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sexta-feira, novembro 22, 2024

Martin Scorsese
— a solidão radical do cinema

Foi no começo da década de 1960 que Martin Scorsese teve, pela primeira vez, a ideia de filmar uma vida de Jesus — o livro Conversas sobre a Fé (ed. Casa das Letras), formado por diálogos entre o realizador e o jesuíta e teólogo Antonio Spadaro, evoca esse facto, cruzando-o com uma reflexão plural sobre a filmografia do cineasta.

Martin Scorsese
Procurando esclarecer os muitos cruzamentos do cinema e da fé na vida de Martin Scorsese, a certa altura Antonio Spadaro questiona-o sobre o facto de ter pensado “num filme sobre Jesus desde os anos sessenta”. Numa longa resposta, Scorsese recorda que cresceu numa família em que “ninguém lia livros” em paralelo com o facto de, desde muito cedo, o levarem a ver filmes com regularidade. Fala da conjugação, no seu olhar, da “arte na igreja” com o “movimento num ecrã”, recorda os estudos no Washington Square College (que se tornou a New York University) e refere esse projecto do começo da década de 1960: “Naquela altura queria fazer a história de Jesus: 16 mm, a preto e branco, nos dias de hoje, filmado no Lower East Side, nos prédios degradados e em Bowery, culminando na crucificação nas docas do rio Hudson, junto à West Side Highway… que já lá não está.”
Para Scorsese, a aproximação cinematográfica da personagem de Jesus começou, assim, pontuada por um desejo de realismo indissociável da sensibilidade de uma nova geração de cineastas que terá tido a sua “bandeira” na primeira longa-metragem de John Cassavetes, Shadows/Sombras (1959), uma crónica novaiorquina rodada em 16 mm, a preto e branco.
Scorsese acabou por desistir do projecto, em 1964, quando viu O Evangelho Segundo São Mateus, de Pier Paolo Pasolini, reconhecendo que o autor de Accattone (1961) e Mamma Roma (1962) já tinha concretizado aquilo que, para ele, não passou de um sonho. Permaneceu o essencial: o fascínio por personagens, não autobiográficas, mas com ecos muito pessoais e obsessivos, vivendo as convulsões de uma tragédia íntima centrada na possibilidade (ou na impossibilidade) do triunfo do Bem e, mais do que isso, na reconciliação de cada uma dessas personagens com os seus próprios fantasmas — encarnação exemplar de tal lógica dramática seria Johnny Boy, em Mean Streets/Os Cavaleiros do Asfalto (1973), primeira presença de Robert De Niro no universo de Scorsese.
Scorsese é o primeiro a reconhecer e sublinhar que, antes mesmo de ter realizado a sua “trilogia religiosa” — A Última Tentação de Cristo (1988), Kundun (1997) e Silêncio (2016) —, encontramos na sua filmografia várias personagens assombradas por uma missão, concreta ou imaginada, que os ultrapassa e, mais do que isso, ameaça destruir. É o caso do motorista de taxi Travis Bickle, em Taxi Driver (1976) e do pugilista Jake La Motta, em O Touro Enraivecido (1980), este múltiplas vezes evocado no livro com Spadaro. Com duas colaborações que estão longe de ser secundárias na dinâmica temática e narrativa de toda a obra de Scorsese: são personagens interpretadas por Robert De Niro e ambos os filmes têm como base argumentos de Paul Schrader (no segundo, com a colaboração de Mardik Martin).

Dois romances

No centro de tudo isto está, obviamente, A Última Tentação de Cristo, adaptando o romance de Nikos Kazantkakis (disponível com o título A Última Tentação, Edições 70, 2023). O Cristo interpretado por Willem Dafoe é um ser empenhado em afirmar uma irredutibilidade divina que não emana de nenhuma entidade institucional, nem se aquieta num conceito geográfico, nacional ou político. Como diz Dafoe, a certa altura, questionando a multidão dos seguidores de Cristo: “Pensam que Deus vos pertence? Não pertence. Deus é um espírito imortal que pertence a todos, a todo o mundo. Pensam que são especiais? Deus não é um israelita!”
É na impressionante cena da crucificação que o Cristo de Scorsese enfrenta o silêncio do Céu com a pergunta da mais radical solidão: “Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?” É a mesma pergunta que Shusaku Endo destaca no seu Uma Vida de Jesus (edições Asa, 2002), precisamente o romance que deverá servir de base a um filme (A Life of Jesus) que Scorsese tem vindo a preparar e adiar ao longo das últimas décadas. Daí também a incompreensão manifestada pelos discípulos face à tenacidade, e à recusa de espectáculo, com que Jesus defende o primado do Amor. Ou como escreve Endo: “Decididamente, o discípulos eram exactamente como nós, um punhado de homens banais, fracos e cobardes.”

quinta-feira, outubro 31, 2024

Amadeo: memórias de um exílio português

Os Galgos (1911), de Amadeo de Souza-Cardoso (Centro de Arte Moderna/Fundação Gulbenkian)

Amadeo, o livro de Mário Cláudio sobre Amadeo de Souza-Cardoso, é um notável exercício literário sobre uma figura central do modernismo português; foi agora reeditado, 40 anos depois de ter ganho o Grande Prémio de Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores — este texto foi publicado no Diário de Notícias (1 outubro).
 
De que falamos quando falamos de Amadeo de Souza-Cardoso (1887-1918)? O seu lugar emblemático no panorama do modernismo português está longe de o reduzir a mero “símbolo” de um movimento: o seu trabalho reflecte uma elaborada abertura às convulsões artísticas do seu tempo, incluindo o cubismo e o futurismo, consolidando-se numa obra multifacetada capaz de transcender os limites de qualquer época. A reedição do romance Amadeo, de Mário Cláudio (com chancela da Dom Quixote), assinalando o seu 40º aniversário, aí está como testemunho eloquente de tal pluralidade histórica e, obviamente, também da sua transfiguração literária.
Estamos perante um livro fascinante, consagrado em 1984 com o Grande Prémio de Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores. E se é verdade que o podemos definir como “romance biográfico”, não é menos verdade que tal classificação não deve ser separada da consciência estética, certamente pedagógica, de um labor que desafia, não apenas as fronteiras da escrita romanesca, mas também as regras tradicionais da abordagem biográfica.
No texto de apresentação da nova edição, Carlos Reis enaltece tal dinâmica, começando por questionar se esta é uma “biografia induzida pelo título”, um “diário completado por uma investigação biográfica”, um “ensaio balizado por eventos históricos”, ou ainda um romance capaz de subverter os “protocolos de género”. A resposta é “um pouco de tudo isso”, até porque se trata de enfrentar “questões que o tempo não dissolveu”.
Que questões são essas? Decorrem do misto de transparência e mistério que transforma o artista nessa “entidade” que existe por inteiro na sua obra, ao mesmo tempo que a obra se impõe como um corpo autónomo, capaz de interrogar o tempo e os lugares em que foi gerada. A esse propósito, importa lembrar que o escritor iniciava com Amadeo um conjunto de ficções biográficas (a expressão talvez seja mais sugestiva do que “biografias ficcionadas”) que viria a receber a designação de “Trilogia da Mão” — completaram-na Guilhermina (1986), sobre a violoncelista Guilhermina Suggia, e Rosa (1988), evocando a popular ceramista Rosa Ramalho.
Há um ziguezague biográfico que não é estranho a algum “suspense” (com o seu quê de cinematográfico). Quem está a conduzir a narrativa? Quem trabalha num romance que poderá chamar-se Amadeo? E quem descreve tudo isso, criando um livro-espelho do próprio livro que estamos a ler? Muito cedo ficamos a conhecer um investigador (“considera-se um biógrafo”) que “reúne documentos recentes, ouve quem ouviu do homem, acrescenta a tudo isso estâncias da própria existência. Este meu Tio Papi pretende justificar-se. A vida apenas se lhe torna inteligível na vida de outrem, e é isso quase tudo quanto o move.” Daí também a expressão que, um pouco mais à frente, Mário Cláudio aplica à aprendizagem do seu Amadeo. A saber: ele “aprendia a ser-se”.

