luca Guadagnino, Linha Fantasma (2017), de Paul Thomas Anderson, ou Mank (2020), de David Fincher. Através do génio de tais filmes, diluem-se as fronteiras geográficas e as diferenças entre os respectivos modos de difusão.
Sem esquecer Era uma vez em Hollywood (2019), de Quentin Tarantino, filme que, no prefácio, Jürgen Müller e Philipp Bühler elegem como símbolo das certezas e ambiguidades de uma década em que o cinema, mais do que nunca, se viu compelido a reavaliar os seus modos de ser e viver, talvez morrer. Vale a pena citá-los: “A verdade do cinema é artificial. Tem que ser criada. E ainda assim, se aceitarmos a motivação paradoxal que determina o filme, então o cinema acaba por estabelecer uma conexão íntima com as nossas vidas porque as nossas vidas já são um filme.”

sexta-feira, agosto 20, 2021

Quentin Tarantino
— era uma vez o cinema

Margot Robbie no papel de Sharon Tate,
ou o cinema para lá da morte

Ao tratar Sharon Tate como personagem de Era uma Vez em Hollywood, Quentin Tarantino libertou a sua memória do estatuto de vítima este texto foi publicado no Diário de Notícias (18 julho).

Quentin Tarantino é um genuíno cinéfilo: alguém que filma a partir de memórias precisas da história do cinema, não para as congelar numa nostalgia complacente, antes revendo-as e reinventando-as como coisa do presente. O seu filme de 2019, Era uma Vez em Hollywood, constitui um exemplo modelar de tal atitude.
Aí revisitamos o ano de 1969, nos cenários da “fábrica de sonhos” da Califórnia, reconvertidos pela emergência de novos protagonistas ligados ao poder crescente da televisão. As personagens interpretadas por Leonardo Di Caprio e Brad Pitt são sintomas dessa conjuntura: figuras de um novo tempo em que persiste a herança da idade de ouro de Hollywood, mesmo se já não parece possível refazer o seu poder mitológico.
Ilustrando a elaborada consciência crítica das raízes estéticas e simbólicas do seu trabalho, Tarantino acaba de lançar uma “novelização” do seu filme, adoptando o formato de bolso e o visual dos tradicionais romances policiais (“pulp fiction”). O livro Once Upon a Time in Hollywood (HarperCollins) surgiu, assim, como expressão de uma ancestral relação de amor — entre a narrativa cinematográfica e o desejo literário da escrita.
Tarantino tem dado vários entrevistas sobre esta estreia como romancista, afinal um prolongamento do seu trabalho como escritor de argumentos: foi, aliás, como argumentista que já ganhou dois Oscars, com Pulp Fiction (1994) e Django Libertado (2012). Há dias, no programa “The Jess Cagle Show” da rádio SiriusXM, falou das memórias de Sharon Tate (1943-1969) e do seu tratamento enquanto personagem de Era uma Vez em Hollywood.
Mesmo não conhecendo o filme, o leitor saberá que Sharon Tate, na altura casada com Roman Polanski, foi assassinada a 9 de agosto de 1969 pelo gang da Família Manson. E, sobretudo para quem não conhece o filme, creio que é essencial não revelar como é que a personagem de Tate, interpretada por Margot Robbie, surge encenada por Tarantino…
Gostaria apenas de citar algumas palavras cristalinas de Tarantino à Sirius XM, depois de evocar a sua deslumbrada descoberta da actriz na comédia policial The Wrecking Crew/Um Perigo em Cada Curva, aliás citada em Era uma Vez em Hollywood (foi em 1968, tinha Tarantino cinco anos). Diz ele que “é horrível que ela tenho sido definida (apenas) através do seu assassinato”. E acrescenta que um dos aspectos de que se orgulha é o facto de, “depois do filme”, já não ser definida dessa maneira. Graças ao filme, e à composição de Margot Robbie, deixou de ser vista através do “estatuto de vítima” — é alguém “com significado” e não apenas uma “estatística”.
Poderemos recordar que, para muitos cinéfilos, em particular os jovens espectadores das décadas de 60/70, Tate nunca foi uma mera “estatística”, quanto mais não fosse por causa do seu protagonismo no popularíssimo Por Favor, Não Me Morda o Pescoço (1967), homenagem paródica de Polanski aos filmes de vampiros que, subtilmente, se vai transformando em fábula política. Mas as palavras de Tarantino não envolvem apenas a preservação dessas memórias.
De que se trata, então? Em boa verdade, creio que aquilo que está em jogo é o poder social e simbólico do cinema. Quando refere a alteração da percepção de Sharon Tate através do seu filme, Tarantino está a celebrar o cinema, não como um entretenimento abstracto, antes um evento específico através do qual a nossa visão do mundo — e, nessa medida, as formas concretas do nosso conhecimento — vive um processo de permanente transfiguração.
Não é secundária esta questão, sobretudo se nos lembrarmos que, nas últimas duas décadas, o triunfo económico e promocional dos super-heróis (com alguns filmes magníficos, não é isso que está em causa) consolidou uma imagem esquemática, profundamente redutora, da diversidade cinematográfica. Temos estado a desvalorizar a dimensão social do próprio cinema. “Social”, entenda-se, não é uma banal derivação das redes (ditas) sociais, muito menos a definição do cinema como um sermão sociológico. Ao evocar Sharon Tate através, e para lá, da sua morte, Tarantino celebra o cinema como coisa íntima do nosso olhar. Não há nada mais social.

