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quinta-feira, janeiro 02, 2025

2024 / 10 filmes [6]

* JUROR #2, de Clint Eastwood

De que falamos quando falamos de justiça? De que modo o enunciado da lei, essencial para qualquer dispositivo de justiça, envolve o individual e o colectivo, as singularidades do humano e a lógica universal da comunidade? Clint Eastwood fez um filme prodigioso sobre tais questões, relançado uma complexa tradição dramática e política do classicismo de Hollywood. Entre nós (e mais alguns países), os decisores acharam que não fazia sentido lançar o filme nas salas — será que o absurdo de tal opção envolve algum sentido de justiça?


[ Reality ] [ Um Casal ] [ Challengers ] [ No Interior do Casulo Amarelo ] [ Memória ]
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quinta-feira, outubro 21, 2021

Eastwood & Bogdanovich

Eis duas efemérides que nos remetem para a história de Hollywood há 50 anos: foi, de facto, há meio século que ocorreram as estreias de Play Misty for Me/Destinos nas Trevas, notável "thriller" que marcou a estreia de Clint Eastwood como realizador, e The Last Picture Show/A Última Sessão, de Peter Bogdanovich, retrato amargo e doce da juventude "made in USA" marcada pela guerra da Coreia — o primeiro surgiu no dia 20 de outubro de 1971; o segundo dois dias mais tarde. São filmes que, além do mais, exemplificam a energia de um cinema americano "mainstream", muito diferente e, sobretudo, muito mais inventivo do que a produção actual dominada pelas rotinas de super-heróis e afins...
... a ver ou rever num ecrã perto de si. 



segunda-feira, outubro 18, 2021

À procura de Willie Boy

[1969]

Na história do “western” americano, O Vale do Fugitivo (1969) é um título decisivo na abordagem das relações entre brancos e índios — este texto foi publicado no Diário de Notícias (26 setembro).

Há dias, ao escrever sobre o novo e belíssimo filme de Clint Eastwood, Cry Macho - A Redenção, fui conduzido a algumas memórias do “western”. Com a acção situada na transição das décadas de 1970/80, o novo filme é, de facto, uma variação sobre as matrizes clássicas desse género que se consolidou como um panorama, pleno de contrastes e contradições, da história da formação dos EUA — em particular, como bem sabemos, das convulsões da expansão para Oeste.
O misto de serenidade e desencanto que define a personagem interpretada por Eastwood não é estranho à sua própria trajectória como actor e cineasta, desde o exílio italiano como intérprete dos “westerns spaghetti” de Sergio Leone (culminando em O Bom, o Mau e o Vilão, de 1966), até aos “westerns” que ele próprio assinou e protagonizou. Lembrei-me, em particular, do revivalismo de Bronco Billy, produção de 1980, um dos primeiros títulos em que Eastwood expõe as ambivalências da história e da mitologia, interpretando um “cowboy” de um circo do século XX, desse modo expondo a crueza da memória face aos artifícios do espectáculo.
E lembrei-me também de dois admiráveis “westerns” de 1969, essenciais para compreendermos como este género de filmes integra as mais drásticas interrogações das suas próprias raízes culturais: A Quadrilha Selvagem, de Sam Peckinpah, e O Vale do Fugitivo, de Abraham Polonsky. O primeiro, obviamente num contexto bem diferente, lida com os dramas da fronteira EUA/México, centrais na narrativa de Cry Macho; o segundo apresenta uma prodigiosa reflexão crítica sobre as relações entre brancos e índios, recordando a odisseia de Willie Boy, um índio da tribo Paiute, fugindo às autoridades com a sua companheira branca, depois de ter morto o pai dela em situação de legítima defesa.
No contexto português, O Vale do Fugitivo teve especial importância simbólica, já que ilustrou uma dinâmica de exibição em que a dialéctica entre “arte” e “comércio” estava longe do maniqueísmo que triunfou nas últimas décadas, em especial na sequência da formatação do consumo imposta pelo marketing de super-heróis e afins. Assim, em maio de 1971, o filme inaugurou o cinema Apolo 70 (em Lisboa, na av. Júlio Dinis, em frente ao Campo Pequeno), sala em que, graças à excelente programação da responsabilidade do crítico e cineasta Lauro António, prevaleceu a ideia de um cinema plural, sem barreiras temáticas ou estéticas.
Abraham Polonsky
Agora, O Vale do Fugitivo existe como uma preciosidade esquecida — não está disponível no cabo ou nas plataformas de streaming, nem sequer existe edição portuguesa em DVD. Na história atribulada e fascinante dos anos 60/70 de Hollywood, a sua importância é tanto maior quanto marcou o regresso à realização de Abraham Polonsky (1910-1999), um dos profissionais de Hollywood que viu a sua carreira interrompida pela acção do Comité de Investigação das Actividades Anti-americanas durante o período “maccartista” — não realizava um filme desde A Força do Mal (1948), policial com John Garfield.
Robert Redford foi fundamental na criação das condições de produção para que Polonsky regressasse à realização, assumindo também o papel do xerife que persegue Willie Boy, interpretado por Robert Blake (que, dois anos antes, tinha surgido em A Sangue Frio, de Richard Brooks, adaptado do livro de Truman Capote). A relação entre os dois homens transporta os sinais de um novo paradigma histórico: se o xerife representa um conceito de lei e ordem gerado nas convulsões do Oeste, Willie Boy é alguém que, na sequência da “transferência” dos índios para fora das suas terras de origem, se afirma como personagem que já não pertence a nenhum lugar.
O título original, Tell Them Willie Boy Is Here (à letra: “Diz-lhes que Willie Boy está aqui”), exprime de forma contundente, contaminada por uma profunda mágoa poética, essa deriva de alguém que a história condenou a um exílio interior. Quando, agora, deparamos com os discursos politicamente correctos a quererem convencer-nos que o cinema americano “acordou” nos últimos anos para as feridas íntimas do seu país, fica a dúvida se se trata de irresponsabilidade ou provocação. Ou apenas de cândida ignorância.

quinta-feira, outubro 07, 2021

Clint Eastwood
à procura do paraíso perdido

Cry Macho (2021)

Cry Macho evoca paisagens e histórias do velho Oeste, mesmo se a sua acção decorre no século XX: na dupla condição de actor e realizador, Clint Eastwood é, afinal, o símbolo de um classicismo que não envelhece — este texto foi publicado no Diário de Notícias (16 setembro).