Museu
Entre Manhufe e Paris

Entre Manhufe, terra natal no município de Amarante, e a perturbante sedução de Paris (“um quebra-cabeças de persistência e de folia”), nasce, assim, um labirinto de vivências, umas vividas, outras imaginadas, de que a pintura será a ilustração e a vertiginosa transfiguração.
“É uma longa maldição o exílio português”, lê-se na pág. 98 desta nova edição. Como se Amadeo, o artista revisitado como personagem de romance, estivesse condenado a existir sempre dividido entre a racionalidade das origens e a liberdade animal da criação. Reflexos desse assombramento podem encontrar-se na polémica que o romance suscitou em 1984, ao ser distinguido pela APE.
Nas páginas finais, há uma coleção de anexos que, depois de algumas páginas do original manuscrito, reproduzem artigos de várias publicações que, além dos textos críticos, nos permitem revisitar momentos fundamentais daquela polémica. É pena que as reproduções, de fraca qualidade técnica, reduzam as medidas dos originais, em vários casos tornando a leitura praticamente impossível. Nada disso diminui a importância desta reedição de Amadeo (com texto impresso num azul cúmplice do universo do pintor), até porque fica a sugestão de que, há 40 anos, um romance podia suscitar tanto interesse mediático quanto a transferência de um treinador de futebol.

quarta-feira, agosto 28, 2024

A igreja flutuante

Holly Hunter e William Hurt em Broadcast News (1987): onde está a verdade?

Que acontece quando a luta política é uma questão de ecrãs? Afinal de contas, é nesse mundo que estamos a viver — este texto foi publicado no Diário de Notícias (11 agosto).

Revisito as memórias de um dos filmes mais brilhantes que já se fizeram sobre televisão: Broadcast News, uma produção de 1987 com argumento e realização de James L. Brooks (entre nós estreado como Edição Especial). Aliás, corrijo a generalização: o espaço televisivo apresenta-se de tal modo fragmentado, habitado por inconciliáveis maravilhas e horrores, que não faz sentido tratar a televisão como “um” tema — é preciso descortinar e, de algum modo, confrontar as muitas diferenças que o habitam.
Lembrei-me de Broadcast News porque nele ecoa uma questão que, por vias bem diferentes, assombra muitos dos actuais protagonistas do pequeno ecrã, dos jornalistas mais sérios aos concorrentes do Big Brother. A saber: o que é a verdade? E como dizê-la? Ou mostrá-la?
A certa altura, no filme, uma produtora de um canal de informação (Holly Hunter) interroga-se sobre a entrevista feita pelo jornalista-vedeta da sua estação (William Hurt) a uma mulher que foi vítima de violação. Observando a totalidade do material registado para a entrevista, percebe que o grande plano do rosto do jornalista a chorar perante o testemunho da mulher não pertence à entrevista — foi forjado a posteriori.
A moral da história projecta-nos num terreno incómodo: a dicotomia verdade/mentira não esgota tudo o que está em jogo. Não se trata apenas de discutir as virtudes de reprodução (ou os artifícios de encenação) que marcam o dia a dia do pequeno ecrã: o sistema de linguagens de que se faz a televisão, ainda que vendido como “reprodução” do mundo, pode funcionar, de facto, como imposição de uma determinada concepção desse mesmo mundo.
Apesar da sua fina sensibilidade crítica, o filme de James L. Brooks está ainda ligado a uma visão liberal inerente à história clássica de Hollywood, anterior à vertigem de ecrãs em que hoje vivemos. Afinal de contas, movendo-se com arrogante à vontade no interior dessa vertigem, Donald Trump dinamitou a questão da produção da verdade, todos os dias celebrando as apoteoses das mais risonhas ficções — agora, alguns jornais dos EUA (aconteceu há dias no New York Times) relatam mesmo cada comício de Trump contrapondo uma lista didáctica das mentiras por ele propagadas.
Como é que Kamala Harris aparece nesta cenografia de infinitos fragmentos narrativos e, mais do que isso, de incessantes “mensagens” para serem vistas nos ecrãs que povoam o nosso mundo? Eis a difícil conjuntura: deixámos de ter ecrãs que “reproduzam” esse mundo, passámos a viver (nem sempre muito felizes, é verdade) num mundo feito de ecrãs.
As pessoas e entidades que apoiam Kamala Harris compreenderam que Trump há muito investira no fogo fátuo desse mundo de imagens, sendo necessário (politicamente necessário, entenda-se) arriscar no interior das suas coordenadas, sinalizando algumas fundamentais diferenças. Resta saber de que modo, ou até que ponto, o que está a acontecer irá contribuir para a reposição da nobreza do debate político ou, apesar de todas as boas vontades democráticas, poderá reforçar a nossa condição de reféns dos delírios imateriais dos ecrãs que nos consomem.
Quase quatro décadas depois de Broadcast News, Philippe Sollers dava conta da perversa evolução de todo esse aparato informativo no romance La Deuxième Vie (edição póstuma: Gallimard, março 2024). Sou eu que traduzo: “No oceano dos computadores, a televisão brilha como uma igreja flutuante. Cada vez mais planetária, ela tece a rede de um governo mundial. A estupidez vive sobre-informada através da sua ignorância. Vagas de filósofos auto-proclamados lucram com isso e peroram, a horas fixas, sobre todos os assuntos.”
Não é, por isso, ficção científica reconhecer que toda a dinâmica comunicacional das próximas eleições americanas ecoará de forma muito concreta nas práticas audiovisuais e políticas de ambos os lados do Atlântico. Que vão fazer os sacerdotes da informação e os actores da cena política que, mesmo sem nada para dizer, vivem de “aparecer” nos ecrãs? Serão capazes de desistir da preguiça da rotina, escolhendo os sobressaltos da inteligência?

domingo, agosto 25, 2024

António Tavares
— contos para lidar com o enigma do tempo

"O tempo passou, como passam as nuvens..." (Morangos Silvestres, 1957, de Ingmar Bergman)

Vencedor do Prémio Leya de 2015, António Tavares publica agora Mesmo Não Indo, o Tempo Vai, uma antologia de narrativas breves: são histórias apostadas em percorrer e questionar, ora com gravidade, ora com humor, os “enredos” do nosso quotidiano — este texto foi publicado no Diário de Notícias (7 agosto).