terça-feira, agosto 20, 2019

Tarantino — entre 1969 e 2019


Com o novo filme de Quentin Tarantino, Era uma Vez em Hollywood, reencontramos o poder primitivo da fábula: ao revisitarmos o ano de 1969, somos levados a perguntar o que significa, para o nosso presente, a própria noção de cinefilia — este texto foi publicado no Diário de Notícias (17 Agosto).

O domínio do mercado cinematográfico pelos super-heróis da Marvel e DC Comics tem conseguido levar muitos espectadores jovens a acreditar numa mentira obscena: no cinema americano só se fabricariam objectos escapistas, adequados ao consumo ruidoso de pipocas.
Talvez por isso, na Net, em alguns espaços da imprensa internacional, deparamos com uma visão caricatural do novo filme de Quentin Tarantino, Era uma Vez em Hollywood, e em particular das suas memórias de 1969. Estaríamos perante uma colecção de piadas sobre um tempo de comédias grosseiras e “westerns” decadentes — Leonardo DiCaprio interpreta um actor de séries televisivas de cowboys —, apesar de tudo celebrando a idade de ouro de Hollywood...
Idade de ouro? Em nome da mais básica objectividade, importa recordar que a acção de Era uma Vez em Hollywood se situa numa trágica “terra de ninguém” da indústria audiovisual da Califórnia. Em finais da década de 60, a decomposição das estruturas tradicionais dos grandes estúdios, a par da concorrência brutal da televisão, gerava um espaço de profunda angústia criativa em que tudo ameaçava decompor-se, mesmo se é verdade que, pelo paradoxo inerente a qualquer crise, tudo parecia possível.
Não é por acaso que Tarantino elabora a sua prodigiosa teia narrativa a partir da figura de Sharon Tate, interpretada com terno mimetismo por Margot Robbie. Assassinada nesse ano pela seita de Charles Manson, Tate ficou, afinal, como dramática encarnação de um impossível retorno aos padrões de representação e glamour das estrelas clássicas.
1969 é mesmo um momento emblemático de desagregação ideológica do “western”, género que, como bem sabemos, se confundia com uma mitologia redentora da própria nação — e não serão necessárias grandes demonstrações sociológicas para reconhecer que tal desagregação não pode ser dissociada do desenvolvimento da guerra do Vietname.
Foi o ano de A Quadrilha Selvagem, de Sam Peckinpah, encenando a fronteira com o México como cenário da morte brutal, em sentido literal e figurado, dos padrões clássicos de heroísmo. Foi também o ano de Easy Rider, com Peter Fonda e Dennis Hopper, aventura “on the road” em que os novos cavaleiros, em motos reluzentes, deparavam com o vazio existencial que o próprio cartaz do filme identificava: “Um homem partiu à procura da América e não conseguiu encontrá-la em nenhum lugar...”
Simbólico entre todos os títulos de 1969, O Cowboy da Meia-Noite, de John Schlesinger, mimava um modelo tradicional de “western”, agora em gélidos cenários da grande metrópole nova-iorquina: Jon Voight é uma personagem anacrónica do mundo dos cowboys (vinha do Texas...) que, através do seu envolvimento com o vagabundo interpretado por Dustin Hoffman, descobre que o mito dera lugar aos rituais de uma teatralidade fúnebre.
Tarantino filma essa conjuntura com o carinho de um verdadeiro cinéfilo, capaz de reconhecer as contradições de um tempo em que, para o melhor e para o pior, se decidiu muito do futuro do cinema (porventura até aos dias de hoje). Através das muitas fachadas de salas que pontuam as imagens, surgem mesmo referências a títulos tão marginais e esquecidos como The Night They Raided Minsky’s, comédia muito amarga sobre os bastidores do teatro, assinada por William Friedkin (que quatro anos mais tarde realizaria O Exorcista); por involuntária, mas reveladora, ironia o seu título português foi Os Bons Velhos Tempos.
Nada disto envolve qualquer revivalismo. O cineasta de Pulp Fiction (1994) e Os Oito Odiados (2015) não reduz o passado a uma terra perdida nas brumas de uma nostalgia exangue. Daí que Era uma Vez em Hollywood envolva um tão especial desafio ao espectador: o regresso ao passado só adquire pleno sentido através da sua ambígua duplicação no presente. Será preciso sublinhar que a personagem de DiCaprio se distingue por uma imaculada amizade com o seu duplo (das cenas de acção), interpretado por Brad Pitt? O “era uma vez” do título significa isso mesmo: a fábula duplica a imaginação do presente. Se ainda tivermos imaginação e gosto de contar histórias.