Eis o que seria, talvez, um sugestivo ponto de partida para produzir um filme de episódios: pedir a alguns cineastas que filmassem a sua ideia de paraíso… É caso para dizer que, no caso de Clint Eastwood, o trabalho está feito: a sua nova longa-metragem, Cry Macho (entre nós lançada com o subtítulo A Redenção), possui esse misto de felicidade e desencanto — talvez não seja possível conceber uma coisa sem a outra — que caracteriza uma visão cujo ponto de fuga envolve algo de paradisíaco.
Onde fica, então, o paraíso de Clint Eastwood? Pois bem, é antes de tudo o mais um paraíso cinéfilo. Entenda-se: um cinema americano (ainda) não viciado nas rotinas de super-heróis e afins, capaz de se interessar por gente de carne e osso. Mais do que isso: um cinema que, em particular ao longo das décadas de 1960/70, se reinventou através da revisitação crítica do seu próprio passado — a começar pelas aventuras do “western” clássico, —, nessa medida reavaliando também factos e mitos da história dos EUA.
Será preciso relembrar o lugar preponderante que Eastwood ocupa na história dessas décadas em Hollywood? Cry Macho parece, aliás, saído da produção desse tempo, com chancela de um grande estúdio (que se repete: este é um filme Warner, gerado pela produtora de Eastwood, a Malpaso).
A esse propósito, convém sublinhar que estamos perante um “western”, tão genuíno no espírito quanto atípico na teia dramática. Isto porque já não vogamos nos cenários da epopeia clássica do Oeste — de que Eastwood, justamente, é um dos mais legítimos herdeiros: lembremos apenas o “oscarizado” Imperdoável (1992) —, mas sim em pleno século XX, com a acção a iniciar-se no ano de 1979.

Terra e cavalos

Eastwood assume a personagem de uma ex-vedeta de rodeos, ex-criador de cavalos, encarregado de uma missão espinhosa: ir buscar ao México o filho de um amigo (interpretado pelo cantor country Dwight Yoakam), um rapaz de 13 anos (Eduardo Minett) cuja existência, junto de uma mãe abusiva, será tudo menos paradisíaca…
Os dados assim lançados remetem-nos para um património de histórias, que é também um imaginário histórico, em que são elementos determinantes as especificidades do território e, muito em particular, os dramas de fronteira (EUA/México). Aliás, tais componentes pontuam alguns dos mais notáveis “westerns” da época citada, incluindo os emblemáticos A Quadrilha Selvagem, de Sam Peckinpah, e O Vale do Fugitivo, de Abraham Polonsky (ambos de 1969).
Não é certamente por acaso que Cry Macho evoca a herança simbólica desse cinema através de elementos paisagísticos que a maior parte do cinema “digital” dos nossos dias, pura e simplesmente, desconhece. Não se trata, entenda-se, de fabricar “postais ilustrados” mais ou menos vistosos e descartáveis. Nada disso: quando Eastwood filma a sua própria silhueta recortada na mancha azul avermelhada de um pôr do sol, aquilo a que assistimos, longe de ser banalmente decorativo, decorre da sensibilidade e da crença de um cinema nascido da convivência carnal com a pulsação primordial da terra.
Daí também o valor anímico da presença dos animais em Cry Macho — sem esquecer que Macho é o nome do galo que serve de companhia e fonte de rendimento (em combates ilegais) ao rapaz que Eastwood vais resgatar. Se no seu périplo mexicano ele pressente uma réstia de paraíso — através da personagem da mulher (Natalia Traven) que o acolhe na mais depurada serenidade amorosa —, tal pressentimento não pode ser dissociado de um modelo de existência sempre pontuado pela terna convivência com os animais. Como ele diz ao rapaz, quando o ensina a montar a cavalo: “Olha para onde vais, vai para onde olhas.”


Contar histórias

A história da gestação de Cry Macho poderia servir para outro filme à maneira das sagas com que Hollywood tem espelhado as suas convulsões internas. Assim, foi em 1988 que o produtor Albert S. Ruddy convidou Eastwood a interpretar a respectiva adaptação cinematográfica, tendo recebido uma resposta negativa: Eastwood optou por rodar The Dead Pool/Na Lista do Assassino, de Buddy Van Horn, uma das sequelas do policial Dirty Harry (1971).
Também produtor do novo filme, Ruddy (nascido, tal como Eastwood, em 1930) andava desde os anos 70 a tentar adaptar ao cinema a história escrita por N. Richard Nash (1913-2000), primeiro como argumento cinematográfico, depois como romance (publicado em 1975). O projecto teve vários candidatos a protagonista — incluindo Robert Mitchum, Burt Lancaster e, já no século XXI, Arnold Schwarzenegger —, mas nunca se concretizou. Agora, o legado de Nash foi revisto por Nick Schenk, argumentista que já tinha colaborado com Eastwood em Gran Torino (2008) e Correio de Droga (2018).
Dir-se-ia que todas estas peripécias reflectem as dinâmicas mais fundas do actual cinema americano. Por um lado, deparamos com uma produção dependente de uma tecnologia exuberante (os célebres “efeitos especiais”) que, mesmo não esquecendo as maravilhas que já gerou, parece cada vez mais condicionada por uma lógica de puro marketing. Por outro lado, criadores como Eastwood não abdicam de cultivar o cinema como uma maravilhosa arte narrativa. O prazer visceral de contar histórias não será o paraíso, mas anda lá perto.

domingo, maio 09, 2021

“Toca Misty para mim”
— memória de Jessica Walter

Clint Eastwood e Jessica Walter
Play Misty for Me, 1971

A morte da actriz Jessica Walter, aos 80 anos de idade, faz-nos revisitar a sua composição em “Destinos nas Trevas”, um “thriller” sobre um caso de assédio sexual — este texto foi publicado no Diário de Notícias (28 março).

Jessica Walter, actriz de delicada e complexa presença dramática, faleceu no dia 24 de março, durante o sono, na sua casa de Manhattan — contava 80 anos. Os obituários escritos nos EUA identificam-na, antes de tudo o mais, como intérprete da personagem de Lucille Bluth, a mãe alcoólica da série de comédia Arrested Development/De Mal a Pior (2003-2019).
É um facto que a esmagadora maioria das suas composições pertence a produções televisivas, incluindo a voz de Malory Archer em mais de uma centena de episódios de Archer, série de animação paródica sobre o mundo dos espiões (iniciada em 2009). Seja como for, na primeira fase da carreira, surgiu em dois títulos emblemáticos da história de Hollywood, reflectindo as convulsões temáticas e narrativas dos anos 60/70, antes do triunfo da geração de Steven Spielberg e George Lucas — são eles Lilith e o seu Destino (1964), de Robert Rossen, e Destinos nas Trevas (1971), de Clint Eastwood.
Lilith e o seu Destino
(no original apenas Lilith) justifica a aplicação literal da expressão “amor louco” — nele se faz o retrato íntimo de uma pulsão amorosa assombrada pela loucura. Com Warren Beatty e Jean Seberg, é uma obra-prima à espera de ser resgatada de um generalizado esquecimento. Aliás, Rossen continua a ser um dos mais ignorados mestres da fase final do classicismo — é dele, por exemplo, The Hustler/A Vida É um Jogo (1961), saga cruel de um jogador de bilhar interpretado por Paul Newman, tendo como base o romance de Walter Tevis (o autor de Gambito de Dama).
Algo em parte semelhante se poderá dizer sobre Destinos nas Trevas, quanto mais não seja porque um persistente lugar-comum tende a situar a trajectória de Clint Eastwood como realizador apenas a partir de Imperdoável (1992), o filme que lhe valeu o primeiro triunfo nos Óscares. Na verdade, Imperdóavel foi a 16ª longa-metragem que dirigiu, tendo começado, precisamente, com Destinos nas Trevas, faz agora 50 anos. Há no filme uma ambígua actualidade temática: este é, afinal, um “thriller” centrado num caso de assédio sexual, ilusoriamente romântico na origem, a pouco e pouco marcado por uma perturbante violência.
Ele é Dave (Eastwood), apresentador de um programa noturno de rádio, atendendo pedidos telefónicos dos ouvintes; ela é Evelyn (Walter), fã do programa que frequentemente lhe pede para passar um standard do jazz, “Misty”, de Erroll Garner — tal predilecção está expressa no título original do filme, Play Misty for Me (à letra: “Toca Misty para Mim”). O envolvimento de Dave e Evelyn parece ser um namoro passageiro, mas transfigura-se por completo quando ele, face ao comportamento possessivo dela, a tenta afastar da sua vida… Em termos simples: esta é a história de um homem assediado por uma mulher.