Eis uma expressão que tem tanto de retrato intuitivo como de hipótese filosófica: Mesmo Não Indo, o Tempo Vai. É esse o título da nova antologia de contos de António Tavares (ed. Dom Quixote, julho 2024). São 19 histórias que, em qualquer caso, se apresentam, não como “contos”, antes com a designação de “ficções” — um pormenor que não será uma mera questão de nomenclatura.
Na verdade, a agressividade da mais medíocre cultura televisiva tende a associar a noção de “conto” ao estilo e à mensagem de alguns exercícios (ditos) documentais cujo único objectivo é a redução de qualquer actividade humana a alguma forma de pitoresco. Que pitoresco é esse? Pois bem, a celebração das personagens e suas acções como sintomas mais ou menos anedóticos, por vezes grosseiramente caricaturais, da vida de todos os dias. Dos profissionais da política às vedetas do futebol, evita-se a complexidade dos factos, memórias e ideias, para que todos sejam tratados como agentes de uma futilidade sem responsabilidade — é esse o modelo corrente de pitoresco, vendido como inquestionável realismo.
Ora, justamente, a escrita de António Tavares não é realista. Ou melhor, não o é nesse sentido vulgar e superficial. O que, entenda-se, não significa que estas prosas sejam estranhas aos contrastes de uma realidade carregada de índices realistas (passe a redundância). Porquê? Porque somos levados a compreender que a realidade é tanto aquilo que conhecemos em paralelo com as personagens, como tudo o que se lhes escapa através das suas acções.
“A rapariga disse que dependia do enredo” — assim começa a ficção que se intitula, justamente, “O enredo”. O que não quer dizer que se siga uma “explicação” daquilo que a “rapariga” disse. Logo a seguir, sem mudar de parágrafo, escreve o narrador: “Nesse momento, o motorista do autocarro fez uma travagem brusca e um sujeito idoso, agarrado a um varão, na zona do meio da viatura, voou até aos meus pés e caíu pesado sobre eles.” Pobre narrador, a realidade não o deixa descansar: “Era sempre este azar: se seguia na minha paz, algo haveria de cair-me em cima dos pés.”
Com metódica subtileza, as histórias vão adquirindo uma ambiguidade a que, à falta de melhor, poderemos chamar “cinematográfica”, de tal modo as evidências das imagens que nos são propostas atraem as mais inusitadas variações. Vale a pena citar o modo como o narrador, em pose cinéfila, faz o balanço dos seus fantasmas: “Todos os dias eu tinha estes sonhos ou visões como uma película de um filme a passar numa máquina de projecção, enquanto a fita ia mudando de uma bobine para outra. Às vezes, no sonho também havia plateia, como acontece nas execuções na América, gente enternecida por assistir à morte, à passagem de um ser vivo para outro que já está a deixar de ser.”

Realismo & absurdo

A nitidez da morte envolve a interrogação do tempo. Um pouco à maneira de alguns filmes clássicos, por exemplo da primeira fase existencial de Ingmar Bergman (fará sentido chamar-lhe existencialista?). Sentimos que o tempo baralha as evidências de quase tudo o que acontece. Na singularidade de uma nova imagem, na eclosão de uma frase imprevista, através de uma palavra por decifrar, o tempo parece decompor-se numa coleção de detritos que encerra o enigma do nosso ser. Enigma implacável. Assim se diz em “O velho que ouvia o neto ao piano”, um pouco antes de se esclarecer a motivação do título do livro: “O tempo passou, como passam as nuvens, os viajantes pelas estradas e lugares, a meninice e a juventude.”
O autor cultiva uma frondosa diversidade, cuja gravidade não exclui momentos contagiantes de humor. Logo a abrir, por exemplo, em “O homem que levava as chamas do inferno a arder dentro de si”, o título é para ser tomado à letra. Em “As asas das borboletas são de cores vivas”, o lirismo inaugural antecipa a reviravolta de um verdadeiro conto policial. Enfim, em “As botas”, o pitoresco, neste caso genuíno, do calçado do sargento em cenário de guerra irá desembocar na geometria de uma insólita parábola moral.
Dir-se-ia que, ao lidar com os sobressaltos do quotidiano, António Tavares quis experimentar todas as formas narrativas que as próprias palavras pudessem atrair ou sustentar — o estilo evoca, aliás, O Coro dos Defuntos, que lhe valeu o prémio Leya de 2015. Era um romance organizado em capítulos breves, outras tantas ficções sobre um universo também paradoxal: os dados realistas atraem sempre os deliciosos sobressaltos do absurdo.

sábado, julho 20, 2024

Salman Rushdie
— o olho direito da Lua

Viagem à Lua (1902), de Georges Méliès: a memória que persiste

Através de palavras concisas, Salman Rushdie ajuda-nos a lidar com os erros cometidos pela morte — este texto foi publicado foi publicado no Diário de Notícias (30 junho).

Nas últimas semanas tenho sido acompanhado pelas palavras de Salman Rushdie no seu livro Faca (edição D. Quixote, tradução de J. Teixeira de Aguilar). Estamos perante um exercício radical de memória, embora transcendendo a mera inventariação de factos. O que, evidentemente, não banaliza a perturbação inerente a tais factos, assim resumidos na contracapa: “A 12 de agosto de 2022, trinta e três anos depois da fatwa contra ele decretada pelo aiatola Khomeini, assim que subiu ao palco do anfiteatro de Chautauqua, Nova Iorque, para falar sobre a importância de manter os escritores fora de perigo, Salman Rushide foi atacado, e quase morto, por um jovem com uma faca.”
Salman Rushdie
O desafio do escritor poderá resumir-se através do enraizamento literário, político e simbólico a que, justamente, as suas palavras tentam responder e corresponder. Na certeza de que o labor da escrita está muito para lá do falacioso conceito corrente — entenda-se: televisivo — de “descrição” do mundo.
Com objectividade e ironia, Rushdie refere o “modo de livre associação” da sua mente. Cita até os seus pensamentos cruzados na noite de 11 de agosto, essa “última noite inocente”. Face ao esplendor da “lua cheia que brilhava sobre o lago”, pensou, entre outras coisas, no instante em que Neil Armstrong pisou a Lua, numa história de Italo Calvino e, por fim, no “momento mais famoso” do filme Viagem à Lua (1902), de Georges Méliès (evocado através da reprodução do respectivo fotograma). E acrescenta: “Não fazia ideia, ao recordar a imagem da nave a ferir o olho direito da Lua, daquilo que a manhã seguinte reservava ao meu próprio olho direito.”
O atentado de que foi alvo suscita-lhe outras associações cinéfilas, incluindo os “sonhos que eram reminiscências” de Un Chien Andalou (1929), de Luis Buñuel e Salvador Dalí, filme “em que uma nuvem que corta a lua cheia se converte numa lâmina a cortar um olho”. Para desembocar na tragédia consumada pelos erros estúpidos da morte: “Uma das razões pelas quais o filme Psycho, de Alfred Hitchcock, é tão assustador é morrerem as pessoas erradas. A maior estrela do filme, Janet Leigh, morre passado cerca de meia hora. Aparece o seguro e avuncular detetive Martin Balsam, tipo deixem-isso-comigo e, mal damos por isso, morre também. É aterrador. Era assim que eu começava a sentir-me. A morte estava a apresentar-se nas moradas erradas.”
Há uma mensagem implícita nestas palavras: o naturalismo pueril da mais formatada linguagem televisiva pode dominar (e, de facto, domina) as trocas informativas em que vivemos, mas revela-se irremediavelmente escasso para lidar com a complexidade da experiência humana. E há também em tudo isto uma tragédia de comunicação que o escritor não sabe como resolver (e o leitor ainda menos): como lidar com o próprio autor do atentado?
Escreve Rushdie, designando-o por “A.”: “Como hei de abordá-lo, o detentor da faca? Circundo-o na minha mente, penso em maneiras de iniciar a conversa.” E também: “Não quero ser demasiado amistoso. Não me sinto amistoso. Mas também não quero ser demasiado hostil. Quero abri-lo, se puder. Como um encontro real é improvável — digamos impossível —, tenho de imaginar a maneira de entrar na sua cabeça. Tenho de tentar construí-lo, torná-lo real. Não sei se conseguirei.”
Ao longo de quarenta páginas, Rushdie arrisca mesmo um exercício teatral em que redige esse diálogo “improvável/impossível” com o homem que tentou matá-lo. Quase no fim, diz-lhe: “Começo a perceber. Você quer ser um servo. Andou à procura de um amo ou de uma ideia que fosse maior que você e perante a qual pudesse curvar-se. Não queria ser livre. Queria submeter-se.” Que acontece, então? O agente da morte responde: “Ainda não percebeu. Só a submissão conduz à liberdade. Essa é que é a porra da questão.”
Subitamente, o nosso tão fútil idealismo colectivo encontra a questão que sempre lá esteve, mas que teimamos em iludir ou menosprezar: a palavra “liberdade” não tem uma significação unívoca, nem é uma moeda de troca universal.

segunda-feira, julho 08, 2024

Françoise Hardy
— todos os rapazes e raparigas

Memórias, música e poesia de 1962

O legado de Françoise Hardy é feito de muitas palavras: vêm de um passado que fala para o nosso presente — este texto foi publicado no Diário de Notícias (16 junho).

