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segunda-feira, agosto 26, 2024

No palco com Ingmar Bergman

Erland Josephson e Lena Olin em Depois do Ensaio: o teatro no coração do cinema

Até 2 de outubro, continua a decorrer em várias cidades do país o ciclo de 31 filmes de Ingmar Bergman. Depois do Ensaio (1984) é um dos títulos que nunca estreara no circuito comercial, uma obra-prima minimalista sobre o fascínio do palco — este texto foi publicado no Diário de Notícias (8 agosto).

Sendo Ingmar Bergman (1918-2007) um nome tão universal, eis uma informação que pode parecer absurda, mas que não deixa de ser totalmente objectiva: no ciclo de 31 dos seus filmes que a Leopardo Filmes continua a apresentar em várias cidades do país, há quatro títulos inéditos no circuito comercial das salas de cinema. Cidade Portuária (1948) e A Sede (1949) surgiram logo no começo do ciclo, a 14 de julho; a partir de hoje começam a ser exibidos Mulheres que Esperam (1952) e Depois do Ensaio (1984) — o ciclo prolonga-se até 2 de outubro.
Embora Mulheres que Esperam seja um belo exemplo do modo como o cineasta sueco retratou as singularidades do feminino (20 anos antes de Lágrimas e Suspiros, vale a pena recordar), é o fascinante Depois do Ensaio que justifica um destaque muito especial. A começar por uma razão, de uma só vez artística e industrial, tantas vezes esquecida: o filme ilustra a disponibilidade de Bergman, a par de outros mestres europeus (Rossellini, Godard, Antonioni) para trabalhar no território televisivo. Estamos, de facto, perante uma produção que, na origem, é um telefilme, como tal tendo sido difundido, há cerca de 40 anos, nos mais diversos canais europeus, incluindo a RTP1.
Poderá perguntar-se: qual a diferença? Em boa verdade, nenhuma, a não ser no financiamento e no enquadramento prático da produção — o que, desde logo, é bem revelador de um conceito criativo de televisão em que as rotinas das novelas e seus derivados (ou, mais recentemente, os horrores da Reality TV) não são dominantes. Na prática, para Bergman, tratava-se de regressar a uma temática transversal a todo o seu trabalho — o lugar do teatro nos circuitos labirínticos das relações humanas —, agora num registo de imaculado minimalismo.
Tudo acontece entre o encenador Henrik Vogler e a actriz Anna Egerman, personagens interpretadas, respectivamente, por Erland Josephson, um dos actores da “família” bergmaniana, e Lena Olin, no papel que a projectou na cena internacional (surgiria, quatro anos mais tarde, em A Insustentável Leveza do Ser, sob a direcção de Philip Kaufman). O título é para ser tomado à letra: depois de um ensaio de Um Sonho, de August Strindberg, Vogler deixa-se ficar no palco, num misto de reflexão e sonolência, até que aparece Anna, à procura de uma pulseira que perdeu…
O que acontece durante pouco mais de uma hora (tudo é minimalista, até mesmo a duração do filme) decorre de uma visão em que Bergman relança o teatro, ou melhor, a teatralidade como componente vital do seu cinema. Não exactamente porque o cenário de Depois do Ensaio seja um palco; antes porque as personagens e o espectador oscilam entre as evidências do dia a dia e os sinais de um mundo alternativo de que a palavra (teatral, justamente) é um espelho perverso — descubra-se a breve participação de Ingrid Thulin. Ou como diz Vogler: “Os mortos não estão mortos, os vivos parecem fantasmas.”

domingo, agosto 25, 2024

António Tavares
— contos para lidar com o enigma do tempo

"O tempo passou, como passam as nuvens..." (Morangos Silvestres, 1957, de Ingmar Bergman)

Vencedor do Prémio Leya de 2015, António Tavares publica agora Mesmo Não Indo, o Tempo Vai, uma antologia de narrativas breves: são histórias apostadas em percorrer e questionar, ora com gravidade, ora com humor, os “enredos” do nosso quotidiano — este texto foi publicado no Diário de Notícias (7 agosto).

Eis uma expressão que tem tanto de retrato intuitivo como de hipótese filosófica: Mesmo Não Indo, o Tempo Vai. É esse o título da nova antologia de contos de António Tavares (ed. Dom Quixote, julho 2024). São 19 histórias que, em qualquer caso, se apresentam, não como “contos”, antes com a designação de “ficções” — um pormenor que não será uma mera questão de nomenclatura.
Na verdade, a agressividade da mais medíocre cultura televisiva tende a associar a noção de “conto” ao estilo e à mensagem de alguns exercícios (ditos) documentais cujo único objectivo é a redução de qualquer actividade humana a alguma forma de pitoresco. Que pitoresco é esse? Pois bem, a celebração das personagens e suas acções como sintomas mais ou menos anedóticos, por vezes grosseiramente caricaturais, da vida de todos os dias. Dos profissionais da política às vedetas do futebol, evita-se a complexidade dos factos, memórias e ideias, para que todos sejam tratados como agentes de uma futilidade sem responsabilidade — é esse o modelo corrente de pitoresco, vendido como inquestionável realismo.
Ora, justamente, a escrita de António Tavares não é realista. Ou melhor, não o é nesse sentido vulgar e superficial. O que, entenda-se, não significa que estas prosas sejam estranhas aos contrastes de uma realidade carregada de índices realistas (passe a redundância). Porquê? Porque somos levados a compreender que a realidade é tanto aquilo que conhecemos em paralelo com as personagens, como tudo o que se lhes escapa através das suas acções.
“A rapariga disse que dependia do enredo” — assim começa a ficção que se intitula, justamente, “O enredo”. O que não quer dizer que se siga uma “explicação” daquilo que a “rapariga” disse. Logo a seguir, sem mudar de parágrafo, escreve o narrador: “Nesse momento, o motorista do autocarro fez uma travagem brusca e um sujeito idoso, agarrado a um varão, na zona do meio da viatura, voou até aos meus pés e caíu pesado sobre eles.” Pobre narrador, a realidade não o deixa descansar: “Era sempre este azar: se seguia na minha paz, algo haveria de cair-me em cima dos pés.”
Com metódica subtileza, as histórias vão adquirindo uma ambiguidade a que, à falta de melhor, poderemos chamar “cinematográfica”, de tal modo as evidências das imagens que nos são propostas atraem as mais inusitadas variações. Vale a pena citar o modo como o narrador, em pose cinéfila, faz o balanço dos seus fantasmas: “Todos os dias eu tinha estes sonhos ou visões como uma película de um filme a passar numa máquina de projecção, enquanto a fita ia mudando de uma bobine para outra. Às vezes, no sonho também havia plateia, como acontece nas execuções na América, gente enternecida por assistir à morte, à passagem de um ser vivo para outro que já está a deixar de ser.”