Meio século depois, o discreto brilhantismo de Play Misty for Me correria (ou corre) o risco de ser encarado como um insulto contra “todas” as mulheres e, mais do que isso, um tratamento demagógico do “feminino”. Na leitura de muitos filmes, sobretudo nos EUA, esse tem sido mesmo um efeito colateral das componentes mais esquemáticas do movimento #MeToo.
O debate está viciado. Cinematograficamente, entenda-se. Não creio que seja preciso sublinhar a importância (social e política) das campanhas e medidas legislativas no sentido de denunciar, combater e punir todas as formas de violência masculina contra as mulheres. O que está em causa é o facto de, em paralelo, estarmos a assistir a um fundamentalismo “artístico” que reduz qualquer personagem, masculina ou feminina, de uma narrativa com claras componentes sexuais a símbolo obrigatório de “todos” os homens ou “todas” as mulheres… Pode estar em jogo Shakespeare ou Clint Eastwood, mas o efeito é o mesmo: estupidez cultural.
Jessica Walter é admirável na composição da sua Evelyn, como admirável é o trabalho de Clint Eastwood, desenvolvendo o filme como uma desmontagem das mais banais ilusões românticas. Em boa verdade, o que ele encena é algo de profundamente incómodo. A saber: o mútuo desconhecimento entre “masculino” e “feminino”: Evelyn quer mesmo matar Dave, mas é apenas uma mulher — “uma”, não todas. E Play Misty for Me, apenas um filme — “um” entre muitos.

>>> Misty, por Erroll Garner.

sábado, outubro 31, 2020

A cultura do Halloween

Halloween.
Há sempre alguém disponível para reactivar o mais boçal anti-americanismo, conseguindo argumentar (?) que um qualquer filme de Clint Eastwood não passa, no fundo, de uma máquina de propaganda ideológica, insidiosa e maligna, porventura financiada pela CIA...
Entretanto, assistimos, ano após ano, à apropriação banalmente mercantil da palavra "Halloween", obliterando todas as suas raízes culturais visceralmente made in USA, e ninguém diz nada...
Como se a cultura do comércio fosse um detalhe sem importância na dinâmica das nossas vidas.

domingo, maio 31, 2020

Happy birthday, Mr. Eastwood!

O BOM, O MAU E O VILÃO (1966)
Há qualquer coisa de contundente e paradoxal no facto de Clint Eastwood celebrar hoje, 31 de Maio de 2020, o seu 90º aniversário. Primeiro, porque ele é, não apenas uma das maiores estrelas vivas do cinema dos EUA, mas também alguém que se consolidou como símbolo da própria América; depois, porque essa sua América, historicamente sempre tão ansiosa de se resgatar através da sua simbologia, está a viver uma dramática convulsão interna de que a mediocridade de Donald Trump e a morte trágica de George Floyd são os sinais mais imediatos e perturbantes.
Não sabemos, claro, como o próprio Eastwood encara os acontecimentos das últimas semanas. Seria, aliás, favorecer a mais estúpida demagogia especular sobre os seus pontos de vista face a tais acontecimentos a partir seja do que for que possa estar nos seus filmes. Uma coisa é certa: desde a estreia como realizador, com o muito esquecido e brilhante Play Misty for Me/Destinos nas Trevas (1971) até ao recente, igualmente brilhante, O Caso de Richard Jewell (2019), ele tem sido um retratista interior e do interior do seu país, contemplando-o através de um elaborado pendor crítico que não é alheio a um obstinado amor.
E não deixa de haver também alguma ironia no reconhecimento desse seu labor. De facto, é verdade que grande parte da identidade artística e da mitologia de Eastwood está ligada ao western, género made in USA, por excelência, mas não é menos verdade que, nesse domínio, um dos capítulos vitais da sua filmografia está indissociavelmente ligado a paisagens (geográficas e industriais) da nossa Europa. Que é como quem diz: os três títulos lendários — Por um Punhado de Dólares (1964), Por Mais Alguns Dólares (1965) e O Bom, o Mau e o Vilão (1966) — em que foi dirigido por Sergio Leone. 
A partir de um lugar europeu, olhando a América: Happy birthday, Mr. Eastwood!

>>> Clint Eastwood conversando com James Lipton, em 'Inside the Actors Studio' (5 Outubro 2003).



sábado, fevereiro 15, 2020

Os Oscars perdidos

Joe Pesci e Martin Scorsese
— rodagem de O Irlandês
Já tinha acontecido com Gangs de Nova Iorque: um filme de Martin Scorsese (agora, sucedeu com O Irlandês) obtém uma dezena de nomeações, incluindo a de melhor do ano, e sai da cerimónia dos Óscares sem qualquer prémio: a memória dos que perderam faz também parte da história e do imaginário de Hollywood — este texto foi publicado no Diário de Notícias (10 Fevereiro), com o título 'Um zero para Scorsese'.