Françoise Hardy morreu no dia 11 de junho — contava 80 anos. Em 2012, lançou o romance L’Amour Fou (ed. Albin Michel, Paris), começando assim: “Era como se a estrada, até lá muito linear, se transformasse em impasse. Ela não conseguia avançar e não se tratava, infelizmente, de voltar para trás. Como se o seu passado, o seu presente e as suas antecipações se desfizessem subitamente contra uma parede tão imprevista quanto incontornável.”
Oito anos antes, ficara a saber que sofria de uma forma muito grave de linfoma. Mesmo evitando ceder a qualquer determinismo “psicológico”, podemos reconhecer que a doença marcou o labor criativo dos anos finais de Françoise Hardy, ecoando em particular no confessionalismo pudico do último álbum, Personne d’autre (2018). O seu alinhamento terminava com a canção “Un mal qui fait du bien” (à letra: “um mal que faz bem”): “Nada de anódino / Um mal que faz bem / Paro aí, retenho-me / Nem uma derradeira palavra, nem uma palavra de fim.”
Há cerca de seis meses, num misto de contundência e contenção, escreveu uma carta aberta ao Presidente Emmanuel Macron (publicada no jornal La Tribune, 17 dez. 2023), apelando à criação de condições para a legalização da eutanásia e do chamado suicídio assistido: “Contamos com a sua empatia e esperamos que possa permitir aos franceses muito doentes e sem esperança pôr fim ao seu sofrimento quando sabem que já não há qualquer alívio possível.”
Evitemos os clichés. Ao contrário de uma perversão ideológica hoje em dia dominante, da televisão à publicidade (incluindo, claro, a publicidade televisiva), não avançamos no conhecimento do mundo reduzindo tudo e todos a eventos “militantes”. Simplificando, celebremos apenas (e não é pouco) a precisão cristalina das palavras de Françoise Hardy, superando as fronteiras convencionais entre a intervenção social e a digressão poética.
A indiferença que acompanhou a notícia da morte de Françoise Hardy (com excepções, claro) terá passado por alguma resistência cega a essa ambivalência primordial das palavras — ditas ou escritas —, menosprezada pela velocidade postiça do espaço mediático em que, todos os dias, a nossa sensibilidade se atordoa. Sou mesmo levado a supor que, pelo menos neste caso, nada disso terá sido alheio ao facto de estarmos perante uma figura que não provém do espaço anglo-saxónico (não esquecendo que também cantou em língua inglesa). Pertencendo eu a uma geração que estudou o francês como língua estrangeira prioritária, o facto é tanto mais significativo quanto o que está em jogo não é a concorrência “sociológica” entre duas línguas, mas a desvalorização implícita da humanidade da expressão.

>>> Tous les Garçons et les Filles (1962) / [Scopitone].
 

Regresso ao primeiro álbum de Françoise Hardy, Tous les garçons et les filles, e à transparência romântica da canção-título. Foi em 1962. Para muito boa gente (a começar por pessoas da minha geração), este seria um despreocupado retrato dos “rapazes e raparigas” da época, encarado de modo tanto mais pitoresco quanto a expressão “rapazes e raparigas” desapareceu da linguagem corrente — agora, só há “juventude” e, na maior parte dos casos, da política à publicidade, “ser jovem” é uma condição tratada como uma espécie de “jogging” burocrático para se entrar na idade adulta.
Em boa verdade, estamos perante uma canção enraizada numa desencantada solidão. Esquematizando, a cantora observa os apaixonados que se passeiam “mão na mão”, vivendo “sem medo do amanhã”, enquanto ela segue “sozinha pelas ruas”. Porquê? Porque, diz ela, “ninguém me ama”. Eis uma forma singela de cruzar profundidade e ligeireza. Acontece que tal singeleza se tornou ilegível para qualquer mente alimentada pela noção corrente segundo a qual a “juventude” se define por uma de duas vias: ou o colectivismo militante de um “rebanho” político sem fissuras, ou o “individualismo” boçal promovido pelos formatos da Reality TV.
Como se aqueles que escutaram Françoise Hardy na sua adolescência mais não fossem que marionetas de uma época pitoresca em que “amor”, “sexo” ou “política” nunca existiram como temas, perguntas ou fantasmas da sua existência… Que fazer perante este apagamento do passado? Arrisco pensar em francês para lidar com a tristeza de tudo isto. Pourquoi pas?

>>> Obituário em Le Figaro.

quinta-feira, julho 04, 2024

David Mamet
— Aristóteles em Hollywood

David Mamet e Helen Mirren — rodagem de Phil Spector (2013)

David Mamet escreveu um livro de memórias: contra o “politicamente correcto”, sempre em nome do amor pelo cinema — este texto foi publicado no Diário de Notícias (9 junho).