sexta-feira, julho 19, 2019

Tarantino + Robbie + DiCaprio + Pitt

Não é todos os dias que o tempo televisivo é usado para, realmente, desenvolver uma conversa. Eis um belo exemplo: Harry Smith, da NBC, encontrou-se com Quentin Tarantino, Margot Robbie, Leonardo DiCaprio e Brad Pitt para falarem sobre Era uma Vez em Hollywood, o prodigioso filme de Tarantino que chega às salas dos EUA a 26 de Julho (Portugal: 15 de Agosto) — são 22 minutos televisivos que vale a pena conhecer, antecipando 161 minutos de grande cinema.

quarta-feira, maio 29, 2019

CANNES 2019 [18H]

JL
Junto à entrada da sala Debussy, uma personagem de smoking dá a conhecer o seu projecto cinéfilo: conseguir um convite para a sessão das 18h00 do filme de Quentin Tarantino. Além do smoking, identificação (de jornalista?) ao pescoço, fragmento de embalagem de cartão transformado em painel individual. Não é o folclore de Cannes — apenas o seu natural.

segunda-feira, maio 27, 2019

CANNES 2019 — Coreia do Sul & etc.

É uma estreia: a primeira Palma de Ouro do Festival de Cannes para a Coreia do Sul pertence a Parasite, de Bong Joon Ho. O júri presidido por Alejandro González Iñárritu deixou de fora os filmes de Quentin Tarantino e Terrence Malick — este texto foi publicado no Diário de Notícias (25 Maio).

Com o filme Parasite, a Coreia do Sul estreou-se a vencer o Festival de Cannes. Para a história da 72ª edição do Festival de Cannes, o júri presidido pelo mexicano Alejandro González Iñárritu talvez possa ser definido como um colectivo que tentou concretizar a quadratura do círculo — as suas escolhas são, em última instância, um reflexo das muitas diferenças que habitam a produção contemporânea.
Assim, a distinção máxima para o coreano Parasite, de Bong Joon Ho, consagrou um dos objectos mais originais que o certame apresentou: uma comédia social sobre uma família que, de modo inesperado e perturbante, se vai transfigurando em conto apocalíptico, pleno de ressonâncias simbólicas. Ao mesmo tempo, é bem provável que, daqui a algumas décadas, os estudiosos do cinema se perguntem o que aconteceu para que as proezas de Quentin Tarantino (Era uma Vez... em Hollywood) e Terrence Malick (A Hidden Life) tivessem ficado fora do palmarés.
A “invenção” de prémios que não estão previstos no quadro tradicional do palmarés é sempre sintomática de alguma indefinição, porventura algum mal estar. Daí o insólito da “menção especial” para It Must Be Heaven, de Elia Suleiman. Voltando a encenar a sua condição de palestiniano como uma espécie de exílio interior, para mais através de uma alegria profundamente burlesca, Suleiman assinou um dos títulos mais ricos e sugestivos do festival. Do meu ponto de vista, face a esta “compensação”, não havendo consenso para lhe atribuir um dos prémios principais, teria sido mais razoável deixá-lo fora do palmarés.
A distinção mais consensual terá sido a de Antonio Banderas, como melhor actor, pela sua magnífica interpretação em Dolor y Gloria, de Pedro Almodóvar. O mesmo não se poderá dizer do prémio de melhor actriz para Emily Beecham, em Little Joe, de Jessica Hausner: uma performance segura e competente, sem dúvida, mas que deixou de fora trabalhos incomparavelmente mais complexos, incluindo os de Valerie Pachner (A Hidden Life) ou Noémie Merlant e Adèle Haenel (ambas em Portrait de la Jeune Fille en Fleur).
Enfim, sublinhe-se o regresso de Luc e Jean-Pierre Dardenne ao palmarés, desta vez com o prémio de realização pelo seu admirável Le Jeune Ahmed, retrato íntimo de um jovem manipulado pelas ilusões do fundamentalismo religioso (recorde-se que os irmãos Dardenne já receberam várias distinções em Cannes, incluindo duas Palmas de Ouro).
Para a história, registe-se também a presença brasileira no palmarés com Bacurau, de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, título que recebeu o Prémio do Júri (ex-aequo com o francês Os Miseráveis, de Ladj Ly). Tendo em conta que outro título brasileiro, A Vida Invisível de Eurídice Gusmão, de Karim Aïnouz, já arrebatara o prémio principal da secção paralela “Un Certain Regard”, o mínimo que se pode dizer é que este foi um festival em que o Brasil marcou pontos importantes nos circuitos internacionais.
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CANNES / 2019 — PALMARÉS