Lembrar os que não ganharam Oscars é, nestas ocasiões, uma espécie de vício cinéfilo. Benigno, entenda-se, sobretudo se for entendido, não como uma “culpabilização” dos que votaram, antes como uma abertura de pontos de vista.
Já sabíamos que Uma Vida Escondida, de Terrence Malick, um dos títulos mais singulares do ano (e, a meu ver, dos mais brilhantes), nem sequer surgia nas nomeações. Quanto ao filme de Clint Eastwood, O Caso de Richard Jewell, nobre representante do classicismo de Hollywood e da sua vocação política, estava presente em apenas uma categoria — melhor actriz secundária, através de Kathy Bates — e perdeu.
Em qualquer caso, deparamos com um incómodo vazio: O Irlandês, um dos títulos que se apresentava entre os mais nomeados, saíu da cerimónia nº 92 da Academia de Hollywood exactamente como entrou. Ou seja: sem prémios.
Para a estatística, o prodigioso filme de Martin Scorsese ganha lugar numa galeria não muito apetecível. A saber: a dos filmes com pelo menos uma dezena de nomeações que não obtêm qualquer prémio. Scorsese, aliás, já lá estava representado com Gangs de Nova Iorque (2002): dez nomeações, zero Oscars. Nesse domínio, só dois títulos conseguiram “melhor” performance: A Grande Decisão (1977), de Herbert Ross, e A Cor Púrpura (1985), de Steven Spielberg — ambos obtiveram onze nomeações e nenhuma vitória.
Para a Netflix, produtora de O Irlandês, este é um revés importante. E não só pelo dinheiro (159 milhões de dólares) que a plataforma de “streaming” investiu na saga de Scorsese. Sobretudo porque, deste modo, volta a ficar adiado o seu reconhecimento pleno no interior da comunidade de Hollywood, reconhecimento que, como é óbvio, envolve (ou envolverá) a conquista do Oscar máximo.
Ainda assim, quanto mais não seja de um ponto de vista sentimental, o grande derrotado da noite terá sido 1917, de Sam Mendes. Derrota insólita, sem dúvida, mesmo não esquecendo que o épico da Primeira Guerra Mundial conseguiu três Oscars nas categorias técnicas — fotografia, efeitos visuais e mistura de som —, afinal reveladores da complexidade da sua produção. O certo é que, sobretudo depois dos prémios da associação de produtores e do sindicato de realizadores, 1917 parecia ser o vencedor “obrigatório” na categoria de melhor filme do ano.
Enfim, registe-se também que os filmes correntes de aventuras e super-heróis ficaram de fora. Um velho preconceito manda dizer que esses são produtos mal amados pelos críticos… Em qualquer caso, recorde-se que tais filmes quase não surgiram nas nomeações. Os que apareceram — os mais recentes episódios de Avengers e Star Wars, respectivamente com uma e três nomeações —, não receberam qualquer distinção. E não consta que tenham sido os críticos a votar.

domingo, janeiro 05, 2020

A verdade dos factos não é toda a verdade
— uma lição de Clint Eastwood

Paul Walter Hauser
E aqui está um grande filme para começar o ano cinematográfico: em O Caso de Richard Jewell, Clint Eastwood evoca a saga trágica do segurança dos Jogos Olímpicos de 1996, em Atlanta, que descobriu uma bomba colocada num recinto público: uma verdadeira lição narrativa e filosófica — este texto foi publicado no Diário de Notícias (2 Janeiro).

Decididamente, Clint Eastwood é, cada vez mais, um cineasta realista. Agora, com O Caso de Richard Jewell, um ano depois de 15:17 Destino ParisThe Mule/Correio de Droga (ambos com data de 2018), volta a realizar um filme baseado em factos verídicos. Richard Jewell foi motivo de grande cobertura mediática, em 1996, na qualidade de segurança dos Jogos Olímpicos de Atlanta: por um lado, descobriu uma bomba no parque olímpico, durante a realização de um concerto, contribuindo com a sua acção para salvar algumas centenas de pessoas; por outro lado, acabou por ser considerado suspeito de cumplicidade com os autores desse acto terrorista, tendo sido sujeito pelo FBI a intenso escrutínio.
Em qualquer caso, entenda-se, o realismo de Eastwood está longe de resultar apenas da abordagem de situações e personagens que realmente existem ou existiram. Lembremos o exemplo emblemático, quase abstracto, de Imperdoável (1992), porventura o seu filme mais conhecido da maioria dos espectadores: a abordagem do velho Oeste envolve toda uma “tese” crítica em relação ao tratamento da violência pelos “westerns” mais tradicionais; ao mesmo tempo, é o obsessivo realismo dos detalhes que lhe confere uma inconfundível e contagiante vibração dramática.
Richard Jewell
O Caso de Richard Jewell é tanto mais sintomático das preocupações sociais de Eastwood (89 anos, completados a 31 de Maio) quanto a sua complexidade legal e emocional envolve dois motivos nucleares do imaginário político dos EUA: desde logo, a questão da lei como fundamento de qualquer vivência democrática; depois, o papel decisivo dos meios de comunicação no conhecimento, e na própria definição, da comunidade nacional.
Daí a importância de duas personagens secundárias, plenas de implicações concretas e simbólicas: Tom Shaw, o agente do FBI que conduz a investigação sobre Jewell, e Kathy Scruggs, a jornalista que acompanha o caso. A sua importância na dramaturgia do filme surge, aliás, reforçada pela subtileza dos respectivos intérpretes, respectivamente Jon Hamm e Olivia Wilde: ele procura a verdade dos factos através de uma narrativa “antecipada” que carece de validação; ela celebra o valor de revelação desses mesmos factos, ainda que a sua verdade possa ser instrumentalizada.
Seria precipitado considerar que tal visão transforma Eastwood num cineasta “anti-sistema” (ou com qualquer outro rótulo mais ou menos fútil que atraia especulações gratuitas). Em boa verdade, no sentido mais primitivo, e também mais filosófico, das palavras, ele é um cineasta da Lei e da Ordem, marcado por um valor visceralmente americano: nenhuma defesa do colectivo pode legitimar o esmagamento arbitrário das existências individuais.
Acontece que, quer no sentido policial (o FBI), quer no plano mediático (o trabalho jornalístico), a dita verdade dos factos não esgota a verdade dos acontecimentos e seus protagonistas. O Caso de Richard Jewell é mesmo um filme sobre essa infinita complexidade, tanto maior quanto a sua organização narrativa — alicerçada num notável argumento, escrito por Billy Ray — expõe o espectador a um desafio intelectual e moral raro no cinema contemporâneo. A saber: em cada uma das personagens (sem esquecer a admirável mãe de Jewell, interpretada pela magnífica Kathy Bates), há não apenas uma fatia de vida, mas também uma fatia de verdade, mesmo quando a realidade resiste a qualquer resumo redentor, expondo os mais perturbantes contrastes e contradições.
Daí o destaque que merece a composição de Richard Jewell por Paul Walter Hauser (vimo-lo como secundário em Eu, Tonya ou BlacKkKlansman). Também aqui, o mais imediato efeito realista é impressionante: Hauser apresenta incríveis semelhanças físicas com o verdadeiro Jewell (falecido em 2007, aos 44 anos, na sequência de complicações motivadas por diabetes). Mas a sofisticação da sua interpretação está para além disso. Longe de qualquer santificação (ou demonização, o que viria dar no mesmo), o Richard Jewell do filme é um ser à deriva, tão estranho quanto comovente, de alguma maneira não conseguindo avaliar as implicações públicas da própria tragédia em que, forçado pelas circunstâncias, adquire um papel central.
Digamos, para simplificar, que já vimos interpretações muito menos competentes que o trabalho de Hauser a ganhar Oscars. Não que o filme (ou qualquer filme) necessite de prémios para ilustrar o seu carácter excepcional. O certo é que, neste tempo dominando pelo marketing dos super-heróis, Eastwood continua a ser capaz de lidar com heróis ou anti-heróis sem menosprezar a sua singularidade humana — o ano cinematográfico de 2020 começa com um grande acontecimento.

sábado, janeiro 05, 2019

À espera do novo filme de Clint Eastwood

Rodagem de Correio de Droga — Michael Peña e Clint Eastwood
É bem verdade que Clint Eastwood começou por triunfar através das personagens do velho Oeste. Mas a sua obra inclui um pouco de tudo, desde o drama passional até ao... musical! — este texto foi publicado no Diário de Notícias (31 Dezembro), com o título 'Clint Eastwood: o “cowboy” que gosta de jazz'.

