Em outubro do ano passado, pouco depois do lançamento do álbum Hackney Diamonds, os Rolling Stones foram entrevistados por Anthony Mason, para o programa CBS Sunday Morning. Agora, a CBS divulgou o respectivo registo, na íntegra — apesar da sua brevidade, são momentos de comunhão através da música e também uma lição muito básica de como fazer televisão sem agitações postiças, apenas através do desejo de conhecer.
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terça-feira, agosto 27, 2024
sábado, dezembro 23, 2023
A propósito do documentário
ETA - Conversas com um Terrorista
Josu Urrutikoetxea no filme Marius Sánchez/Jordi Évole: memórias trágicas |
Produzido e difundido pela Netflix, ETA - Conversas com um Terrorista é aquilo que o título anuncia: um diálogo com um homem que foi membro da ETA. Os seus trunfos cinematográficos são o cuidado informativo e a serenidade da linguagem — este texto foi publicado no Diário de Notícias (21 dezembro), com o título 'Histórias individuais e colectivas'.
O menos que se pode dizer de um filme como ETA - Conversas com um Terrorista (Netflix), realizado pela dupla espanhola Marius Sánchez/Jordi Évole, é que tudo aquilo com que nos confronta tem tanto de complexo como de perturbante. Traduzindo aproximadamente o título internacional, Face to Face with ETA: Conversations with a Terrorist, o título português é para ser tomado à letra: a matéria central é uma entrevista com Josu Urrutikoetxea (à beira de completar 73 anos), membro da organização separatista basca que, como é referido na legenda de abertura do filme, foi responsável pelo assassinato de 852 pessoas, causando 2661 feridos, entre 1968 e 2010, tendo anunciado a sua dissolução em 2018.
À partida, dir-se-ia que estamos perante um convencional “especial” televisivo, mesmo se, como é óbvio, as singularidades do entrevistado estão longe de ser indiferentes para o resultado. Até porque a situação de entrevista envolve uma tensão inevitável: os dois realizadores (sendo Jordi Évole o que conduz o diálogo e também o único que aparece nas imagens) não podem deixar de confrontar Urrutikoetxea com as memórias dos atentados e o seu rol de vítimas, procurando também perceber como é que ele se sente (e sentiu) face à brutalidade da violência da ETA.
Como o espectador descobrirá, Urrutikoetxea tenta manter um discurso de contrastes, com uma clara prudência defensiva. A evolução da sua própria situação no interior da ETA traduz-se num ziguezague de informações e comentários que vai do reconhecimento da lógica perversa de alguns atentados, nomeadamente na proliferação de vítimas civis, até outras situações em que, segundo ele, não compreende “o que passou pela cabeça” dos que planearam determinadas formas de violência. É significativo que ele diga ao entrevistador que não quer ser tratado pelo seu nome de combate, Josu Ternera — o título espanhol é mesmo No me Llame Ternera [Festival de San Sebastian].
Nada disto resvala para o pitoresco sensacionalista que, por vezes, contamina as narrativas televisivas da mesma família. Sublinhe-se, em particular, o modo como a pedagógica inserção das imagens de arquivo permite reconhecer as marcas da violência da ETA e também os seus efeitos em cadeia na esfera política e, claro, na sociedade espanhola. O certo é que este resumo do filme está longe de dar conta da fundamental subtileza que o faz funcionar.
É uma subtileza, não televisiva, mas cinematográfica. Assim, o frente a frente com Urrutikoetxea não é a única conversa que o filme apresenta: existe um outro diálogo, com Francisco Ruiz, que foi membro da segurança do presidente da câmara de Galdakao, morto num atentado da ETA, a 9 de fevereiro de 1976 — Ruiz estava de serviço, mas, apesar de ter sido atingido por várias balas, sobreviveu. Ora, ETA - Conversas com um Terrorista organiza-se como um confronto (talvez possamos aplicar uma clássica expressão da linguagem dos filmes: um campo/contracampo) entre as imagens dos dois homens. Em resumo: através de um sóbrio didactismo, este é um trabalho capaz de nos convocar para a infinita complexidade das histórias individuais e colectivas.
terça-feira, janeiro 10, 2023
A felicidade segundo Billie Eilish
Billie Eilish, personagem do nosso tempo acelerado |
Que significa dizer “eu” perante uma câmara de filmar? Afinal, que sabemos (ou não sabemos) da nossa identidade? — este texto foi publicado no Diário de Notícias (25 dezembro).