PALMA DE OURO – PARASITE, de Bong Joon Ho (Coreia do Sul)

GRANDE PRÉMIO – ATLANTIQUE, de Mati Diop (França)

REALIZAÇÃO – LE JEUNE AHMED, de Luc e Jean-Pierre Dardenne (Bélgica)

ACTOR – Antonio Banderas, em DOLOR Y GLORIA, de Pedro Almodóvar (Espanha)

ACTRIZ – Emily Beecham, em LITTLE JOE, de Jessica Hausner (Áustria)

ARGUMENTO – PORTRAIT DE LA JEUNE FILLE EN FEU, de Céline Sciamma (França)

PRÉMIO DO JÚRI (ex-aequo) – LES MISÉRABLES, de Ladj Ly (França) e BACURAU, de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles (Brasil)
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CÂMARA DE OURO (primeiras obras) – NUESTRAS MADRES, de César Díaz (Guatemala)
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CURTAS-METRAGENS – LA DISTANCE ENTRE LE CIEL ET NOUS, de Vasilis Kekatos (Grécia); menção especial: MONSTRUO DIOS, de Agustina San Martín (Argentina)

Eurovisão + Cannes [FNAC]

Da nossa sessão de domingo na FNAC — em torno de dois festivais: Eurovisão + Cannes —, eis três dos videos que mostrámos. A saber:
— a canção Soldi, por Mahmood (concorrente pela Itália);
— um exemplo da actual produção musical holandesa: Mona Lisa, por De Staat;
— trailer de Era uma Vez... em Hollywood, de Quentin Tarantino [estreia portuguesa: 8 Agosto].





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* Próxima edição do SOUND+VISION Magazine:

"Madame X", isto é, Madonna

Madonna está de volta com Madame X, o seu 14º álbum de estúdio, gerado em Lisboa — assinalamos a nova edição, revisitando outras personagens e momentos emblemáticos da carreira da Material Girl.

* FNAC, Chiado, 14 Junho (18h30)

quarta-feira, maio 22, 2019

CANNES 2019 [Tarantino]

Estes quatro posters são de alguns dos westerns spaghetti (e não só) protagonizados por Rick Dalton ao longo da década de 60. Mais exactamente, Rick Dalton é a personagem de Leonardo DiCaprio no fabuloso Once Upon a Time... in Hollywood, de Quentin Tarantino. Ou como as memórias do cinema são revisitadas através de um dispositivo que desafia a lineariedade do tempo e a autonomia dos géneros — fabuloso de fábula, entenda-se: era uma vez...

terça-feira, maio 14, 2019

A violência já não é o que era

Cartaz de Tyler Stout, concebido para o 20º aniversário de Cães Danados
Um quarto de século depois de Pulp Fiction, Quentin Tarantino vai ser, por certo, um dos nomes mais falados da 72ª edição do Festival de Cannes; entretanto, pelo caminho, fomos perdendo os nossos valores cinéfilos — este texto foi publicado no Diário de Notícias (11 Maio).