Afinal, de que falamos quando falamos de Clint Eastwood? Do cowboy jovial e misterioso que, nos anos 60, veio à Europa para filmar Por um Punhado de Dólares, sob a direcção do italiano Sergio Leone, e se transformou numa grande estrela... americana? Ou do cineasta que, aos 88 anos, dirigiu o filme Correio de Droga (estreia portuguesa: 31 Janeiro) que, muito provavelmente, vai fazer reaparecer o seu nome nas nomeações para os Óscares?
Ao dirigir e interpretar Correio de Droga, sobre o caso verídico de um homem envolvido no tráfego de drogas, Eastwood veio, afinal, provar que as especulações sobre o final da sua carreira são, no mínimo, prematuras. Mais do que isso: persiste o seu gosto pela acumulação das tarefas de realização e interpretação, ele que, afinal, começou a fazer filmes eminentemente pessoais muito cedo na sua carreira.
Ironicamente, para muitos espectadores, a noção de que Eastwood (também) realizava filmes só se terá tornado clara quando, com Imperdoável, arrebatou os Oscars principais da produção de 1993 — incluindo melhor realizador e melhor filme do ano. Isto apesar de esse filme parecer confirmar que as aventuras do velho Oeste eram a paisagem essencial do seu trabalho.
Em boa verdade, Imperdoável era a 16ª realização da sua filmografia, tendo assinado a primeira mais de duas décadas antes, em 1971. Chamou-se entre nós Destinos nas Trevas (título original: Play Misty for Me) e nada tinha ver com a tradição do “western”: Eastwood surgia como um locutor de rádio envolvido numa estranha relação (pouco) amorosa com uma mulher.


Pode dizer-se que, desde essa data, a trajectória de Eastwood/actor se cruza constantemente com a de Eastwood/realizador, mesmo se uma das suas encarnações mais famosas — Harry Callahan, inspector da polícia de São Francisco — começou com um filme dirigido por Don Siegel: o célebre Dirty Harry (entre nós: A Fúria da Razão) que, além do mais, foi pretexto para muitas polémicas sobre a segurança urbana nos EUA e os modos de intervenção das forças policiais.
O que talvez seja menos claro quando se evocam estas referências é o facto de os chamados “filmes de acção” (dos “westerns” aos policiais) serem francamente insuficientes para definir o universo temático de Eastwood. Desde logo porque há nele uma sensibilidade musical que o levou mesmo a compor algumas das músicas que se ouvem na banda sonora de vários dos seus filmes, incluindo o belíssimo tema para piano de Mystic River (2003), por certo um dos seus títulos mais ambiciosos e também mais perfeitos.


Além do mais, a sua paixão pelo universo de jazz e blues levou-o a realizar Bird (1988), notável e pungente retrato de Charlie Parker, e também a participar na série The Blues, concebida e produzida por Martin Scorsese (Eastwood realizou o episódio Piano Blues). Isto sem esquecer que Jersey Boys (2014) um dos seus filmes mais mal amados (ou, pelo menos, comercialmente menos eficazes) é uma pérola de subtileza humana e sensibilidade musical, retratando o grupo The Four Seasons.
A última década do cinema de Eastwood tem incluído um pouco de tudo, revelando uma agilidade criativa que supera, e muito, a exuberância “juvenil” dos que são meros gestores dos milhões de dólares gastos nos efeitos especiais dos seus filmes. Por exemplo, com A Troca (2008) fez um drama convulsivo, centrado no desaparecimento de uma criança, que valeu a Angelina Jolie uma das melhores interpretações da sua carreira. Antes de Correio da Droga, arriscou mesmo fazer um filme sustentado por um realismo radical: 15:17 Destino Paris (2018) é a história verídica de três jovens soldados americanos em férias na Europa que, em 2015, ao viajarem num comboio entre Amsterdão e Paris, impedem um ataque terrorista. Apostado em obter uma sensação carnal de realismo, Eastwood acabou por escolher os três soldados como intérpretes das suas personagens... Afinal de contas, esta é também uma forma de experimentar os limites do cinema, sem recorrer a efeitos especiais.


>>> Clint Eastwood em Senses of Cinema.
>>> Clint Eastwood na série American Masters [PBS].
>>> 'A lenda de Clint Eastwood': ensaio fotográfico na Time.

terça-feira, outubro 09, 2018

Novo filme de Clint Eastwood

Clint Eastwood, 88 radiosos anos, filma-se a interpretar uma personagem de 90... The Mule chega aos ecrãs americanos a 14 de Dezembro, obviamente a tempo de entrar na corrida aos Oscars — o argumento tem assinatura de Nick Schenk, que já colaborou com Eastwood em Gran Torino (2008); e o trailer aí está.

sexta-feira, fevereiro 23, 2018

Clint Eastwood, cineasta realista (2/2)

O novo filme de Clint Eastwood, 15:17 Destino Paris, não foi, estranhamente, mostrado à imprensa — este texto foi publicado no Diário de Notícias (16 Fevereiro), com o título 'A implosão de Hollywood'.

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Tempos estranhos na vida dos filmes. Em vários países — incluindo Portugal, França e Brasil —, o novo filme de Clint Eastwood, 15:17 Destino Paris, não foi previamente mostrado à imprensa. O carácter excepcional desta medida (nas últimas décadas, há muito poucos exemplos semelhantes) justifica que expressemos, no mínimo, uma triste perplexidade. Quanto mais não seja porque a ela se cola uma pergunta incontornável: será que a indústria de Hollywood, cada vez mais marcada pelas formatações impostas pelos filmes de super-heróis, já se dá ao luxo de menosprezar o trabalho de alguém como Clint Eastwood?
Não se trata, entenda-se, de especular sobre as “culpas” dos distribuidores daqueles países: a decisão provém da origem, isto é, dos estúdios da Warner Bros. e nem sequer reflecte qualquer princípio de “globalização” (The New York Times e alguns outros jornais americanos publicaram críticas ao filme antes da respectiva data de estreia nos EUA). Acontece que há qualquer coisa de absurdo quando um tão poderoso sistema industrial opta por não divulgar o trabalho de uma personalidade que marca o último meio século de Hollywood e que, salvo melhor opinião, continua a ser um dos seus ícones mais universais (e também mais rentáveis, vale a pena acrescentar).
Será que um episódio deste género significa que estamos perante uma indústria que já nem sequer sabe valorizar a sua fascinante diversidade interna? Nos últimos anos, algumas vozes têm chamado a atenção para o facto de Hollywood, ao privilegiar os modelos dos “blockbusters” de super-heróis, correr riscos de implosão. Entre tais vozes estão Steven Spielberg, George Lucas, Steven Soderbergh e Jodie Foster. Posso estar enganado, mas não creio que sejam jornalistas ou críticos de cinema.

domingo, fevereiro 18, 2018

Clint Eastwood, cineasta realista (1/2)

Anthony Sadler, Spencer Stone, Clint Eastwood e Alek Skarlatos
[MovieWeb]
O novo filme de Clint Eastwood, 15:17 Destino Paris, transforma figuras verídicas em actores das suas personagens — este texto foi publicado no Diário de Notícias (16 Fevereiro), com o título 'Os soldados de Clint Eastwood são actores da sua própria história'.