Realismo & absurdo

A nitidez da morte envolve a interrogação do tempo. Um pouco à maneira de alguns filmes clássicos, por exemplo da primeira fase existencial de Ingmar Bergman (fará sentido chamar-lhe existencialista?). Sentimos que o tempo baralha as evidências de quase tudo o que acontece. Na singularidade de uma nova imagem, na eclosão de uma frase imprevista, através de uma palavra por decifrar, o tempo parece decompor-se numa coleção de detritos que encerra o enigma do nosso ser. Enigma implacável. Assim se diz em “O velho que ouvia o neto ao piano”, um pouco antes de se esclarecer a motivação do título do livro: “O tempo passou, como passam as nuvens, os viajantes pelas estradas e lugares, a meninice e a juventude.”
O autor cultiva uma frondosa diversidade, cuja gravidade não exclui momentos contagiantes de humor. Logo a abrir, por exemplo, em “O homem que levava as chamas do inferno a arder dentro de si”, o título é para ser tomado à letra. Em “As asas das borboletas são de cores vivas”, o lirismo inaugural antecipa a reviravolta de um verdadeiro conto policial. Enfim, em “As botas”, o pitoresco, neste caso genuíno, do calçado do sargento em cenário de guerra irá desembocar na geometria de uma insólita parábola moral.
Dir-se-ia que, ao lidar com os sobressaltos do quotidiano, António Tavares quis experimentar todas as formas narrativas que as próprias palavras pudessem atrair ou sustentar — o estilo evoca, aliás, O Coro dos Defuntos, que lhe valeu o prémio Leya de 2015. Era um romance organizado em capítulos breves, outras tantas ficções sobre um universo também paradoxal: os dados realistas atraem sempre os deliciosos sobressaltos do absurdo.

quinta-feira, março 14, 2024

* Imagens e sons da Suécia
— SOUND + VISION Magazine, FNAC [HOJE, 16 março]

Foi há 50 anos que os ABBA venceram o Festival Eurovisão da Canção com Waterloo. Regressamos à FNAC para assinalar a efeméride, revisitando memórias musicais e cinematográficas da Suécia.

* FNAC / Chiado (16 março, 17h00).

quinta-feira, janeiro 26, 2023

Lídia Jorge e a noite da escrita

Morangos Silvestres (1957): o cinema perante a crueldade do tempo

Vivemos numa cultura mediática que recusa lidar com a dimensão humana da morte. Mas há romances (e filmes) que resistem — este texto foi publicado no Diário de Notícias (15 janeiro).

Ao ler o novo e belíssimo romance de Lídia Jorge, Misericórdia (ed. D. Quixote, outubro de 2022), revi a memória de alguns momentos emblemáticos de filmes centrados no envelhecimento dos seus protagonistas, em particular com assinatura de Ingmar Bergman. Ao dizê-lo assim, como uma espécie de causa e efeito, sei que estou a atrair um velho lugar-comum do qual gostaria de me demarcar.
Não se trata de sugerir que a escrita literária é intrinsecamente limitada, necessitando de uma confirmação “visual” para cumprir os seus desígnios. Além do mais, não me reconheço, nem de longe nem de perto, na noção corrente, poderosíssima, que define a relação com um livro como uma antologia de imagens “motivadas” pela própria escrita — quando alguém celebra o facto de, ao ler um romance, lhe “parecer que estava a ver” aquilo a que o autor se refere, ainda que respeitando as sensações de cada um, sou levado a pensar que o leitor terá visto muita coisa… mas não viu a própria escrita.
Lídia Jorge
Que acontece, então, nesta narrativa na primeira pessoa de uma personagem que se chama Maria Alberta Nunes Amado, habitante de um lar que ostenta o nome, inevitavelmente ambíguo, de Hotel Paraíso? A resposta, sem nada de esotérico, poderá ser: desde o primeiro momento, somos confrontados com as marcas muito concretas da noite. Que noite é essa? As primeiras linhas do primeiro capítulo (com um título programático: “Atlas”) são exemplares. Cito-as (pág. 11): “Aqui onde me encontro, mesmo em tempo de Primavera, quando os dias costumam ser do tamanho das noites, a noite é sempre mais longa que o dia. Sabendo disso, é precisamente a meio da noite que a noite vem ter comigo, dirigindo-me perguntas inimagináveis como se fosse aquele gato pardo, muito antigo, que se chamava esfinge.”
Eis a claridade que nasce da escrita: a noite dentro da noite é a morte. E o que dela, na noite que a transporta, desafia o ser humano na sua condição de ser da linguagem — e através da linguagem. Como dizer a morte? Que palavras acrescentar à sua proximidade? Maria Alberta reconhece o impasse (pág. 60): “Desde há algum tempo que os meus pensamentos são muitos, mas as minhas letras são poucas. Sobre o papel, junto só as palavras essenciais como costumam fazer as crianças quando ainda não sabem construir frases e, no meu caso, daí resultam escritos a que dificilmente alguém, além de mim própria, poderá atribuir um sentido.”
Esta irredutibilidade individual afasta-nos de outros dois lugares-comuns, ambos muito na moda, que tendem a conferir um inusitado poder mediático a quem (realmente ou supostamente) os protagoniza: primeiro, Misericórdia não é um livro sobre o “tema” do envelhecimento, como se a inventariação de um “tema”, seja ele qual for, fosse o destino obrigatório de qualquer narrativa; segundo, Misericórdia não é uma ilustração mais ou menos redentora do “feminino”, como se uma narrativa centrada numa mulher não pudesse deixar de ser uma exaltação de “todas” as mulheres, como se o universo das mulheres fosse um colectivo político em que qualquer uma delas está (narrativamente) condenada a ser um “símbolo” de todas as outras — seria uma estupidez aplicar tal noção a uma personagem masculina, por que razão se transforma em obrigação panfletária quando é uma mulher que está em cena?
De que nos fala, então, esta narradora? Maria Alberta reconhece-se perante o indizível da morte (pág. 119): “A vida é um arco, tem o seu começo e o seu fim, inicia-se num berço, faz o seu voo ascendente, e a partir de certa altura a curva desce até nos entregarmos à terra, de novo dentro de uma caixa de madeira que em nada difere de um berço.” Aliás, com uma secura que repele a piedade obscena com que, no circo mediático, são tantas vezes tratados os mais velhos: “Recuso o lamento, repudio a contemplação da doença e condeno o prolongamento da vida para além dos seus limites.”
Retomo, por isso, a hipótese “bergmaniana”. Assim como a escrita de Lídia Jorge lida com o indizível — materializando a distância imaterial em que reconhecemos a “figura” da morte —, assim também em filmes como Morangos Silvestres (1957) deparamos com a contradição criativa do gesto cinematográfico. A saber: enfrentar a morte como “objecto” que resiste a ser filmado.
Logo na abertura de Morangos Silvestres, reveja-se o sonho da personagem do velho interpretado por Victor Sjöström. Os pressentimentos da morte, incluindo uma carruagem funerária sem condutor, adquirem a sua expressão mais intensa num relógio sem ponteiros — este é um tempo que perdeu as medidas do tempo. Ou como diz Maria Alberta (pág. 203): “As horas são a melhor manobra que se inventou de modo a desafiar a ausência de fim. Invenção humana para retalhar o tempo e dar-lhe o sentido que porventura não tem.”
Vivemos um tempo dominado por determinismos mediáticos em que muitos protagonistas, homens e mulheres, velhos e novos, parecem condenados a ilustrar uma condição de vida, espectacular e festiva, que não reconhece a verdade da própria morte — verdade humana, demasiado humana, ainda que não seja possível escrevê-la ou filmá-la. O romance de Lídia Jorge resiste a tudo isso, espelhando a cruel prisão do tempo. E também o seu carácter insondável. O que não impede que a angústia do empreendimento envolva uma irredutível alegria. Alegria de quem? De ninguém em particular, apenas da própria escrita.