Quentin Tarantino parte para a 72ª edição do Festival de Cannes (14-25 Maio) com um curioso trunfo simbólico. Não uma “vantagem”, entenda-se — ninguém duvida da seriedade da competição do maior certame de cinema do mundo. Antes um suplemento mitológico que provém de uma rima que muitas notícias têm sublinhado.
Assim, o seu novo filme, Era uma Vez em Hollywood, evocando os bastidores da indústria cinematográfica da Califórnia no ano de 1969, será projectado na gigantesca sala Lumière do Palácio dos Festivais exactamente 25 anos depois de lá ter sido revelado o seu Pulp Fiction. Para vencer? Se a história se repetir, será a segunda Palma de Ouro para o cineasta americano que tinha sido descoberto, também em Cannes, dois anos antes, com Cães Danados.
Mas há um outro lado da questão. A saga “cannoise” de Tarantino é bem reveladora da progressiva decomposição do espaço cinéfilo. Entenda-se: do esvaziamento de um imaginário enraizado num gosto genuíno pelos filmes, pela capacidade de contarem histórias susceptíveis de desafiar as nossas crenças de espectadores e, no limite, as certezas da nossa ancestral humanidade.
Explico-me. Cães Danados passara em Cannes, em 1992, num ambiente de contraditória euforia. Por um lado, todos ou quase todos reconheceram o talento de um novo cineasta (Tarantino tinha 29 anos) capaz de convocar as matrizes clássicas, em particular do “thriller”, para construir uma narrativa de um fulgor visceralmente trágico. Ao mesmo tempo, por outro lado, circulava um misto de reticência estética e suspeita moral: não seria Cães Danados um filme “demasiado” violento?
O fenómeno repetiu-se com Pulp Fiction. Podemos agradecer a Clint Eastwood, presidente do júri oficial, a serenidade necessária e suficiente para reconhecer ao trabalho de Tarantino a energia de um verdadeiro criador: a Palma de Ouro de 1994 distinguiu um objecto capaz de celebrar o cinema como um processo de permanente reinvenção narrativa que não exclui, antes integra, um sistemático labor com as memórias de outros filmes — eis a definição mais básica de cinefilia.
A meu ver, o debate sobre o “excesso” de violência não passava da expressão de um ideologia pueril, alimentada por um profundo desconhecimento das especificidades das linguagens e, em particular, daquilo que faz uma imagem ser... uma imagem. Na base dessa ideologia está uma ideia grosseira: a de que as imagens não são entidades que integram a nossa relação com o mundo, mas apenas “objectos” automaticamente suspeitos, separáveis do resto desse mesmo mundo, que importa vigiar. Porquê? Porque não temos vontade nem pensamento e podemos ser impelidos a imitar o que nelas vemos.
Curiosa menorização da arte de ser espectador. Para tal perspectiva “purificadora”, é sempre suspeito o facto de um cineasta como Tarantino — no limite, qualquer artista — trabalhar sobre o negrume, por vezes vermelho como o sangue, que habita a nossa contraditória condição humana.
Paradoxalmente ou não, confesso a minha fraqueza. Tenho algumas saudades dos confrontos, mesmo os mais simplistas e improdutivos, gerados por filmes como Pulp Fiction. Existia uma rede social (nada a ver com o artifício da actual expressão “rede social”) de comunicações, encontros e diálogos em que se falava, realmente, de cinema. Agora, desde que uma qualquer produção da Marvel, distribuída pela Disney, consiga alguns milhões de dólares de receitas, o espaço social é automaticamente invadido por celebrações de tesouraria, prevalecendo a sensação bizarra de que os fãs dos super-heróis são todos accionistas de algum dos estúdios envolvidos.
O que assim acontece está muito para além da banal inventariação dos filmes como “melhores” ou “piores”. Estamos a assistir a uma desqualificação sistemática da própria vocação popular do cinema, substituída pelas celebrações virtuais de uma cultura imberbe que funciona em regime “clubista”: descobrir um filme passou a ser encarado como um ritual de fidelidade, mais ou menos ruidoso, a um universo pré-formatado. Nenhuma surpresa, apenas a gratificação menor de integrar um colectivo sem pátria.
Através da recusa de enfrentar a figuração trágica da violência (Tarantino, justamente, é um autor trágico), passando pela crescente infantilização do consumo do cinema, fomos alienando o gosto pela complexidade das imagens: fixamo-las, trocamo-las e apagamo-las através dos nossos telemóveis, cedendo à ilusão de que estamos a construir um admirável novo mundo visual.

quarta-feira, março 20, 2019

Quentin Tarantino, opus 9

Margot Robbie no papel de Sharon Tate. Leonardo DiCaprio como actor de produções não demasiado gloriosas e Brad Pitt interpretando o seu duplo. Dito de outro modo: Hollywood, 1969. É esse o contexto do muito aguardado Once Upon a Time in... Hollywood, nona longa-metragem de Quentin Tarantino que não será arriscado antecipar como um dos trunfos da programação do 72º Festival de Cannes (14-25 Maio) — a hipótese é adiantada por The Hollywood Reporter, mesmo se não há confirmação oficial da Sony Pictures. A estreia portuguesa está anunciada para 8 de Agosto — entretanto, aí está o primeiro trailer.

segunda-feira, março 04, 2019

China, século XXI

Jia Zhang-ke é um dos cineastas chineses que temos podido acompanhar no mercado português: o seu novo filme encena a relação amorosa de uma mulher com um chefe mafioso — este texto foi publicado no Diário de Notícias (1 Março).