Vivemos num tempo de proliferação de imagens, muitas delas empenhadas em mostrar-nos o que é, e como é, o mundo à nossa volta. Em particular na televisão, somos todos os dias bombardeados pelas transmissões em directo, apostadas em construir uma visão dos acontecimentos “em tempo real”. Dito de outro modo: no audiovisual contemporâneo, directa ou indirectamente, a questão da verdade está sempre presente. Com uma pergunta obsessiva: que grau de verdade podemos, ou devemos, atribuir àquilo que nos é dado ver?
Com o seu novo filme, 15:17 Destino Paris, Clint Eastwood apresenta uma singularíssima resposta a tal pergunta. Dir-se-ia que o veterano realizador (87 anos) quis baralhar e voltar a distribuir as cartas estéticas e éticas de um jogo tão delicado quanto complexo: para dar conta da experiência verídica de três jovens soldados americanos que impediram um ataque terrorista num comboio, Eastwood escolheu os próprios soldados como intérpretes das suas personagens.
São eles Spencer Stone, Anthony Sadler e Alek Skarlatos, com 22-23 anos no Verão de 2015. Em férias na Europa, depois de um périplo por vários países, saíram de Amsterdão para Paris no dia 21 de Agosto, tomando o comboio de alta velocidade Thalys, com partida às 15h17. A certa altura, um jovem marroquino de nome Ayoub El Khazzani, depois de muitos minutos fechado numa casa de banho, irrompeu nos corredores do comboio ameaçando os passageiros com uma espingarda e uma pistola (na sua mochila transportava uma grande quantidade de munições e uma lata de petróleo).
No misto de confusão e pânico que se instalou, El Khazzani ainda feriu um passageiro, mas graças à acção de Stone, Sadler e Skarlatos, o atacante seria neutralizado. Poucos dias mais tarde, os três jovens americanos (e ainda Chris Norman, britânico que teve também um papel determinante nos acontecimentos) receberiam a Legião de Honra do estado francês das mãos do presidente François Hollande.

À flor da pele

A envolvente energia do filme está longe de se esgotar nos minutos do ataque, afinal tão breves quanto perturbantes. Aliás, a obsessão realista de 15:17 Destino Paris produz um efeito francamente fora de moda. Escusado será sublinhar que o olhar de Eastwood nada tem a ver com as convenções mil vezes repetidas das aventuras de super-heróis. Mas também não se pode dizer que o heroísmo das suas três personagens centrais seja, para ele, um tema épico.
15:17 Destino Paris não é uma epopeia, antes uma crónica marcada pelos contrastes mais extremos da condição humana. Assim, as fascinantes cenas de Stone, Sadler e Skarlatos ainda crianças relembram-nos que os respectivos perfis mentais e emocionais se enraízam em estruturas familiares específicas e modos muito particulares de educação; no caso de Stone e Skarlatos é particularmente importante o facto de serem filhos de mães solteiras e também a sua passagem por um liceu de inspiração cristã (na visão de Eastwood, os respectivos métodos educacionais não serão um modelo de atenção às subtilezas da infância e adolescência).
Mais tarde, quando os vemos a deambular por cenários europeus, não há nenhum determinismo heróico no seu comportamento; somos mesmo levados a observá-los como protótipos do cliché do turista americano, mais ou menos indiferente aos cenários que vai registando no seu telemóvel (observe-se o seu enfado perante as maravilhas de Veneza).
Quando irrompe a cena brutal do comboio, o que mais conta é esse contraste entre a condição vulgar das personagens e o carácter excepcional do seu comportamento naquele momento tão dramático. Eastwood continua a ser um retratista de um paradoxo visceralmente humano: os heróis não protagonizam uma “missão”, são apenas figuras anónimas do comboio que partiu 17 minutos depois das três da tarde.

sábado, dezembro 16, 2017

O realismo segundo Clint Eastwood

O novo filme de Clint Eastwood, The 15:17 to Paris, baseia-se na história verídica de Spencer Stone, Anthony Sadler e Alek Skarlatos, três jovens soldados americanos que, a 21 de Agosto de 2015, impediram a consumação de um ataque terrorista no comboio em que viajavam, de Amsterdão para Paris. Uma história realista, por certo, que Eastwood terá querido encenar através do mais peculiar efeito de verdade. Assim, o filme não só se baseia no livro que Stone, Sadler e Skarlatos escreveram (com a colaboração de Jeffrey E. Stern), como apresenta os três soldados a interpretarem os seus próprios papéis.
A estreia americana está marcada para 9 de Fevereiro (dia 15 em Portugal, com o título 15:17 Destino Paris) — eis o trailer.

quinta-feira, setembro 15, 2016

Um avião sobre Nova Iorque

SULLY (2016)
As imagens do 11 de Setembro assombram muitos filmes e os mais brilhantes cineastas resistem a banalizá-las — este texto foi publicado no Diário de Notícias (11 Setembro), com o título 'Memórias de um avião sobre Nova Iorque'.

Já todos vimos aquelas breves montagens de auto-promoção que existem em muitos canais televisivos de todo o mundo. Com maior ou menor talento de montagem, nelas confluem imagens dos mais diversos eventos que, directa ou indirectamente, associamos a acontecimentos que já foram notícia. Por vezes, nos canais desportivos, tal prática tem dado origem a peças breves e brilhantes, capazes de celebrar a beleza abstracta dos movimentos do desporto, do futebol à ginástica.
As coisa mudam de figura — em boa verdade, são as imagens que mudam — quando se convocam referências, não a um jogo de futebol eventualmente identificável, mas a eventos muito concretos cuja inscrição na história da humanidade está muito para além do mero impacto visual. Como espectador, há um exemplo que sempre me choca: a integração de dois ou três segundos das Torres Gémeas de Nova Iorque a serem destruídas no dia 11 de Setembro de 2001. Porque falo em choque? Porque não posso deixar de relançar a pergunta: até que ponto a criação de um qualquer clímax visual, pueril e efémero, se tornou um valor (televisivo) mais forte do que a preocupação de lidar com a infinita complexidade de cada acontecimento?
Quinze anos depois, escusado será dizer que as memórias do 11 de Setembro continuam a ser uma pedra de toque do modo como são geridas, em particular na paisagem audiovisual, as nossas memórias. As imagens da queda do World Trade Centre não são apenas matéria de qualquer banco de imagens, uma vez que pertencem, de forma dramática e dolorosa, ao imaginário colectivo.
Muito para além dos automatismos e da “velocidade” televisiva, têm sido alguns cineastas a dar mostras de uma exigência, com tanto de estético como de ético, face à perturbação inerente às imagens do 11 de Setembro. Vale a pena recordar, por exemplo, os primeiros sinais dessa perturbação em A Última Hora (2002), de Spike Lee, ou a sua inscrição no interior de uma história de profundo intimismo, como acontecia em Extremamente Alto, Incrivelmente Perto (2011), de Stephen Daldry, inspirado no romance homónimo de Jonathan Safran Foer.
O exemplo do novo filme de Clint Eastwood, Sully (estreado há dias entre nós como Milagre no Rio Hudson), é tanto mais admirável quanto parte de um facto verídico — uma “aterragem” de emergência nas águas do Hudson, em 2009 — que tem no seu centro a mais perversa das “coincidências”. A saber: um avião a voar, a baixíssima altitude, sobre Nova Iorque.
Não por acaso, numa sequência que, por si só, define o génio de um olhar, Eastwood encena o misto de perplexidade e medo com que algumas personagens observam o dramático voo rasante do capitão Sully (Tom Hanks). Não se trata apenas de valorizar o efeito realista que as imagens podem gerar. Estamos também perante uma forma de olhar e pensar que não reduz as imagens a instrumento “publicitário”, sabendo respeitar a sua energia pulsional.