domingo, fevereiro 13, 2022

O valor esquecido da intimidade

Jessica Chastain e Oscar Isaac:
face ao olho clínico da câmara de filmar

Na série Scenes from a Marriage reencontramos o valor dos olhares, palavras e silêncios que não são uma mercadoria audiovisual — este texto foi publicado no Diário de Notícias (23 janeiro).

Numa carta enviada a Jean-Paul Sartre, a 19 de janeiro de 1940, Simone de Beauvoir (Lettres à Sartre, ed. Gallimard, 1990) tece algumas considerações sobre o processo de escrita de O Ser e o Nada (que Sartre publicaria em 1943), derivando depois para diversos apontamentos sobre o amor. “Amo-vos”, escreve ela, evitando como sempre o tratamento por “tu” (“Je vous aime”). Por contraste ou ironia, logo a seguir refere também que uma vez, em Saint-Germain-les-Belles, Sartre lhe disse que ela é alguém que, no amor, “não se dá”. Entrecortada por várias considerações domésticas, surge então esta frase radical, de um radicalismo trágico contaminado por uma metódica promessa de riso: “Acontece que o amor não é uma simbiose, mas sobre isso havemos de verter algumas lágrimas noutra altura”.
Há, talvez, outra maneira de dizer isto: a intimidade que o amor deseja, promete ou imagina não é um dado adquirido, muito menos uma garantia enunciada ou, por assim dizer, promulgada pelo contrato (afectivo “ou” legal, eventualmente afectivo “e” legal) que une dois humanos. Da intimidade apenas sabemos que exprime a intensidade microscópica do presente, sem passado que a caucione ou futuro que garanta a sua repetição. Ou como escreve Roland Barthes nos seus Fragmentos de um Discurso Amoroso (Edições 70, Lisboa, 1981, tradução de Isabel Gonçalves): “Passada a primeira confissão, ‘eu amo-te’ deixa de ter significado; nada mais faz do que retomar de modo enigmático, tão vazia parece, a mensagem antiga (que talvez não tenha sido veiculada por estas palavras). Repito-o sem qualquer relevância: sai da linguagem, divaga, onde?”
Reencontro a questão labiríntica da intimidade na prodigiosa mini-série de Hagai Levi, Scenes from a Marriage (à semelhança de outras plataformas de streaming, a HBO ignora a possibilidade de traduzir os seus títulos para português). A inspiração provém de Cenas da Vida Conjugal, mini-série e filme que Ingmar Bergman realizou em 1973. Em termos esquemáticos, assistimos às convulsões do casamento de Jonathan e Mira — interpretados por Oscar Isaac e Jessica Chastain —, num processo de ruptura e reconciliação, amor e ódio, que parece não ter fim. E tanto mais quanto tal processo, ainda que com inevitáveis ressonâncias familiares, profissionais e sociais, só pode ser vivido como “coisa” íntima, alheia a qualquer exterior.
No domínio social (no “nosso” domínio social, entenda-se), a intimidade desapareceu como valor — e quase ninguém encara ou problematiza semelhante desastre existencial. Por um lado, é verdade, a sua simples definição apela a um certo “afastamento” de tudo o que é social. Ao mesmo tempo, no plano social, precisamente, a intimidade surge diariamente reduzida a mercadoria obscena do Big Brother televisivo, fenómeno que, perante a demissão argumentativa das chamadas entidades culturais e políticas, nos massacra com a noção de que a intimidade é “aquilo”. Sintoma triste: tem pertencido apenas a alguns registos de comédia a pedagogia de nos mostrarem a mediocridade do Big Brother — penso, concretamente, no programa de rádio Portugalex (Antena1), nos videos de Nilton (Instagram) e em quadros recentes de Herman José e dos actores do programa Cá por Casa (RTP1).
Ora, aquilo que regressa em Scenes from a Marriage, com uma contundência dramática plena de pudor, é a irredutibilidade de qualquer espaço íntimo. Não se trata de caracterizar o território daquele casal como algo que vai ser “revelado”, dir-se-ia “posto a nu” pelo facto de alguém o encenar e filmar. Afinal, quem pode garantir que o humano se encerra numa fronteira nítida ou estável? Certamente não por acaso, a realização pontua todos os episódios com elementos de mise en scène que nos recordam que estamos perante actores a representar uma ficção (de alguma maneira retomando o efeito de estranheza que Bergman aplicava, “entrevistando” os seus actores, Erland Josephson e Liv Ullmann).
Aquilo que regressa é o carácter intratável, infinitamente vulnerável, de qualquer intimidade. Na certeza de que a sua verdade não é partilhável — qualquer abertura a qualquer exterior anula a sua dinâmica, isto é, decompõe a dimensão íntima, mesmo quando tal dimensão possa ser habitada pela mais cruel ilusão comunicacional.
Nesta perspectiva, Scenes from a Marriage é também um belíssimo testemunho do valor antigo (“bergmaniano”, se quiserem) do trabalho dos actores. Jessica Chastain e Oscar Isaac são, por certo, dois dos mais fabulosos actores contemporâneos — recorde-se esse filme admirável que é Um Ano Muito Violento (2014), de J. C. Chandor, em que interpretavam um casal bem diferente, mas também, de alguma maneira, a experimentar a fragilidade da sua intimidade. Reencontramo-los, aqui, na corda bamba emocional de um trabalho em que, do mais breve movimento do olhar à hesitação gutural de uma palavra, tudo é importante, tudo pertence à maravilhosa instabilidade de ser, de estar vivo. E tudo decorre desse acontecimento sem equivalente que consiste em arriscar tal instabilidade, os seus gestos e também os seus silêncios, face ao olho clínico de uma câmara de filmar.