Jia Zhang-ke
Ensina a sabedoria tradicional que não devemos confundir a árvore com a floresta... Numa inversão mais ou menos perversa, podemos defender a ideia de que a visão global da floresta não esgota o conhecimento particular de cada árvore...
As metáforas nem sempre nos ajudam a esclarecer as ideias, sobretudo quando o que está em jogo é a gigantesca China, neste caso a nossa metafórica floresta. Todos sabemos, o assunto está mesmo na rotina dos noticiários, que a China vive um processo de vertiginoso crescimento que, segundo alguns observadores, visa a reconquista dos seus poderes imperiais, agora face aos EUA de Donald Trump (se o leitor se interessa pela complexidade que tudo isso envolver, recomendo vivamente o mais recente livro de Bernard-Henri Lévy, L’Empire et les Cinq Rois).
Enfim, é de cinema que falo e dessas árvores metafóricas que são os cidadãos chineses. Dito de outro modo: há alguns talentosos cineastas da China que, com paixão e método, continuam a interessar-se pelos homens e mulheres do seu país, encenando-os em histórias tocantes, quase sempre de grande vibração dramática.
Jia Zhang-ke, nascido em 1970 em Fenyang (província de Shanxi), é um desses cineastas e dos que, felizmente, tem estado bem representado no mercado português. O seu filme mais recente, As Cinzas Brancas Mais Puras (apresentado na competição de Cannes/2018), chegou agora às nossas salas.
Por bizarro preconceito (favorável ou desfavorável, em qualquer caso preconceito), supõem-se muitas vezes que as histórias cinematográficas chinesas são variações “obrigatórias” sobre a pompa e circunstância que está condensada em O Último Imperador, esse filme lendário de Bernardo Bertolucci consagrado nos Oscars de 1988. Belo filme, sem dúvida, aliás realizado por um... italiano. Mas não é essa a questão.
Observe-se As Cinzas Brancas Mais Puras. Que encontramos aqui? Antes do mais, uma intriga de amor e morte, protagonizada pela frágil Zhao Qiao (Zhao Tao, musa do realizador e também sua mulher na vida real) e esse homem inquietante que é Guo Bin (Liao Fan) — ele é um chefe mafioso, ela está apaixonada por ele. Num confronto urbano que ameaça descambar em extrema violência, ela dispara um tiro para o ar de modo a defender o seu amante... Acaba por ser detida, passa vários anos na prisão e regressa acreditando que pode refazer a sua relação...


Em boa verdade, estamos muito longe de qualquer visão mítica ou esotérica dos cenários chinesas: As Cinzas Brancas Mais Puras é um “thriller” de perturbante intensidade emocional, assombrado por uma permanente ameaça de morte. E se queremos sugerir algum paralelismo temático e estilístico, a primeira hipótese em que pensamos será, muito provavelmente, a do americano Quentin Tarantino.
Entenda-se: não precisamos de procurar referências para caucionar o trabalho de Jia Zhang-ke. Até porque os filmes que dele conhecemos nascem sempre de um profundo amor pelas gentes do seu país, a começar por Plataforma (2000), espantoso retrato das convulsões da Revolução Cutural maoísta vistas a partir da experiência de um grupo teatral que, num inusitado desafio (cultural!), se transfigura em banda rock.
Podemos mesmo dizer que o novo filme de Jia Zhang-ke se filia nessa grande tradição narrativa que é o melodrama, tradição que sempre ligou simbolicamente o Ocidente e o Oriente. Lembrando também o que tantas vezes se esquece ou simplifica: o espírito melodramático não nasce de qualquer exaltação abstracta do amor. Bem pelo contrário: tal como acontece em As Cinzas Brancas Mais Puras, é através do realismo mais cru que partimos à descoberta da possibilidade de o amor acontecer. Ou morrer.

sábado, janeiro 19, 2019

História(s) de violência

O tema da violência ao longo da história do cinema é pretexto para um ciclo no Espaço Nimas (até 29 Janeiro): de clássicos como Scarface, o Homem da Cicatriz ou O Silêncio dos Inocentes até raridades como Cães Danados — este texto foi publicado no Diário de Notícias (17 Janeiro).

Convenhamos que não será possível fazer uma história das formas de representação da violência em cinema através de oito filmes... Seja como for, o ciclo “Uma história da violência (no cinema)”, além de ser apresentado com um subtítulo prudente (“alguns exemplos”), possui a virtude de contrariar o consumo passivo, automático e “pipoqueiro”. E se é verdade que os ciclos temáticos estão a regressar a alguns sectores da exibição cinematográfica, tanto melhor!
Os filmes a passar no Espaço Nimas (sempre às 18h15) são suficientemente díspares para que evitemos qualquer generalização temática, descritiva ou interpretativa. O mais recente da selecção — O Capitão (2017), de Robert Schwentke — lembra-nos mesmo que não há uma definição absoluta, muito menos determinista, da violência: afinal de contas, Schwentke filma um soldado alemão que, no final da guerra, se transfigura (violentamente) porque começa a usar uma farda de... capitão.
Alguns títulos transportam o rótulo mítico de “clássicos”, até porque se inscreveram no imaginário popular como exercícios de confronto com as manifestações mais radicais, porventura mais irracionais, da violência. São eles: Massacre no Texas (1974), de Tobe Hooper, O Silêncio dos Inocentes (1991), de Jonathan Demme, e Cães Danados (1992), de Quentin Tarantino.