sábado, setembro 10, 2016

Tom Hanks, um herói clássico

A odisseia do Airbus que aterrou no rio Hudson, em 2009, surge agora transfigurada num espantoso filme de Clint Eastwood, com Tom Hanks no papel central — este texto foi publicado no Diário de Notícias (7 Setembro), com o título 'Clint Eastwood, um herói, o seu avião e a aterragem dele'.

Por vezes, o cinema consegue a proeza de intensificar o que já sabíamos, ou julgávamos saber, através do jornalismo. Um filme pode mesmo funcionar como uma espécie de viagem jornalística através da mais radical intimidade dos seres humanos. O novo filme realizado por Clint Eastwood, Milagre no Rio Hudson, é um desses objectos mágicos, afinal apaixonado pela objectividade.
E o que já sabíamos foi, de facto, assunto de primeira página em todo o mundo. No dia 15 de Janeiro de 2009, o voo 1549, da US Airways, partiu do aeroporto de LaGuardia, na zona norte de Nova Iorque. Poucos minutos depois, um bando de pássaros inutilizou os dois motores do avião, um Airbus A320, obrigando o comandante Chesley Sullenberger a uma decisão drástica: tentar voltar atrás, correndo o risco de despenhar-se numa zona habitacional, ou dirigir-se para... as águas do rio Hudson?
Sullenberger e o seu primeiro oficial, Jeffery Skiles, conseguiram a proeza de manter o avião em equilíbrio, “aterrando” na água, para mais num dia de agrestes temperaturas negativas. A impressionante serenidade do comandante e da tripulação, rapidamente auxiliados por diversas embarcações do porto de Nova Iorque, garantiu o salvamento de todas as 155 pessoas a bordo do Airbus.
A imagem do avião com dois escorregas insufláveis junto às asas tornou-se um símbolo universal da operação (servindo agora de inspiração a um dos cartazes do filme). Sullenberger foi rapidamente mediatizado através do diminutivo usado pelos seus companheiros, “Sully” (é esse, aliás, o título original do filme), mas até que ponto essa proximidade gerada pelos meios de informação correspondia a um genuíno conhecimento da personagem?
É dessa dúvida que parte o filme de Eastwood, aliás inspirando-se no livro que Sullenberger escreveu com Jeffrey Zaslow, agora editado entre nós, também com o título Milagre no Rio Hudson (ed. Marcador). É uma dúvida tanto mais pertinente quanto Sully viveu uma segunda odisseia, por certo menos épica, mas profundamente perturbante: a comissão de inquérito nomeada para estudar o acidente começou por considerar que ele não garantiu a segurança possível — regressando a LaGuardia ou a outro aeroporto igualmente próximo —, argumentando através de diversas simulações de computador que, com e sem intervenientes humanos, consideraram a manobra o Airbus um erro evitável.
Eastwood consegue a proeza de fazer um filme de imaculado classicismo, ao mesmo tempo colocando-se entre a vanguarda tecnológica. Clássico, Milagre no Rio Hudson é-o pela visão moral do herói solitário — Sully é aquele que não abdica da necessidade de considerar o factor humano como elemento insubstituível da percepção do mundo. Ao mesmo tempo, numa época em que se confunde o trabalho de efeitos especiais com a invenção de monstros digitais, este é um exemplo raro de integração desses efeitos para encenar algo tão inusitado como um avião a “aterrar” num rio...
Escusado será lembrar que a sua sensibilidade artística está indissociavelmente ligada à decomposição dos valores do “western” clássico, precisamente o género que, até finais da década de 50, mais e melhor condensou uma visão mítica e redentora da construção da própria América. Aliás, Eastwood ficou como um símbolo central dessa decomposição através dos filmes que, entre 1964 e 1966, rodou em Itália sob a direcção de Sergio Leone (Por um Punhado de Dólares, Por Mais Alguns Dólares e O Bom, o Mau e o Vilão).
Chesley Sullenberger, o Sully filmado por Eastwood, pode ser visto como um herdeiro tardio, deliciosamente anacrónico, de um ideal de heroísmo (entenda-se: de dedicação à vida social) que até o próprio “western” foi perdendo. E não haveria muitos actores como Tom Hanks capazes de representar a comovente vulnerabilidade de um ser humano compelido a viver uma situação para a qual, nem mesmo do ponto de vista meramente técnico, foi (ou podia ter sido) preparado. Podemos apostar que a personagem de Sully valerá a Hanks, no mínimo, mais uma nomeação para o Oscar de melhor actor.

quinta-feira, fevereiro 26, 2015

A ideologia de Christian Grey

A dimensão ideológica de um filme não resultado do facto de poder haver personagens que assumem um discurso... ideológico: importa discutir a visão do mundo que se constrói, globalmente, através de cada narrativa — este texto foi publicado no Diário de Notícias (22 Fevereiro), com o título 'Christian Grey ou a ideologia da performance'.