quarta-feira, dezembro 09, 2020

Só o cinema
— a propósito de um ciclo na Cinemateca

Ingmar Bergman e Jörgen Lindström
durante a rodagem de O Silêncio

Ao longo do mês de Novembro, a Cinemateca Portuguesa apresentou um ciclo a que foi dada a sugestiva designação de 'Só o cinema'. Objectivo: celebrar o carácter irredutível da linguagem cinematográfica: "Quando o cinema vem com um sopro de autenticidade que transcende as outras artes, como Bazin disse: “é preciso ler em filigrana a evidência da graça”, pois os signos de Deus não são sempre sobrenaturais. E só a arte cinematográfica tem o misterioso dom de nos remeter de forma única e direta para o reino secreto das emoções, com uma evidência tão pura, tão espontânea quanto inédita. Inédita pois é sem precedente nas artes: como só no cinema acontece, o que só o cinema transmite: Só o cinema!"
Em tempos de desvalorização do pensamento sobre o cinema, tratava-se (e trata-se) de resistir à mediatização pueril dos filmes: O Silêncio, de Ingmar Bergman, pode servir de pretexto e motivação para discutir o que está em jogo — este texto foi publicado no Diário de Notícias (21 Novembro). 

Há dias, ao ler um texto crítico sobre um filme, deparei com esta frase na respectiva caixa de comentários: “Detestei este filme!” Sem mais. E também sem assinatura, a não ser uma sigla indecifrável. Dito de outro modo: o trabalho de quem escreveu alguns milhares de caracteres a partir de um filme de modo a elaborar um pensamento (muito ou pouco consistente, não é isso que está em causa) pode ser “desmontado” através de impropérios deste teor, breves e… sem pensamento. Mais do que isso: há uma ingenuidade democrática que tolera a publicação desta aliança entre mediocridade e irresponsabilidade. 
Caí em mim, depressa dando conta da inutilidade da minha indignação face a tão microscópico episódio. De facto, no território da “comunicação social” (bela expressão, por sinal) a discussão sobre o grau de responsabilidade exigível a leitores e espectadores tem sido abafada pelo triunfo do liberalismo pueril das “redes sociais”. E tentar suscitar essa discussão apenas a partir de exemplos como o citado não passa de um gesto de vulgar quixotismo. 
A questão que, creio, vale a pena relançar é a da especificidade do próprio cinema. A saber: não apenas o valor atribuído ao filme A, B ou C, mas a consciência daquilo que o faz ser… um filme. O desenvolvimento da cultura do futebol, por exemplo, faz com que a maioria dos cidadãos tenha ideias razoavelmente informadas sobre a especificidade do jogo — dos sobressaltos do fora de jogo ao conceito de dois ou três defesas centrais, o saber futebolístico democratizou-se. Seria interessante que a profundidade de campo nos filmes de Orson Welles ou a utilização dos planos subjectivos por Alfred Hitchcock pudessem ser tratadas com a mesma abrangência social (leia-se: cultural). 
Creio que é a celebração dessa especificidade que serve de tema aglutinador ao belo ciclo que a Cinemateca Portuguesa apresentou ao longo do mês de novembro: 'Só o cinema' — a Cinemateca roubou o título a Jean-Luc Godard e eu roubo-o à Cinemateca. Que está em jogo? Pois bem, o conhecimento daquilo que faz que um filme exista como objecto que não se confunde com qualquer outro (mesmo quando, por exemplo, adapta “fielmente” um determinado romance). Ou como se escreve no texto de apresentação: “a pura linguagem cinematográfica”. 
Entenda-se: a pureza dessa linguagem é ambígua, já que provém de uma infinita diversidade. Envolve as emoções ascéticas de Robert Bresson em Peregrinação Exemplar (1966), a convivência com o impensável da morte em Frankenstein Criou uma Mulher (1966), de Terence Fisher, ou o confronto com os fantasmas da história de Portugal em O Quinto Império - Ontem como Hoje (2004), de Manoel de Oliveira (que encerrou o ciclo, dia 30). 
Exemplo extremo e fascinante dessa vibração sem nome que “só o cinema” sabe identificar e percorrer poderá ser O Silêncio (1963), de Ingmar Bergman. Nele encontramos um trio algo bizarro: duas irmãs, Anna (Gunnel Lindblom) e Ester (Ingrid Thulin) em cruel confronto afectivo, e o filho de Anna, Johan (Jörgen Lindström), vagueando pelos corredores do hotel em que se hospedam. Viajam no mais indecifrável dos cenários: um país fictício, algures na Europa central, cuja língua não dominam, numa conjuntura de guerra iminente. 
Como recorda o programa da Cinemateca, este é o “silêncio” de Deus perante os medos, perplexidades e ânsias dos pobres humanos, enredados em confrontos sem razão nem racionalidade. Ora, justamente, o cinema revela-se capaz de colocar em cena a longínqua abstração de tudo isso através de uma paradoxal sensação de proximidade (rima com carnalidade) que constitui, afinal, uma das fundamentais matérias do universo criativo de Bergman. 
Vivemos um tempo de crescente indiferença pelas nuances de tudo isso. A aceleração informativa que nos arrasta é estranha à simples possibilidade de pararmos para percorrer os labirintos bergmanianos. Daí também o desafio cultural que, aqui e agora, impõe a defesa intransigente das salas escuras. Não por ignorância ou indiferença pelas maravilhas do cinema em “streaming”. Apenas porque essas salas nos ensinaram a escutar o silêncio.

domingo, abril 14, 2019

Bibi Andersson (1935 - 2019)