No centro do ciclo surge Saló ou os 120 Dias de Sodoma (1975), título final de Pier Paolo Pasolini, deslocando a obra do Marquês de Sade para o contexto da República de Salò, na zona controlada pelos fascistas nos anos finais da Segunda Guerra Mundial. Filme difícil de enfrentar e compreender (falo por mim, antes do mais), trata-se de um dos exemplos mais elaborados, e também mais perturbantes, da capacidade do cinema nos fazer sentir como o exercício do poder envolve sempre alguma forma de hierarquização dos corpos — a sua herança política e pedagógica permanece essencial.
A produção mais antiga a apresentar é Scarface, o Homem da Cicatriz (1932), com Paul Muni sob a direcção de Howard Hawks, por certo um dos momentos mais emblemáticos na história dos gangsters em cinema. Há ainda Brincadeiras Perigosas (1997), de Michael Haneke, autor cuja obra é toda ela um conjunto de variações sobre o(s) desejo(s) de violência, sobrando o momento mais insólito: Cães de Palha (1971), de Sam Peckinpah.
Porquê insólito? Porque, infelizmente, o nome de Peckinpah quase foi rasurado da actualidade cinematográfica — nos canais de televisão, por exemplo, os seus filmes são presença rara. Encenando o sofrimento de um casal (Dustin Hoffman/Susan George) assediado por um bando de malfeitores na sua casa de campo, Cães de Palha talvez não seja um dos melhores filmes de Peckinpah. Não possui, pelo menos, o requinte formal de Os Pistoleiros da Noite (1962) ou A Quadrilha Selvagem (1969). Ainda assim, pode ser uma excelente via de entrada no universo de um dos autores que, ao longo das décadas de 60/70, mais longe levou a releitura crítica do imaginário (bélico) dos EUA — também ele merece um ciclo.

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PROGRAMA

17 JAN
FUNNY GAMES / BRINCADEIRAS PERIGOSAS, Michael Haneke (1997)
18 JAN
RESERVOIR DOGS / CÃES DANADOS, Quentin Tarantino (1992)
21 JAN
DER HAUPTMAN / O CAPITÃO, Robert Schwentke (2017)
22 JAN
SALÓ OU OS 120 DIAS DE SODOMA, Pier Paolo Pasolini (1975)
24 JAN
SCARFACE, O HOMEM DA CICATRIZ, Howard Hawks (1932)
25 JAN
THE TEXAS CHAIN SAW MASSACRE / MASSACRE NO TEXAS, Tobe Hooper (1974)
28 JAN
STRAW DOGS / CÃES DE PALHA, Sam Peckinpah (1971)
29 JAN
THE SILENCE OF THE LAMBS / O SILÊNCIO DOS INOCENTES, Jonathan Demme (1991)
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NIMAS / Diariamente às 18h15 / Bilhetes: 6€ / Classificação: M/18

domingo, novembro 04, 2018

Michael Moore vs. Donald Trump

Michael Moore continua a desmontar as atribulações da vida política americana: com Fahrenheit 11/9 ele visa, antes do mais, a figura de Donald Trump, mas o seu filme é também uma contundente análise do sistema bipartidário dos EUA — este texto foi publicado nos Diário de Notícias (1 Novembro), com o título 'Donald Trump na mira de Michael Moore — ou o cinema face às atribulações da política'.

Michael Moore contra Donald Trump? É verdade: mesmo o espectador que mantenha uma relação distante com a actualidade cinematográfica sabe o que o novo filme de Moore, Fahrenheit 11/9, é um libelo de rara contundência moral e ideológica contra o 45º Presidente dos EUA.
E não há dúvida que Moore não deixa pedra sobre pedra. O tom do seu discurso envolve um misto de surpresa e revolta, ambas unidas no mesmo radicalismo emocional. No pré-genérico do filme, somos confrontados com a memória das horas de contagem da votação de 8 de Novembro de 2016, quando tudo e todos, a começar pelos canais de televisão americanos, apontavam para a vitória esmagadora de Hillary Clinton... até que, ao princípio da madrugada, os números começaram a apontar em sentido contrário... O que leva a voz off do filme — o próprio Moore — a perguntar: “Que raio aconteceu?” (isto numa tradução muito pudica).
Fahrenheit 11/9 joga todos os trunfos que tem para jogar. A começar, claro, pela sugestão simbólica que o título contém, “invertendo” esse outro título, Fahrenheit 9/11, do filme sobre os atentados de 11 de Setembro de 2001, que valeu a Moore a Palma de Ouro do Festival de Cannes de 2004 (atribuída por um júri presidido por Quentin Tarantino).