Quando se discute a avalancha mediática, em particular televisiva, que acompanhou o lançamento de As Cinquenta Sombras de Grey não se está necessariamente a fazer juízos moralistas sobre o trabalho deste ou aquele jornalista. O que está em jogo não é a “quantidade” de notícias que se fizeram (muitas delas absolutamente inanes, é um facto). Trata-se, isso sim, de discutir o modo como um objecto sustentado por um marketing tão simplista e agressivo acaba, em muitos casos, por ser apresentado através da linguagem posta a circular pelo próprio marketing.
Há muitas outras maneiras de dizer isto. Eis uma variante justificada pela própria actualidade do mercado: há dias, chegou às salas o prodigioso Vício Intrínseco, de Paul Thomas Anderson, filme que, a partir do romance homónimo de Thomas Pynchon, evoca os fantasmas da década de 1970 através de uma narrativa toda ela marcada por um visão muito crua do sexo e de uma cultura de exaltação do prazer... Pois bem, o leitor poderá corrigir-me se eu estiver enganado, mas não me parece que tenha havido algum noticiário televisivo que lhe tenha dedicado um milésimo do tempo concedido a algemas, chicotes, estreias e ante-estreias de As Cinquenta Sombras de Grey, para mais com as contribuições de exasperante banalidade de “famosos” a quem continua a faltar o bom senso de reconhecerem que não têm nenhuma ideia para partilhar com os outros.
Seria, aliás, interessante que os dispositivos de leitura de determinados filmes fossem também aplicados a As Cinquenta Sombras de Grey. O contraponto, neste caso, pode ser Sniper Americano, de Clint Eastwood. Confesso que me espanta a severidade “política” com que algumas abordagens (emanadas de sectores da esquerda americana) têm condenado o filme pela sua visão da guerra. De facto, o aparato ideológico com que Eastwood aborda a morte em combate, o valor irrisório que pode assumir uma vida e o impossível resgate de qualquer solidão individual é rigorosamente idêntico ao que sustenta o seu sempre mitificado Imperdoável (1992)... Como a mesma visão do mundo suscita paixões tão contraditórias, eis um mistério por esclarecer.
É desconcertante observar como essa severidade “ideológica” se aplica a determinados filmes, enquanto As Cinquenta Sombras de Grey passa, entre os pingos da chuva, como se a única questão pertinente fosse a avaliação métrica das zonas de nudez com que podemos ser gratificados. É mesmo chocante que, num contexto em que tudo se “problematiza”, desde a justiça dos resultados do futebol até aos colarinhos sem gravata de Yanis Varoufakis, pouco ou nada se diga sobre o modo de encenação da personagem de Christian Grey.
Porquê? Porque com ele, e através dele, triunfa a ideologia da pura performance técnica. Christian Grey ficará mesmo como a corporização de um conceito meramente instrumental das actividades humanas, incluindo o sexo, colocado, aliás, exactamente no mesmo plano simbólico da acumulação de riqueza. Ora, não parece que os valores mediáticos dominantes queiram discutir o triunfo desta ideologia anti-humanista. Perante o alarido circundante, podemos até supor que estão empenhados em consagrá-la.

sábado, janeiro 31, 2015

O "sniper" de Clint Eastwood (2/2)

Bradley Cooper e Clint Eastwood
De que falamos quando falamos de uma situação de guerra? O novo filme de Clint Eastwood surge na encruzilhada dessa pergunta, da sua importância e também dos seus equívocos — este texto foi publicado no Diário de Notícias (20 Janeiro), com o título 'Em guerra com Clint Eastwood'.

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Uma vez que este texto se coloca sob o signo de um filme sobre uma situação de guerra — Sniper Americano, de Clint Eastwood —, começo por avisar que a disposição das minhas ideias no terreno corre o risco de ofender amigos e inimigos. Devo, por isso, desde já, pedir desculpa aos primeiros.
Confunde-me o modo como Sniper Americano tem suscitado as mais inusitadas considerações ideológicas (que, em qualquer caso, não podem ser reduzidas a um discurso unívoco). Não é uma questão portuguesa. É mesmo, sobretudo, um fenómeno americano, com o filme a desencadear paixões contraditórias do outro lado do Atlântico, em muitos casos favorecendo uma equação maniqueísta: um filme que coloca em cena alguém (um “sniper”) que, por definição, agride outros seres humanos só poderá ser uma “consagração” cega da sua actividade...
Confesso o mesmo tipo de perplexidade que experimento face ao dispositivo de pensamento em torno do atentado contra o Charlie Hebdo. A saber: não iremos restringir o quadro legal das nossas liberdades... Tudo bem. Mas até que ponto a força simbólica das nossas convicções consegue desviar as balas das Kalashnikovs e compreender a extrema complexidade histórica, cultural e política do seu pano de fundo?
Pensava eu que uma preciosa lição da semiologia dos anos 60 aplicada ao cinema (cf. Christian Metz) constituía saber adquirido. Ou seja: há uma diferença — narrativa, estrutural e simbólica — entre o discurso de uma personagem e o discurso do filme em que surge.
Em Apocalypse Now (1979), por exemplo, a personagem de Martin Sheen está enraizada numa lógica militar rigorosamente idêntica à do protagonista de Sniper Americano: destruir o outro que o assombra. No entanto, ainda estou para ler alguma condenação de Francis Ford Coppola por ter encenado uma personagem cujo comportamento decorre de uma missão específica, concreta e iniludível, de assassinato desse outro (“com absoluta devastação”, como se diz nos diálogos).
Não há pacifismo simples. E nem sequer estou a referir-me à realidade, nua e crua, da realpolitik cujas derivações, transparentes ou enigmáticas, não cabem no espaço destas linhas. Falo de cinema e também, necessariamente, de televisão. E espanto-me com o facto de Hollywood — cuja riqueza artística me apaixona — continuar a gerar alguns filmes de “super-heróis”, totalmente maniqueístas no plano ideológico, assustadoramente estúpidos na sua dramaturgia, filmes tantas vezes ignorados porque são “para miúdos”, ao mesmo tempo que o problema parece estar na inteligência cinematográfica e no difícil humanismo de um senhor chamado... Clint Eastwood!
Tudo isto, convém relembrar, enquanto vivemos rodeados pela vergonha humana do Big Brother e seus derivados. Compreendo, sem qualquer acinte, que se possa não partilhar a visão de Eastwood. Mas queria menos idealismo e mais política face à nossa miséria audiovisual.

sexta-feira, janeiro 30, 2015

O "sniper" de Clint Eastwood (1/2)

De que falamos quando falamos de uma situação de guerra? O novo filme de Clint Eastwood surge na encruzilhada dessa pergunta, da sua importância e também dos seus equívocos — este texto foi publicado no Diário de Notícias (20 Janeiro), com o título 'A ideologia tem as costas largas'.

A discussão “ideológica” em torno do filme Sniper Americano corre o risco de ser tão simplista como a agitação que acompanhou os derradeiros filmes de Alfred Hitchcock, em particular Cortina Rasgada (1966), um thriller passado na República Democrática da Alemanha. Ao fazer um retrato não muito simpático da polícia política daquele estado comunista, Hitchcock daria provas de escandalosa falta de abertura... Quarenta anos depois, quando os alemães fizeram um contundente filme de denúncia dessa mesma polícia (As Vidas dos Outros, 2006), os vigilantes culturais bateram palmas, comovidos. Pois...
Agora, quando lemos certas considerações sobre Clint Eastwood, deparamos com a mesma singela doença ideológica: para muita boa gente, obviamente bem intencionada, um filme torna-se político, não porque envolva a responsabilidade de um criador face ao mundo, mas quando é possível colar algum rótulo ideológico à acção do seu protagonista.
Não se trata de dizer que Eastwood não é eminentemente político. Quem o não é? Acontece que as questões de resistência individual, da solidão dessa resistência e da angústia de ter um lugar onde seja possível regressar, tão importantes em Sniper Americano, são exactamente as mesmas que atravessavam, por exemplo, um filme como Million Dollar Baby (2004), assinado pelo mesmíssimo Eastwood.
O mais triste desta anedótica politização do cinema é que, através dela, se passa ao lado das admiráveis nuances do trabalho de Eastwood, exemplarmente condensadas na delicada e convulsiva interpretação de Bradley Cooper. Vivemos num mundo que todos os dias aceita, passivamente, a vergonha humana (e política!) da reality TV. Mas basta um homem de cinema dar provas de inteligência e subtileza para ser apontado como um perigoso suspeito.