PERSONA (1966)
Notável intérprete, figura indissociável do universo de Ingmar Bergman, a actriz sueca Bibi Andersson faleceu no dia 14 de Abril, em Estocolmo, cerca de dez anos depois de um AVC que condicionou toda a sua existência, incapacitando-a de falar — contava 83 anos.
Foi ela a personagem de Alma, a enfermeira que tratava de Elisabet Vogler (Liv Ullmann), a actriz que perdia o uso da fala em Persona/A Máscara (1966), título central na obra bergmaniana e, mais do que isso, um dos símbolos modelares da modernidade cinematográfica. Sob a direcção de Bergman, surgiu ainda em Sorrisos de uma Noite de Verão (1955), O Sétimo Selo (1957), Morangos Silvestres (1957), No Limiar da Vida (1958), O Rosto (1958), O Olho do Diabo (1960), A Força do Sexo Fraco (1964), Paixão (1969) e O Amante (1971), este em língua inglesa, contracenando com Elliott Gould; integrou também o elenco da mini-série televisiva Cenas da Vida Conjugal (1973), exibida, numa versão mais curta, nas salas de cinema. Com uma importante carreira no teatro, foi dirigida por Bergman em Quem Tem Medo de Virginia Woolf?, em 1962.
Capaz de expor as nuances mais enigmáticas do desejo e do pensamento, Andersson teve também algumas participações exemplares em filmes como A Ilha (1966), de Alf Sjöberg, Minha Irmã, Meu Amor (1966), de Vilgot Sjöman, A Carta do Kremlin (1970), de John Huston, ou Quinteto (1978), de Robert Altman; surgiu num pequeno papel em A Festa de Babette (1987), do dinamarquês Gabriel Axel, porventura o seu trabalho com maior difusão internacional, graças à respectiva consagração com o Oscar de melhor filme estrangeiro. Publicou a autobiografia Ett ögonblick em 1966.

>>> Com Victor Sjöström — final de Morangos Silvestres.

>>> A narrativa de uma experiência sexual de Alma em Persona.

>>> Cena de O Amante.

>>> Obituário no New York Times.
>>> Bibi Andersson no site oficial de Ingmar Bergman.
>>> Artigo de Peter Cowie na Criterion Collection.

sábado, abril 13, 2019

Prémio FIAF para Godard

Jean-Luc Godard foi distinguido com o Prémio FIAF 2019, em cerimónia realizada na Cinemateca Suíça, no dia 11 de Abril, no âmbito do 75º Congresso da entidade que congrega as cinematecas de todo o mundo — a Federação Internacional dos Arquivos de Filmes foi criada em 1938 (integrando a Cinemateca Portuguesa desde 1956).
Este prémio é atribuído desde 2001, tendo sido Martin Scorsese o primeiro galardoado. Com ele, a FIAF consagra personalidades que, através da sua criatividade, contribuem para a evolução da história do cinema e, em particular, para a defesa e preservação do respectivo património — entre essas personalidades incluem-se Ingmar Bergman (2003), Mike Leigh (2005), Hou Hsiao-hsien (2006), Peter Bogdanovich (2007), Agnès Varda (2013), Jean-Pierre e Luc Dardenne (2016) e Christopher Nolan (2017).
No discurso de apresentação do premiado, o presidente da FIAF, Frédéric Maire, também director da Cinemateca Suíça, sublinhou o facto de o labor godardiano estar "profundamente enraizado num vasto conhecimento da história do cinema e nos seus anos como crítico de cinema nos Cahiers du Cinéma", citando também o seu empenho na evolução das técnicas cinematográficas, "das câmaras ligeiras até ao mais sofisticado equipamento digital" — o génio do seu pensamento sobre e sob o cinema atravessa toda uma obra imensa, tendo encontrado uma fascinante condensação em História(s) do Cinema (1989-1999), ensaio sobre uma linguagem ameaçada cujo prolongamento mais recente é o prodigioso O Livro de Imagem (2018).
Maire lembrou ainda a longa amizade entre Godard e Freddy Buache, crítico e historiador de cinema, além de lendário director da Cinemateca Suíça (entre 1951 e 1996) — presente na cerimónia, Buache foi eleito em 2018 membro honorário da FIAF.

Jean-Luc Godard
à entrada da Cinemateca Suíça (11-04-19)

© Carine Roth / Cinémathèque suisse
>>> Prémio FIAF 2019 — registo da cerimónia de 11 de Abril de 2019.

sexta-feira, novembro 30, 2018

Bergman, sempre Bergman

Algumas histórias apressadas (?) do cinema definem a relação dos cineastas com a televisão como um fenómeno ligado à proliferação "moderna" de... séries. Pois bem, entre os possíveis contra-exemplos, vale a pena lembrar o fabuloso Ritual, de Ingmar Bergman, um dos seus grandes filmes sobre o teatro e a morte que é, aliás, um telefilme — e tem data de 1969!
O título de abertura de um novo ciclo de reposições de Bergman será, precisamente, Ritual [video]. Permitindo rever e reavaliar os prodigiosos contrastes da obra do mestre sueco, em especial durante as décadas de 60/70, o ciclo começa em Lisboa, a 6 de Dezembro, seguindo-se extensões no Porto, Braga, Coimbra e Setúbal [Medeia Filmes]; no final, a 27 de Dezembro, será estreado o documentário Bergman – A Year in a Life, de Jane Magnusson.

sexta-feira, outubro 05, 2018

For ever Bergman

Liv Ullmann
PERSONA (1966)
Estreado na secção de clássicos do Festival de Cannes, o documentário de Margarethe von Trotta sobre Ingmar Bergman chega agora ao mercado cinematográfico português — este texto foi publicado no Diário de Notícias (3 Outubro), com o título 'Redescobrindo o génio de Bergman'.