David Mamet (76 anos) nunca irá parar de ajustar contas com Hollywood — a memória das suas aventuras e desventuras na “fábrica de sonhos” é mesmo um dos seus desportos preferidos. Vindo do teatro, estreou-se no cinema com o argumento de O Carteiro Toca Sempre Duas Vezes (1981), com Jack Nicholson e Jessica Lange dirigidos por Bob Rafelson. Logo a seguir, O Veredicto (1982), de Sidney Lumet, valeu-lhe uma primeira nomeação para o Oscar de melhor argumento adaptado, proeza que repetiria com Manobras na Casa Branca (1997), de Barry Levinson. Estreou-se na realização com o prodigioso Jogo Fatal (1987), iniciando uma filmografia pessoal em que podemos encontrar títulos tão admiráveis como As Coisas Mudam (1988) ou O Golpe (2001), desembocando no telefilme Phil Spector (2013), com Al Pacino e Helen Mirren.
Como ele reconhece, são momentos de um trabalho feliz e gratificante, ainda que pontuado por muitos conflitos (e despedimentos) resultantes de uma guerra interminável com alguns executivos, alheios a qualquer interesse pelo cinema, que lhe apareceram pelo caminho. O livro mais recente de Mamet — Everywhere an Oink Oink (Simon & Schuster, Nova Iorque, dez. 2023) — é uma antologia amarga e doce de tais conflitos, mas sobretudo uma celebração de um amor genuíno pelo cinema que passa pela exigência da escrita e pela cumplicidade com os actores.
O “oink oink” do título é para ser tomado à letra: um grunhido de porcos. Não os simpáticos animaizinhos gorduchos, mas os “suínos” que exploram a candura humana. Eis a metáfora: “Todos sabemos que os nossos verdadeiros adversários são os suínos que se aproveitam da nossa boa natureza feita estupidez. Defendemo-nos contra as ameaças óbvias, mas os agressores estudam-nos para atacarem os nossos pontos sem defesa. É lógico.”
Para ilustrar a sua revolta, tecida de ironia e sarcasmo, Mamet recheou o livro com “cartoons” de sua autoria e múltiplas anedotas dos bastidores de Hollywood. Através dos primeiros, ficamos a saber que a carreira de desenhador ou pintor não seria a sua vocação. De resto, podemos deliciar-nos com as peripécias mais ou menos insólitas, por vezes discretamente obscenas, de atribulações vividas por Frank Sinatra, Don Ameche, Marlene Dietrich, Henry Fonda ou Jessica Lange… Há momentos em que a crueldade tem o seu quê de masoquista. Leia-se a anedota que encima as informações da contracapa: “Uma visita importante chega a Hollywood e pede aos estúdios que lhe mandem uma prostituta de mil dólares — enviam-lhe um argumentista.”
Dito isto, não nos enganemos com as aparências. Tal como o teatro e o cinema de Mamet, Everywhere an Oink Oink envolve uma entrega total às artes narrativas, ou não fosse ele um profissional que se define como um “estudioso da linguagem”. Daí as múltiplas tomadas de posição contra a futilidade do “politicamente correcto” e, em particular, contra a cultura pueril da “diversidade”. Fiquemos por uma das mais contundentes (incluindo as respectivas maiúsculas): “Os dramas sobre ‘Doenças’ foram substituídos pela pornografia da ‘Diversidade’. Em ambos os casos, viola-se a máxima de Aristóteles segundo a qual a trajectória do Herói deve decorrer das suas escolhas, nunca da sua condição.”
Ficamos a saber, por exemplo, que Mamet guarda uma memória muito sentida da dedicação ao trabalho de Val Kilmer, numa altura em que o actor, em fase de decadência industrial, com ele rodou esse notável “thriller” político que é Spartan (2004). Porventura surpresos, compreendemos também que a precisão visual dos seu cinema o leve a considerar que “há poucos diálogos nos filmes que sejam significativos” (ele que escreveu alguns dos mais sofisticados diálogos do teatro e do cinema americano da segunda metade do século XX). Evocando, uma vez mais, as lições de Aristóteles, Mamet recorda que o final de uma narrativa deve ser ao mesmo tempo “surpreendente e inevitável”. Mais do que isso, para Mamet o mestre absoluto de tudo isso pertence aos tempos gloriosos do burlesco e do cinema mudo. A saber: Buster Keaton.
>>> Sherlock Jr. (1924), de Buster Keaton.


>>> Wikipedia: David Mamet.

quinta-feira, maio 02, 2024

Rui Ochoa: a arte de fotografar e escutar

Salgueiro Maia fotografado por Rui Ochoa, ou a partilha de um instante

As imagens de Rui Ochoa “ilustram” uma nova canção de João Gil, celebrando a vibração histórica de cada instante — este texto foi publicado no Diário de Notícias (28 abril).

Reencontrei esta fotografia de Salgueiro Maia num contexto surpreendente e sedutor. Da autoria de Rui Ochoa, integra o teledisco de O Dia Mais Bonito, canção composta e interpretada por João Gil para o seu novo álbum (Só Se Salva o Amor, a ser lançado no dia 10 de maio). Aliás, o teledisco, produzido pela ADLC-Audiovisuais, com cuidada edição de Raquel Silva, é todo ele construído a partir de imagens de Ochoa, publicadas no livro 74-99, uma antologia fotográfica dos 25 anos vividos a partir de 25 de abril de 1974 (ed. Casa das Letras, 2023).


A fotografia é, em si mesma, um espantoso documento, dando a ver um Salgueiro Maia diferente de qualquer estereótipo, seja ele político ou épico. Não se trata, entenda-se, de esquecer ou minimizar outras notáveis imagens, de outros fotógrafos, que fazem parte da iconografia histórica de Salgueiro Maia e do 25 de Abril. Acontece que esta é uma fotografia cuja “neutralidade” resiste a todas as formas de manipulação mediática — sem esquecer que há um infeliz “simbolismo”, pueril, sempre à beira do pitoresco, que continua a proliferar em muitas linguagens televisivas.
Que vemos, então? Alguém que não pode ser reduzido a mero “emblema” de um acontecimento histórico, por mais que esse acontecimento lhe tenha conferido um lugar central na nossa memória colectiva. E recordamos o lema de Roland Barthes — “isto aconteceu” — quando analisava fotografias que nos instalam no paradoxo que cruza a certeza do facto com o indizível do tempo que passou. Eis um rosto de serena expressividade, um olhar de uma só vez transparente e enigmático; acima de tudo, eis uma presença que consagra um valor tão desvalorizado nos tempos que correm: a escuta.
A imagem encerra o teledisco, reforçando um tom de observação, atenta e pedagógica, que se entrelaça com a singeleza do poema: “Sou do tempo do porque sim / Sou do tempo do porque não”, canta João Gil logo a abrir. A depurada energia do rosto de Salgueiro Maia a pontuar esse final resulta também de uma montagem em que as memórias não estão antecipadamente codificadas (reconheço o preconceito cinéfilo: evito a palavra “edição”, prefiro dizer “montagem”).
O olhar fotográfico de Ochoa nasce de uma genuína disponibilidade para as singularidades dos eventos. Daí a pluralidade das imagens que “ilustram” O Dia Mais Bonito. Pode ser um grupo de crianças de riso cristalino, num cenário de evidente pobreza. Ou o Terreiro do Paço no tempo em que funcionava como imenso parque de estacionamento. Ou ainda um tanque do exército, no dia 25 de abril, a subir a Rua Augusta, superando qualquer cliché decorativo ou turístico. Pode ser apenas uma jovem, anónima, misteriosa, a contemplar a objectiva.
As coisas vão-se diversificando com o aparecimento de figuras públicas: Álvaro Cunhal e outros elementos do Partido Comunista, sentados no Parlamento, a lerem os jornais do dia; Diogo Freitas do Amaral, Francisco Sá Carneiro, Mário Soares e Álvaro Cunhal num estúdio da RTP, aguardando o início de um debate sobre o “poder local”; Ramalho Eanes, com outros militares de abril, algures no final de uma reunião, numa partilha de sorrisos contagiantes. Nesta última imagem, o olhar feliz de Eanes parece dirigir-se ao próprio fotógrafo, não à procura de qualquer efeito de “pose”, antes partilhando com ele a irredutibilidade do aqui e agora.
Há outros momentos marcados por variações da mesma natureza: alguém parece destacar-se do colectivo que integra e contempla o trabalho do fotógrafo — por exemplo, o velho que, no centro da imagem, se alheia daquilo que talvez seja uma fila de espera para as primeiras eleições livres… não sabemos se imobilizado pela solenidade da situação ou indiferente a tudo o que o rodeia.
Há ainda outra maneira de dizer tudo isto: o labor fotográfico de Rui Ochoa é estranho a qualquer estratégia de “voyeur”. Cada imagem nasce de um genuíno prazer de participar no acontecimento a que, afinal, o fotógrafo também pertence. Por vezes, a aparente ligeireza do momento surge tocada por uma vibração envolvente, sem nome: deparamos com Amália Rodrigues [aqui em baixo], sentada, chávena de chá nas mãos, dois guitarristas atrás de si, a contemplar com evidente concentração algo que está a acontecer… fora do campo da imagem.
Nunca vemos tudo, eis a lição ética e estética. Compreendemos que cada fotografia não esgota, nem pretende esgotar, a complexidade da realidade à nossa volta. O que mais importa é a partilha daquele instante com Salgueiro Maia — e sentimos que também parámos para escutar.

quinta-feira, abril 25, 2024

Memórias de 1974 [livro]

* RÁPIDA, A SOMBRA
Vergílio Ferreira


>>> Mon amour. My love. Não há línguas bastantes para te dizerem. Esta música ao menos, se ela te dissesse. Na melancolia grave que está entre a alegria e a amargura. Ou antes de uma e outra. Ou depois. Ouço-a, esqueço-me, o papel no chão. Leio-o de cima «vou-me embora». Saída das ondas como quando havia deuses. E o sol. Cai-te a prumo nos cabelos claros, acende a festa do teu corpo. Saída das ondas — saída dos livros que em muralha de cima a baixo, de um lado ao outro da sala. Cinquenta anos de saber, tu antes e depois, o disco acabou. Mas envelheceste tanto. Os carros na avenida. Cresce o ruído dos motores como quem chega a um limite. O telefone. Quem chama? O disco recomeça.