O que está em jogo é de novo, em última instância, a identidade americana. Ou melhor: a decomposição dessa identidade e dos seus valores através da acção de um líder que, na sua função presidencial, de acordo com a visão política de Moore, tem atraído e, de alguma maneira, reforçado as mais inquietantes componentes fascizantes que se encontram no tecido social americano.


Daí que o filme se organize segundo uma lógica que faz lembrar os noticiários televisivos. Desde logo, porque há nele uma aposta decisiva no valor informativo das imagens (e sons) de muitos materiais informativos. Em algumas cenas, Moore trabalha sobre dados que todos conhecemos (incluindo os ataques de Trump aos jornalistas que ele aponta como criadores de “fake news”); noutras, confronta-nos com documentos surpreendentes, por vezes francamente perturbantes (por exemplo, as imagens registadas em telemóveis de agressões individuais contra latinos e afro-americanos em transportes públicos ou em plena rua).
Acontece que Moore está longe de visar apenas a figura de Trump, integrando na sua argumentação cinematográfica e política diversas referências a eventos que, na sua perspectiva, reflectem as perversões do sistema de governação do país. A mais impressionante dessas referências (ocupando, aliás, algumas dezenas de minutos no interior do filme) será a da crise da água em Flint, a cidade do estado do Michigan em que o próprio realizador nasceu (a 23 de Abril de 1954).
Para Moore, os efeitos de uma mudança na distribuição da água em Flint, ocorrida em 2014 — envolvendo mais de 100 mil habitantes numa dramática crise de saúde pública — são sinais inequívocos de um sistema em que o bem estar da colectividade está a ser regularmente ameaçado por interesses de um sector restrito de empresas e indivíduos. Esse foi, aliás, um tema transversal de um debate em que, há poucas semanas, nos estúdios da MSNBC, o próprio Moore participou.


Tudo isto nos chega através de uma narrativa cinematográfica de grande agilidade visual (e sonora), sustentada por um invulgar trabalho de montagem. A nossa relação com a visão de Moore pode ir, naturalmente, da concordância absoluta à mais firme rejeição — ele é, aliás, o primeiro a saber que não há nada de universal, muito menos de ecuménico, na sua análise. Seja como for, catorze anos depois de Fahrenheit 9/11, o novo Fahrenheit 11/9 é a exuberante confirmação de um modelo de construção narrativa que sabe organizar-se a partir de uma investigação eminentemente jornalística, sem nunca abdicar de uma elaborada, complexa e motivadora leitura do mundo à nossa volta. Dito de outro modo: Moore não se refugia em generalizações abstractas, correndo o risco ético e estético de dizer “eu”.
Também por isso, importa sublinhar uma dimensão essencial de Fahrenheit 11/9 que, infelizmente, tem sido esquecida ou iludida em muitas formas de divulgação do filme (a começar, entenda-se, pela própria campanha promocional do filme organizada a partir de imagens polarizadas na figura de Trump).


De facto, considerar que, melhor ou pior, o filme se “esgota” num libelo anti-Trump será passar ao lado da complexidade da sua argumentação. Através das atribulações protagonizadas ou geradas por Donald Trump aquilo que está em jogo é a discussão crítica da vida política nos EUA e, no limite, o funcionamento de um sistema “afunilado” numa bipartidarização (supostamente) sem alternativas.
Recorde-se, por isso, algo de muito básico: Fahrenheit 11/9 acaba por ser um objecto igualmente severo face a muitas acções e formas de intervenção política, quer de republicanos, quer de democratas. Encerrar Moore no rótulo do “ponto de vista democrata” sobre Trump será não reconhecer a pluralidade interior da sua argumentação (exemplo: a severidade com que ele avalia o comportamento de Barack Obama durante a crise da água em Flint).
Por tudo isso, estamos perante um filme genuinamente político. E não apenas porque fala das atribulações da vida política. Antes porque nos leva a reflectir sobre a cena política para além das anedotas ou diatribes que, não poucas vezes, dominam a paisagem mediática. Em jogo está a relação entre eleitores e dirigentes e, em última análise, a forma de pertença de cada cidadão a um colectivo. Não precisamos de concordar ponto por ponto com Moore para admirar o valor humanista de tal atitude criativa.