As efemérides são também uma moda. Não que o calendário as desminta. O certo é que os automatismos da globalização funcionam, não poucas vezes, como banal divertimento “social”, com links a gerar links... e nada a acontecer.
Seja como for, convenhamos que a evocação do centenário de Ingmar Bergman (nasceu a 14 de Julho de 1918, tendo falecido a 30 de Julho de 2007) nos tem proporcionado alguns momentos capazes de nos ajudar a redescobrir um mestre cuja actualidade — temática, estética e simbólica — está longe de ser banal. Até porque, importa também não esquecer, graças a algumas importantes reposições (incluindo as respectivas edições em DVD), o nome de Bergman tem continuado a ser presença viva no mercado português. Estreado em Cannes, na secção de clássicos do festival, aí está Ingmar Bergman – A Vida e Obra do Génio, de Margarethe von Trotta, precisamente uma das abordagens documentais enquadradas pelo centenário do cineasta.
Estamos perante o trabalho de uma discípula. Assumindo a obra de Bergman como uma influência central na sua trajectória artística, a realizadora alemã (revelada em 1975, com A Honra Perdida de Katharina Blum) propõe uma deambulação organizada através de diálogos com personalidades que conheceram Bergman ou nele reconhecem uma referência incontornável do cinema moderno.
É discutível que a “pessoalização” do inquérito seja enriquecedora para o filme: as componentes da obra de Margarethe von Trotta, eventualmente ligadas ao labor de Bergman, acabam por ser tratadas de forma ligeira e, em boa verdade, incompreensível. Algo de semelhante ocorre na conversa com o realizador Ruben Östlund (O Quadrado), reflectindo aquilo que serão as clivagens que a herança bergmaniana continua a gerar nas pessoas que fazem cinema na Suécia, mas sem dizer nada de minimamente consistente sobre os próprios filmes de Bergman.
Seja como for, há um saldo positivo que importa destacar. Através de testemunhos como os de Liv Ullmann, rosto emblemático de títulos como Persona (1966) ou Paixão (1969), ou do cineasta francês Olivier Assayas, evocando o impacto de Bergman nos autores da Nova Vaga francesa, deparamos com o labirinto fascinante, porventura indecifrável, de um criador que, de uma vez por todas, importa libertar de lugares-comuns “intelectuais” ou “populares”. Isto sem esquecer algumas preciosas imagens de arquivo que nos mostram Bergman nos bastidores das rodagens ou durante as suas encenações teatrais — em última instância, o que aqui se evoca e celebra é o trabalho.

sábado, julho 14, 2018

Ingmar Bergman — 100 anos

De que falamos quando falamos de Ingmar Bergman? Um século depois do seu nascimento — a 14 de Julho de 1918, em Uppsala, na Suécia — os filmes que nos legou continuam a acompanhar os nossos silêncios mais radicais — este texto foi publicado no Diário de Notícias (8 Julho), com o título 'O inferno pode esperar'.

Quando fez aquela que viria a ser a sua derradeira longa-metragem, Saraband, Ingmar Bergman (1918-2007) mostrou-se fascinado pela possibilidade de utilizar câmaras digitais verdadeiramente revolucionárias. Estava-se em 2003 e tais câmaras eram uma excepção, não sendo fácil antecipar, da produção à difusão, a globalização do digital que viria a consumar-se em poucos anos. Bergman usou um conjunto de quatro câmaras HDTV - Thomson 6000, três para rodagem, uma de reserva (na altura, em todo o mundo apenas existiam cinco).
A produção resultava da associação de entidades televisivas de Alemanha, Áustria, Dinamarca, Finlândia, Itália, Noruega e Suécia (com a Sveriges Television, de Estocolmo, a coordenar o projecto). Em boa verdade, Bergman tomou tais câmaras “à letra”, quer dizer, como objectos específicos de televisão. De tal modo que recusou liminarmente a possibilidade de o filme ser convertido em cópias de película, de modo a garantir a sua difusão nas salas escuras.
Liv Ullmann, protagonista do filme ao lado de Erland Josephson, deu a conhecer tal exigência quando apresentou Saraband, em Outubro de 2004, no Festival de Nova Iorque: sim, era verdade que Bergman autorizara a projecção em sala, mas apenas a partir de cópias digitais — de tal modo que Saraband acabou por ser um título pioneiro na reconversão tecnológica do mercado, sendo exibido em alguns países (incluindo Portugal) através de projecção digital.
Na biografia de um autor como Bergman, na altura um veterano de 86 anos, tal episódio pode parecer um preciosismo técnico. Mas talvez não seja bem assim. Agora que comemoramos o centenário do seu nascimento (a 14 de Julho de 1918, em Uppsala, cerca de 70 quilómetros a norte de Estocolmo), vale a pena lembrar que o seu envolvimento com a televisão foi muito mais importante do que algum fundamentalismo cinéfilo nos pode levar a supor.
A par de Roberto Rossellini, em Itália, ou Jean-Luc Godard, em França, Bergman foi um dos primeiros a encarar a televisão como espaço de produção que importava explorar, por certo em permanente articulação com as linguagens cinematográficas, mas sem recusar as suas especificidades. Afinal, Da Vida das Marionetas, habitualmente encarado como o seu derradeiro trabalho de cinema e para cinema, era uma produção de raiz televisiva e foi rodado em 1980 (durante o seu exílio alemão, motivado por problemas com o fisco sueco). A partir daí, a obra de Bergman é toda ela televisiva, incluindo títulos tão famosos como Fanny e Alexandre (1982) ou Depois do Ensaio (1984), a par de outros menos conhecidos como Na Presença de um Palhaço (1997), prodigioso retrato de um criminoso que utiliza os cenários do hospital psiquiátrico em que está internado para encenar um... filme.
Este simples inventário de títulos envolve uma verdade programática, de uma só vez cultural e política, que o ruído social das efemérides tende a escamotear. A saber: Bergman foi um dos que acreditou na televisão como instrumento de trabalho, logo veículo de expressão, em que a noção de popular poderia não ser cúmplice dos horrores do populismo.
O reencontro das personagens de Saraband — Marianne (Ullmann) e Johan (Josephson) —, três décadas depois do seu divórcio corresponde, afinal, a uma reescrita simbólica da obra de Bergman: Marianne e Johan, interpretados pelos mesmos actores, eram as figuras centrais de Cenas da Vida Conjugal, um filme de 1973 que começou por ser uma... mini-série televisiva.
Dir-se-ia que Bergman organizou a sua visão do mundo através de uma demanda em ziguezague, de uma só vez técnico e artístico. De tal modo que podemos reler a sua obra como uma reescrita obsessiva de algumas inquietações primordiais: de O Sétimo Selo (1957) a Paixão (1969), é a nitidez indizível da morte que se consolida nos gestos humanos; de O Silêncio (1963) a Lágrimas e Suspiros (1972), compreendemos que o corpo que habitamos é também uma prisão de que a divindade não nos quis libertar; enfim, de Luz de Inverno (1963) a O Ovo da Serpente (1977), descobrimos que a divindade se ausentou perante a possibilidade do inferno. Ainda assim, filmar suspende essa possibilidade.

>>> Cena de abertura de Persona/A Máscara (1966).


>>> Cena de abertura de Lágrimas e Suspiros (1972).


>>> Curta-metragem sobre Ingmar Bergman, produção de The Criterion Collection.