Fiel a um intimismo alheio a esquematizações "psicológicas", Vergílio Ferreira prolongava a sua escrita focada na existência humana, na carência histórica de todas as essências.
Depois de romances como Alegria Breve (1965) ou Nítido Nulo (1971), Rápida, a Sombra reencontra os labirintos de uma solidão que os detalhes do quotidiano espelham de forma enigmática, paradoxalmnte transparente — memórias de um presente de muitas descrenças, não purificando o passando, não sacralizando o futuro.

quinta-feira, abril 18, 2024

domingo, abril 07, 2024

No centenário de Marlon Brando
— o rebelde relutante

Cinco Anos Depois (1961): Marlon Brando, actor e realizador

No dia 3 de abril, no Diário de Notícias, dois textos assinalaram a passagem do centenário do nascimento de Marlon Brando: 'Um homem chamado desejo', de Inês N. Lourenço, e este, de minha autoria, tendo como ponto de partida a sua autobiografia, publicada em 1994.

A autobiografia de Marlon Brando, escrita com a colaboração do jornalista e romancista Robert Lindsey, surgiu em 1994 (ed. Random House), com um título “roubado” a uma peça para voz e piano composta pelo checo Antonin Dvorak em 1880: Songs My Mother Taught Me, à letra, “Canções que a minha mãe me ensinou” [Ana Netrebko].
O facto de Brando ter decidido escrever sob o signo da mãe e dos seus ensinamentos constitui, por certo, uma dimensão essencial do livro e dos afectos que por ele perpassam. Em todo o caso, importa não esquecer que tudo isso se materializa em “canções”. Umas tristes, outras alegres, algumas deixando a sensação de uma pudica incompletude. Não são narrativas orientadas por uma qualquer moral determinista, antes revisitações de um passado tão singular quanto multifacetado que se exprime através do “canto” — entenda-se: obedecendo a uma musicalidade organizada para expor uma intimidade eivada de um realismo simples, próximo da candura infantil, alheio a qualquer facilidade espectacular.
O cruzamento de referências objectivas e múltiplas ambivalências surge expresso logo nas linhas de abertura: “Ao recuar, inseguro, nos anos da minha vida, tentando lembrar-me do que aconteceu, descubro que nada é claro. Creio que a primeira memória que tenho é de quando era demasiado criança para me recordar que idade tinha.”
Tais incertezas não são sustentadas por qualquer forma de lirismo redentor. Com palavras secas, estranhamente serenas, Brando considera mesmo que viveu num cenário errado: “Muitas vezes pensei que teria sido muito melhor se tivesse crescido num orfanato.” Porquê? Em boa verdade, confessa que não sabe explicar, mas identifica dois dados muito concretos do seu espaço familiar: “(…) creio que a minha mãe foi ficando cada vez mais desiludida e zangada com o comportamento de mulherengo do meu pai, enquanto ele ia ficando mas infeliz com o facto de ela beber.”
Daí a explorar uma imagem de auto-vitimação, à maneira das “vedetas” da televisão populista, seria um passo que, obviamente, é totalmente alheio às confissões de Brando. Com algumas surpresas, convém dizer, até mesmo nas referências ao Actors Studio, a “casa” da arte de representar de que ele foi (e é) um símbolo incontornável. Assim, se o víamos como um dos discípulos mais geniais de Lee Strasberg, figura central na história do Studio, somos levados a relativizar o retrato: “Depois de eu ter algum sucesso, Lee Strasberg quis fazer crer que isso se ficou a dever ao facto de ele me ter ensinado a representar. Ele nunca me ensinou nada. (…) Havia quem o reverenciasse, mas nunca percebi porquê. Para mim era uma pessoa sem gosto e sem talento de que nunca gostei muito.” Quem foram, então, os verdadeiros mestres de Brando? Stella Adler e Elia Kazan.

Sucesso & fama

Implacável com os defeitos que atribui a outros, Brando não o é menos consigo próprio, sobretudo quando se trata de recordar os tempos em que começou a experimentar o gosto do sucesso — em particular o período que passou em Paris depois do impacto de Um Eléctrico Chamado Desejo em palco (1947-49): “(…) sinto-me chocado por me ver coberto pela mesma sujeira que apontava nas pessoas que critiquei; a fama alimenta-se do esterco (“manure”) do sucesso e eu permiti que isso acontecesse.” Daí também o misto de desencanto e ironia com que Brando evoca os tempos de glória em que ele e James Dean, mais do que “embaixadores” do Actors Studio, foram transformados em cruzados de um novo conceito de juventude. Na legenda da foto de uma festa em que ambos estão presentes, escreve Brando: “Éramos ambos rapazes do campo, fomos promovidos como rebeldes. Dean imitava a minha maneira de representar e também aquilo que ele acreditava que era o meu estilo de vida.”
Dir-se-ia que a relutância em encarnar o seu próprio mito o levou a realizar Cinco Anos Depois (1961), “western” atípico que tem qualquer coisa de espelho de uma solidão sem remorso. Será também essa solidão que o leva a encarar a velhice como um tempo de culto do paradoxal minimalismo das memórias — recorde-se que Songs My Mother Taught Me foi lançado cerca de dez anos antes da morte de Brando. Assim, por exemplo, para “explicar” uma célebre fotografia em que o vemos ao lado de Marilyn, escreve: “Cruzei-me com Marilyn Monroe numa festa. Enquanto os outros bebiam e dançavam, via-a sentada num canto, quase sem se dar por ela, a tocar piano. Tivemos uma relação. Falámos pela última vez dois ou três dias antes de ela morrer.”

sábado, março 23, 2024

Memórias do paraíso de Cézanne

Paul Cézanne: Natureza Morta com Prato de Fruta (1879-80)

Eis uma bela homenagem: a revista de Bernard-Henri Lévy celebra a herança plural do seu amigo Philippe Sollers — este texto foi publicado no Diário de Notícias (10 março).