>>> Ingmar Bergman em Senses of Cinema.
>>> 17 clássicos de Ingmar Bergman no Sound + Vision.

domingo, junho 24, 2018

* Bergman + Bernstein
— SOUND + VISION Magazine, FNAC [hoje]


Cinema e música cruzam-se nas celebrações do centenário de Ingmar Bergman e Leonard Bernstein, ambos nascidos em 1918 — propomos uma viagem, com imagens e sons, pelas suas obras fascinantes.

* FNAC (Chiado) — hoje, 24 Junho, 18h30

quarta-feira, março 30, 2016

4DX — a morte do cinema

O novo sistema de projecção 4DX promete muitos "abanões" [texto de Rui Pedro Tendinha no DN]. Reabre-se, assim, um novo tempo de interrogação da especificidade do cinema — este texto foi publicado no Diário de Notícias (25 Março), com o título 'A morte do cinema'.

O que é o 4DX? Digamos que neste momento de muitas especulações, discutir se será “bom” ou “mau” é coisa secundária. Posso até admitir que a sua implementação venha a contribuir para contrariar os prejuízos gerados pela pirataria, convidando muitos espectadores a regressar às salas.
A questão de fundo não é essa. Afinal de contas, desde as três dimensões (na década de 50) até às superproduções em 70 mm (na década seguinte), sabemos que a história do cinema se faz também do aparecimento cíclico de “formatos” apostados em contrariar a errância dos mais diversos sectores do público. O que importa discutir é a afirmação de uma ideologia cultural que, em última instância, ignora as especificidades cinematográficas, limitando-se a reproduzir e ampliar os valores do discurso comercial que sustenta o negócio dos videojogos.
Promover a ideia de que precisamos de maior “imersão” nos filmes é, por certo inadvertidamente, minimizar o génio com que George Méliès, Ingmar Bergman ou David Cronenberg nos souberam envolver (e, de facto, imergir) nas mais contrastadas convulsões visuais ou sonoras. Mesmo desejando o maior sucesso financeiro a este novo mercado, importa separar as águas e lembrar o mais simples: a crónica da morte anunciada do cinema faz-se também, assim, através do metódico apagamento do cinema como história e património.
Está a nascer outra “coisa”, porventura interessantíssima, mas para a qual importa inventar outro nome. Será que os espectadores de filmes já não procuram... filmes? Corremos mesmo o risco de, um dia destes, o liberalismo dominante surgir com uma sugestão para acrescentar alguns odores à sequência de Persona (1966) em que Bibbi Andersson narra a Liv Ullmann a orgia sexual em que se viu envolvida...

quinta-feira, junho 25, 2015

For Ever Bergman

A obra de Ingmar Bergman está de volta às salas portuguesas, através da reposição de seis filmes realizados entre 1950 e 1975 — este texto foi publicado no Diário de Notícias (20 Junho), com o título 'A angústia de Bergman com um tempero de humor'.

Haverá muito boa gente que, mesmo sem conhecer um único filme de Ingmar Bergman (1918-2007), não hesitará em classificá-lo como um símbolo universal da angústia humana. Afinal, é ou não verdade que, através de títulos como O Sétimo Selo (1957) ou A Máscara (1966), o mestre sueco retratou as zonas mais recônditas da alma humana, expondo a nossa busca desesperada de significados seguros para uma tão frágil existência?
É um retrato apressado e maniqueísta. Para o provar, bastará evocar uma produção de 1964 que, entre nós, recebeu o sugestivo título de A Força do Sexo Fraco [cartaz]. Tudo se passa algures na década de 20 (do século passado), num contexto mais ou menos reservado e paradisíaco: um palacete onde vive um famoso violoncelista, rodeado pelas suas musas; e há também um crítico musical que, embora empenhado em escrever uma biografia do artista, vai tentando que o músico interprete uma peça que ele próprio compôs... Dito de outro modo: Bergman dirigiu uma comédia, deliciosa e contagiante, marcada por uma elegância que sabe rir das suas próprias convenções — foi também o seu primeiro filme rodado em película a cores.
A Força do Sexo Fraco é, justamente, um dos seis títulos de Bergman que a distribuidora Leopardo Filmes vai repor em Lisboa (Espaço Nimas, com início na quinta feira, dia 25) e no Porto (Teatro Municipal Campo Alegre, a partir de 2 de Julho). A iniciativa prolonga um ciclo organizado em 2014, com 17 filmes de Bergman (entretanto editados em DVD), permitindo uma visão muito ampla de um autor que, afinal, em boa verdade, pode simbolizar a própria ideia de Cinema (com maiúscula, já agora).


Uma vez mais, importa sublinhar a diversidade da oferta. Não são, de facto, filmes que possamos condensar numa qualquer “temática” nem integrar numa “estética” unívoca. Um deles, Rumo à Felicidade (1950), corresponde mesmo a uma fase inicial de pesquisa de identidade artística, com Bergman a experimentar interessantes variações sobre modelos melodramáticos da época (a partir de dois jovens músicos, casados, que tocam na mesma orquestra).
Cronologicamente, segue-se O Rosto (1958), já com uma galeria de actores que identificamos como “bergmanianos”: Max von Sydow, Ingrid Thulin, Bibi Andersson e Erland Josephson. Será, talvez, a primeira sistematização de um tema que, de uma maneira ou de outra, irá assombrar toda a filmografia do autor: a partir das experiências de um grupo de actores, em meados do séc. XIX, acusados de práticas “espiritistas” nas suas performances, Bergman expõe a instabilidade das fronteiras entre o “teatro” e a “vida”. Há curiosas rimas entre este filme e Ritual (1969), também centrado numa “troupe” visada pela justiça, acusada de apresentar representações com elementos pornográficos.
O filme seguinte, A Fonte da Virgem (1960), envolve, por certo, o maior equívoco gerado em torno da obra de Bergman. Por um lado, trata-se de um objecto de delicada elaboração narrativa e simbólica, centrado na violação e morte de uma jovem em ambiente medieval; por outro lado, a parábola moral que o filme envolve, sublinhada pelas componentes da época, fez com que, durante muito tempo, Bergman fosse rotulado de autor de sagas “religiosas”. Paradoxalmente, a consagração de A Fonte da Virgem com o Oscar de melhor filme estrangeiro terá contribuído para a consolidação dessa visão redutora (Bergman receberia a mesma distinção com Em Busca da Verdade e Fanny e Alexandre, respectivamente de 1961 e 1982).
Segue-se Luz de Inverno (1963), título que, de alguma maneira, pode ajudar a corrigir aquela visão, uma vez que a questão religiosa reaparece, aqui, encenada através das dúvidas experimentadas por um padre interpretado pelo magnífico Gunnar Björnstrand. O filme, aliás, insere-se numa série de dramas existenciais, a preto e branco, prolongada com O Silêncio (1963), A Máscara (1966), A Hora do Lobo (1968) e Vergonha (1968), com o já citado A Força do Sexo Fraco a funcionar como a excepção que confirma a regra.
Enfim, terminamos com outra excepção, de novo a cores: A Flauta Mágica (1975) [cartaz] é um exuberante registo da ópera de Mozart, por certo sintomático do gosto de Bergman pelos artifícios do palco, mas também da sua disponibilidade criativa face à televisão. Embora estreado nas salas de cinema de muitos países (incluindo Portugal), trata-se de uma produção para o pequeno ecrã, bem distante de qualquer retórica televisiva — agora como há quarenta anos.

domingo, junho 14, 2015

Bergman x 17 (17)

FANNY E ALEXANDRE (1982)
Grande acontecimento em DVD, depois da exibição em Lisboa e Porto (e mais algumas cidades): a edição de 17 filmes de Ingmar Bergman (1918-2007), a maior parte em cópias restauradas — razões de sobra para rever algumas imagens emblemáticas da filmografia do mestre sueco.

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Depois das agruras do exílio, Fanny e Alexandre representou o regresso à Suécia. E, de alguma maneira, o regresso a algo ainda mais radical, porque mais primitivo: as idealizações, e também a crueldade, do universo infantil, por vezes em diálogo directo com a frieza pressentida da Morte — nesse aspecto, o making of do filme possui uma dimensão de insólito didactismo, uma vez que nos permite descobrir um realizador no labirinto dos seus fantasmas e também do seu prazer criativo. No fundo, através das atribulações da família Ekdahl, no começo do séc. XX, Bergman revia os seus temas e obsessões, para mais produzindo, sem preconceitos, um objecto que existe num duplo registo, como série de televisão e longa-metragem de cinema.

* Entretanto, a Leopardo Filmes anuncia, a partir de 25 de Junho, a reposição de mais seis títulos de Ingmar Bergman.

quinta-feira, junho 04, 2015

Bergman x 17 (16)

DA VIDA DAS MARIONETAS (1980)
Grande acontecimento em DVD, depois da exibição em Lisboa e Porto (e mais algumas cidades): a edição de 17 filmes de Ingmar Bergman (1918-2007), a maior parte em cópias restauradas — razões de sobra para rever algumas imagens emblemáticas da filmografia do mestre sueco.

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A imagem de um adulto com um pequeno urso de peluche explicita, se assim nos podemos exprimir, um link que a obra de Ingmar Bergman nunca deixou de colocar em cena. A saber: a presença, transparente ou fantasmática, da infância no mundo (des)organizado dos adultos. Da Vida das Marionetas, ainda uma obra de exílio, rodada na Alemanha (e para televisão), constitui uma das mais elaboradas materializações de tal temática — a ponto de o próprio Bergman, afinal contra a maioria das opiniões expressas no momento do lançamento do filme, o considerar um dos seus melhores filmes. Na origem da "história" está um casal de personagens que já tinha surgido em Cenas da Vida Conjugal (1973), desse modo reflectindo as variações obsessivas da escrita bergmaniana. Tal como nos dramas fulcrais do final da década de 60, desembocando em Paixão (1969), tudo passa pela tensão irresolúvel entre as aparências sociais e a crueza do desejo sexual — raras vezes Bergman foi tão preciso e tão desencantado.

sexta-feira, maio 01, 2015

Bergman x 17 (15)

Grande acontecimento em DVD, depois da exibição em Lisboa e Porto (e mais algumas cidades): a edição de 17 filmes de Ingmar Bergman (1918-2007), a maior parte em cópias restauradas — razões de sobra para rever algumas imagens emblemáticas da filmografia do mestre sueco.

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Foi um encontro entre dois nomes maiores do património cinematográfico da Suécia. Rezam as crónicas que o único filme em que o realizador Ingmar Bergman dirigiu Ingrid Bergman (mesmo apelido, nenhuma relação familiar) não teve uma rodagem muito pacífica — dir-se-ia que, paradoxalmente, não é isso que adivinhamos a partir desta imagem [foto: Arne Carlsson]. De facto, ao colocar a velha senhora consagrada por Hollywood perante Liv Ullmann — assumindo um par mãe/filha em agitado ajuste de contas com o passado —, o autor retoma alguns temas obsessivos da sua filmografia, incluindo a traição afectiva, agora com o tempero cruel do desencanto do tempo que passa. Este é, afinal, um objecto duplamente dramático: primeiro, porque corresponde ao período em que, por questões fiscais, o realizador viveu fora da Suécia (Sonata de Outono teve financiamentos alemães e britânicos, tendo sido rodado na Noruega); depois, porque acabou por ser o derradeiro trabalho cinematográfico da actriz, que veio a falecer a 29 de Agosto de 1982, dia do seu 67º aniversário.

sexta-feira, abril 10, 2015

Bergman x 17 (14)

CENAS DA VIDA CONJUGAL (1973)
Grande acontecimento em DVD, depois da exibição em Lisboa e Porto (e mais algumas cidades): a edição de 17 filmes de Ingmar Bergman (1918-2007), a maior parte em cópias restauradas — razões de sobra para rever algumas imagens emblemáticas da filmografia do mestre sueco.

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A noção de espaço familiar — que é também uma noção familiar de espaço — atravessa todo o universo bergmaniano. Veja-se esta foto de rodagem (assinada por Lars Karlsson) de Cenas da Vida Conjugal: Liv Ullmann dialoga com Bergman enquanto Sven Nykvist mede a luz; à esquerda, na base da imagem, Erland Josephson é apenas um corpo em pose de escuta, mas não deixamos de reconhecer que não é um intruso — bem pelo contrário, a sua pose é de absoluta integração no artifício global do trabalho. Tudo acontece numa paisagem de absoluta proximidade em que, nos rituais desse trabalho como mais tarde no material filmado, reconhecemos uma intensidade emocional que arrasta um imenso poder de revelação. Além do mais, deixemo-nos de tretas modernistas: muito antes de cedermos à moda de dizer que a televisão "ascendeu" aos temas adultos, Bergman dirigia este projecto no formato de mini-série (6 episódios), depois transformado em longa-metragem de cinema — não faz sentido esquecê-lo, apenas porque cometeu o "erro" de ter pensado nisso com duas ou três décadas de avanço.