Philippe Sollers
Por estes dias, reencontro palavras dos livros de Philippe Sollers (1936-2023). Por exemplo, a propósito da pintura e dos pintores que mais marcaram o seu mundo e a sua escrita: Monet, Manet, Cézanne… Em Les Folies Françaises, romance de 1988, Sollers contempla Cézanne numa deambulação em que pintura e romance se enlaçam, amorosamente: “Pinto-te, pinto-te, a pintura é um romance, terceiro mundo para lá da realidade e do seu espelho, mais presente do que alguma vez será a consciência da realidade duplicada através de um espelho. É a nossa loucura visível e legível. Música.”
A palavra final, solta, mas precisa, leva-nos a perguntar: que música é esta? Como descrevê-la? Ou ainda: se qualquer descrição padece das limitações da sua própria amostragem das “coisas”, como habitá-la? São palavras reencontradas numa belíssima edição da revista La Règle du Jeu (nº 81, janeiro 2024), dirigida por Bernard-Henri Lévy — um testemunho da longa amizade de Lévy e Sollers e, ao mesmo tempo, uma antologia de textos (assinados, entre outros, por Yann Moix, Nathan Devers e Jean-Paul Enthoven) para nos ajudar a percorrer o território imenso, multifacetado, marcado por uma gravidade radical cúmplice do riso mais livre, de um dos génios da escrita (identificá-lo como “escritor” será sempre pouco) nascidos no século XX.
Ao longo das décadas (Uma Curiosa Solidão, primeiro romance de Sollers, tem data de 1958), Lévy foi um observador atento, empenhado e apaixonado do labor de Sollers. E tanto mais quanto ambos podem ser identificados como protagonistas de um exercício tão vulnerável quanto fascinante: conhecemo-los como personagens regulares da paisagem mediática, com inevitável destaque para o espaço televisivo; ao mesmo tempo, sempre souberam expor-se nesse espaço resistindo às muitas obscenidades culturais que, em nome da “informação”, tendem a reduzir qualquer desejo de pensamento a coisa fútil e, por fim, dispensável.
Este número de La Règle du Jeu começa, aliás, com uma antologia de extractos de intervenções públicas de Lévy dedicadas a Sollers. No dia 7 de abril de 2000, no seu “Bloco notas” da revista Le Point, a propósito da edição do romance Passion Fixe, Lévy condensava num parágrafo admirável a peculiar condição de Sollers como “agente secreto” — aliás, Sollers viria mesmo a publicar um delicioso panfleto autobiográfico intitulado Agent Secret (2021). Citação:
“Philippe Sollers, a sua obra é disso testemunho, teve sempre a obsessão da clandestinidade, das conspirações, dos disfarces, dos lobos. Nunca cedeu contra o desejo, vital, de jogar a sombra contra a luz, de trancar a sua obra e a sua vida — de mobilizar, de facto, os seus livros como outras tantas máquinas da guerra de longa duração que ele quis travar, com alguns outros, contra a monstruosidade do tudo-mostrar e do tudo-dizer.”
Bernard-Henri Lévy
Que monstruosidade é esta? As infinitas variações da escrita de Sollers estão em guerra com a mediocridade de um quotidiano gerido pelo voyeurismo do “Big Brother” (não estamos a falar de Orwell, se é que o leitor faz o favor de me seguir…), antes celebram diferentes maneiras de ver, pensar, sentir e amar em tudo e por tudo alheias à desumanização do nosso mal viver mediático. Na sua alegre brevidade (100 páginas ou menos), os quinze romances finais de Sollers, de L’Étoile des Amants (2002) a Graal (2022) organizam-se mesmo como ecos de um quotidiano cada vez mais maniqueísta, a que a escrita contrapõe lições antigas de diferentes modos de viver e pensar a vida que queremos viver.
Num dos textos de La Règle du Jeu, o professor e crítico literário Olivier Rachet recorda o livro que Sollers escreveu, justamente, sobre Cézanne: Le Paradis de Cézanne (1995). Pertence a esse livro uma máxima que resume exemplarmente a crise da “moral da percepção” em que vivemos e somos obrigados a viver: “Estamos na época em que o homem se separa da sua própria percepção, ou mais exactamente separa-se contra ela.” Em boa verdade, o próprio Cézanne já nos tinha avisado para tal perigo, chamando-nos a atenção para a música que importa defender, ao citar os frutos das suas naturezas mortas: “Eles ficam ali e pedem desculpa por mudar de cor.”

sábado, fevereiro 24, 2024

A nova mulher de Frankenstein

Bella Baxter, aliás, Emma Stone: quais as fronteiras do ser humano?

Em Pobres Criaturas, o filme de Yorgos Lanthimos que está na corrida dos Oscars, Emma Stone vive uma epopeia capaz de reinventar o clássico Frankenstein para o século XXI. Entre as exuberantes revelações do seu mundo fantástico, há mesmo um fado cantado por Carminho — este texto foi publicado no Diário de Notícias (25 janeiro).

Ao longo das últimas décadas, os filmes de super-heróis, com inevitável destaque para os que exibem a chancela da Marvel, foram perdendo a alegria criativa dos seus fundamentos, entregando a imaginação e o imaginário ao labor rotineiro dos departamentos de efeitos especiais. Ora, não se trata de negar o valor figurativo (ou sonoro) de tais efeitos na história dos filmes, em boa verdade desde os pioneiros do cinema mudo. Trata-se, isso sim, de recordar que o fantástico ou a fantasia são no essencial gerados pelo trabalho narrativo, não através da banal ostentação de técnicas mais ou menos sofisticadas. A partir de hoje nas salas, aí está um sugestivo exemplo desse trabalho: Pobres Criaturas, produção internacional (EUA / Reino Unido / Irlanda) realizada pelo grego Yorgos Lanthimos, Leão de Ouro em Veneza, com presença forte na actual temporada de prémios — nos Oscars obteve nada mais nada menos que 11 nomeações, incluindo a de melhor filme.
Convenhamos que Lanthimos não será um exemplo perfeito de um cineasta capaz de sustentar a coerência de uma narrativa sem ceder a formalismos superficiais que, por vezes, nos afastam da intensidade dramática das histórias que tem para nos contar. Os seus títulos anteriores — da tragédia familiar Canino (2009), ainda realizado na Grécia, ao drama histórico A Favorita (2018) — são sintomáticos disso mesmo.
Pobres Criaturas consegue, apesar de tudo, superar tais limitações, quanto mais não seja porque tem um magnífico argumento de Tony McNamara, baseado no romance Poor Things, de Alasdair Gray (está nomeado na categoria de melhor argumento adaptado). Dito de outro modo: esta é uma fábula sobre a criação científica de um novo ser, um Frankenstein para o século XXI.

O que é uma personagem?

A inspiração de Frankenstein (o romance de Mary Shelley publicado em 1818) evolui, aqui, através de uma derivação já experimentada pelo cinema. A saber: o Dr. Frankenstein cria uma mulher. Lembremos, por isso, que James Whale, autor do primeiro Frankenstein (1931) sonoro, dirigiu também A Noiva de Frankenstein (1935), sem esquecer que um dos clássicos da Hammer Film britânica se chama Frankenstein Criou uma Mulher (1967) e tem assinatura desse artesão genial que foi Terence Fisher.
Talvez que a maneira mais sugestiva de descrever a ambiência surreal de Pobres Criaturas seja através de um sublinhado da palavra “things” do título original. Estamos, de facto, perante a história cruel, mas visceralmente romântica, de uma “coisa” viva, afinal marcada por todas as emoções e comoções do factor humano: é ela Bella Baxter, a personagem interpretada pela prodigiosa Emma Stone, numa composição que já lhe valeu vários prémios — e também, claro, uma nomeação para o Oscar de melhor actriz.
Depois do suicídio de Bella, há um cientista dedicado às mais variadas “reconversões” dos corpos (humanos e não só…) que a vai devolver à vida. Mas este novo Frankenstein, ilusionista das formas vitais, de nome Godwin Baxter, não se limita a “ressuscitar” Bella, abençoando-a com o seu apelido: através de uma diferença radical na sua gestação cirúrgica (diferença que importa não revelar ao leitor), ela vai protagonizar um novo ciclo vital, não a partir da sua idade real, mas recomeçando na infância…
Tudo isto acontece em cenários de insólito barroquismo (melhor cenografia é outra das nomeações do filme), tratados em imagens de exuberante cromatismo, incluindo cenas reminiscentes do mais primitivo preto e branco (melhor fotografia, idem aspas). Há mesmo pormenores de saborosa ambivalência simbólica, como é o caso do fado interpretado por Carminho numa Lisboa que parece saída de uma banda desenhada futurista. Para Bella Baxter, esta é a odisseia da sua identidade, desafiando o espectador para uma aventura, tão romântica quanto sarcástica, através do labirinto do próprio conceito de personagem.

O burlesco e mais além

Nas nomeações para o Oscar de melhor actriz, Emma Stone surge na companhia de mais quatro admiráveis intérpretes, incluindo a favorita Lily Gladstone, em Assassinos da Lua das Flores, e a miraculosa Carey Mulligan, em Maestro. Seja como for, independentemente da escolha dos membros da Academia, o seu trabalho distingue-se por um jogo de contrastes cuja singularidade importa sublinhar.
Dir-se-ia que ela nos oferece uma antologia da evolução histórica da arte de representar perante uma câmara. Assim, no começo, descobrimo-la como uma variação dos corpos burlescos do tempo do mudo — não exactamente de Charlie Chaplin ou Buster Keaton, mas, antes disso, das atribulações dos filmes de Mack Sennett. A falta de coordenação dos seus movimentos vai a par de uma aprendizagem da própria linguagem: vemos, assim, a evolução dos gestos humanos como uma iniciação paralela à descoberta das primeiras palavras e, mais do que isso, à possibilidade de com elas construir frases.
A partir daí, as surpresas serão muitas e fascinantes, incluindo a revelação cândida (entenda-se: desprovida de medo ou culpa) da sexualidade — até porque Bella começará a compreender que, perante a experiência sexual, as palavras podem ser estranhamente insuficientes. Enfim, tudo isto acontecendo como uma épica conquista da consciência, perversamente nascida da mais poética inconsciência.

quinta-feira, fevereiro 01, 2024

Resistir ao nada

Nathalie Baye no filme Salve-se Quem Puder (1980): "Eu não sou uma máquina"

Com as palavras de José Gil ou Jean-Luc Godard podemos, talvez, imaginar outras formas de fazer política — esxte texto foi publicado no Diário de Notícias (14 janeiro).

Meio século depois do ano de 1974, qual é a nossa cultura política? A pergunta envolve um pressuposto que muitos protagonistas da cena política não reconhecem — talvez nem sequer o conheçam. A saber: a cultura não é uma “secção” da sociedade que, para o melhor ou para o pior, está entregue à gestão dos políticos. Porquê? Porque esses políticos existem também como entidades eminentemente culturais: valorizar (ou resistir a) determinadas formas de relação humana, estabelecer laços (ou rupturas) de comunicação constitui, afinal, a mais elementar definição de cultura e das suas dinâmicas.
Não se trata, entenda-se, de menosprezar a importância das decisões que os políticos tomam, ou podem tomar, no sentido de enriquecer as nossas relações com os livros e os filmes, os concertos em sala ou a música que escutamos em casa, o teatro que vemos ou não podemos ver… Seja como for, tal importância parece decorrer de uma ingénua (ou apenas cínica) noção voluntarista segundo a qual “a” cultura se esgota numa qualquer rede de “equipamentos” mais ou menos frondosos.
Veja-se (e ouça-se) como a maior parte dos políticos abdicou da especificidade da sua função, dirimindo as suas diferenças apenas através da troca imaterial de mensagens televisivas. As suas diferenças de pensamento, se é que existem, unificam-se num imperativo fulanizado. Como? Invectivando o outro a aparecer como imagem: “Ele deve ir à televisão explicar-se”, eis uma frase corrente que se tornou mesmo o desafio mais radical que cada político arrisca (ou sabe) dirigir a qualquer outro. Esse outro, tal como o próprio, parece existir apenas através dessa presença imponderável, mil vezes repetida, mil vezes banalizada, na forma e na formatação do pequeno ecrã.
Que fazer quando a política agoniza todos os dias na tele-política? Será que as escolhas eleitorais se esgotam, agora, democraticamente, na avaliação da performance mediática de cada político? A questão é tanto mais pertinente quanto não são poucos os exemplos dos que surgiram com responsabilidades políticas depois de assumirem diversas formas de comentário televisivo.
Infelizmente, há jornalistas que se comportam como se ignorassem as singularidades deste sistema de comunicação — e não há nada de mais cultural do que o modo como organizamos a nossa comunicação, ou aquilo a que atribuímos essa designação. Recusam-se, assim, por princípio (eventualmente de modo inconsciente), a reflectir sobre o próprio aparato em que laboram.
Nos triliões de “debates” que ocupam o nosso quotidiano, há recorrentes exemplos deste estado das coisas. Basta alguém dizer que é preciso não esquecer que a televisão (e, certamente, os jornais, as rádios e todos os órgãos de comunicação) é parte integrante da nossa vida cultural para haver um moderador vigilante que, com o automatismo de um robot, recorda que “não é isso que estamos a discutir”… O que, entenda-se, não impede que um sobressalto registado em 5 segundos de imagens suscite infindáveis horas de “análise”: antes mesmo de o “acontecimento” esgotar as suas peripécias, já estamos “em análise”. A mensagem não podia ser mais explícita: não parem para pensar. Não me atrevo a resumir a exuberante riqueza e complexidade do livro de José Gil recentemente publicado, Morte e Democracia (ed. Relógio D’Água, outubro de 2023). Correndo o risco de uma abusiva simplificação, direi que nele encontramos a afirmação radical da vida humana como “coisa” que só pode ser pensada (e, enfim, vivida) através do reconhecimento da morte e do seu indizível.
Sem que isso, entenda-se, nos afaste das componentes muito concretas do nosso viver e, não poucas vezes, do mal viver que nele se instila. Cito algumas linhas do capítulo intitulado “Justiça, imortalidade e finitude”: “Para cada época histórica, em cada sociedade, existe um grau de conivência inconsciente das classes inferiores para com as superiores na aceitação de normas e regras que constrangem e oprimem as primeiras em benefício das segundas, conivência que cimenta decisivamente a coesão e a vida pacífica da comunidade.”
Qual o preço dessa coesão? Alargo um pouco mais a citação: “Trata-se, mais uma vez, da “servidão voluntária” de La Boétie, para a qual contribuem o “ópio do povo” de Marx e, actualmente, tantos outros narcóticos sofisticados (média, redes sociais, publicidade, etc.). Toda a sociedade admite um grau de injustiça, como se se tratasse de uma situação justa e “normal”.”
Num filme de Jean-Luc Godard lançado em 1980 (entre nós chamado Salve-se Quem Puder), a personagem interpretada por Nathalie Baye lia uma frase sobre a tristeza dessa normalidade — “Há algo no corpo e na cabeça que resiste ao nada” —, enaltecendo o valor vital de “um sopro de irregularidade” ou de “um movimento em falso”. E fazia um pequeno inventário de detalhes microscópicos do nosso viver: “Tudo aquilo que, dentro do insignificante quadrado de resistência contra a eternidade vazia que é o posto de trabalho, faz com que ainda haja acontecimentos, mesmo minúsculos.”
Descrevia depois alguns sinais de tudo aquilo que deixámos de contemplar: “Esta falta de jeito, esta deslocação supérflua, esta súbita aceleração, esta mão que persiste duas vezes, esta careta, esta coisa que se desliga, é a vida que volta a agarrar-se. Tudo aquilo que em cada homem desta cadeia de acontecimentos grita em silêncio: eu não sou uma máquina.” Vale a pena lembrar que a personagem de Nathalie Baye se chama Denise Rimbaud — eis um nome a merecer análise.