Sinais do tempo… Mapas de uma civilização… Porque é que o facto de fazermos pose ou falarmos directamente para uma câmara (do nosso telemóvel, por exemplo) passou a ser encarado — e, mais do que isso, infinitamente multiplicado — como um automático bilhete de identidade para consumo dos outros? E porque é que consideramos “natural” essa compulsão de nos expormos ao olhar dos outros? Afinal de contas, no Instagram, no momento em que escrevo este texto, fazendo uma pesquisa com a referência #selfie, podemos encontrar mais de 450 milhões de imagens…
Billie Eilish, nascida em Los Angeles a 18 de dezembro de 2001, por certo um dos maiores (e, a meu ver, mais fascinantes) talentos da actual música popular, tem sido protagonista regular de um desses exercícios de exposição individual. Assim, desde 2017, sempre no dia 18 de outubro, a Vanity Fair entrevista-a, colocando-lhe uma série de perguntas sobre a vida pessoal e profissional. As respostas de cada novo ano dão origem a um video (o mais recente dura 21 minutos, está disponível no site da revista e também no YouTube) pontuado por diversos paralelismos com as respostas, e respectivas imagens, de anos anteriores.
Duas perguntas servem para lançar a última gravação: primeiro, qual a idade de Billie Eilish, suscitando um painel de seis imagens em que começamos por vê-la e ouvi-la dizer que tem 15 anos (em 2017) até à entrevista mais recente, com 20 anos (faltavam dois meses para celebrar 21); depois, qual o número dos seus seguidores no Instagram — de 257 mil no primeiro registo até mais de 106 milhões na actualidade (entretanto, já passou os 107 milhões).
Escusado será dizer que não estamos perante uma derivação audiovisual do “estilo” pueril, muitas vezes tristemente anedótico, de muitas selfies. Para lá da sofisticação da apresentação e montagem do video, a inteligência de Billie Eilish faz com que as respostas, mesmo às perguntas mais banais (“O que comeu hoje? Como está decorado o seu quarto?”), surjam tocadas por um misto de gravidade e humor.
Deparamos com uma genuína performance. Entenda-se: no sentido mais literal (e, precisamente, mais genuíno) que a palavra “performance” pode envolver. Billie Eilish tem óbvia consciência do dispositivo teatral, ou teatralizado, através do qual comunica connosco, ao mesmo tempo entregando-se a tal dispositivo com a disponibilidade de quem procura um auto-retrato estável.
Ou talvez não. A certa altura, nas imagens de 2019 fala-nos da “manutenção da minha felicidade” como algo que “já não sentia há muitos anos”… O que nos garante que, ainda antes de completar 18 anos, ela se via (e representava para nós) como alguém a perseguir uma felicidade que lhe tem escapado durante “muitos anos”. Assim mesmo: “muitos anos”…
Seria fácil considerar que esta aceleração dos modos de viver (e pensar o viver) reflecte uma qualquer crise da juventude. Acontece que ser jovem e chamar-se Billie Eilish é uma excepção absoluta que não pode confundir-se com a existência dos milhões que a seguem e vivem no mais radical anonimato. Rotular Billie Eilish como mero símbolo “juvenil” seria mesmo ceder ao mais obsceno paternalismo mediático, supondo que há uma fronteira nítida e, mais do que isso, intransponível, entre o seu modo de ser e a identidade de alguém (seja quem for) de qualquer outra geração.
Nesse passado muito próximo, a crise que Billie Eilish diz ter atravessado condensava-se numa frase eloquente: “Não sei se me sinto ligada a mim própria.” Um ano mais tarde, já com um novo ponto de vista, reconhece que andava a “fingir ser Billie Eilish”. E ainda: “Sentia-me como uma paródia de mim própria.”
Esta é, afinal, a cantora/compositora que editou dois álbuns cujos títulos vale a pena traduzir: “Quando todos adormecemos, vamos para onde?” (2019) e “Mais feliz do que nunca” (2021). O primeiro assombrado por uma inequívoca pulsão de morte — ouça-se a canção Bury a Friend e veja-se o respectivo teledisco; o segundo numa missão de resgate da ideia de felicidade.
A certa altura, surge um segmento “tradicional”, quase sempre deprimente, deste tipo de videos: responder a algumas perguntas de fãs… Billie Eilish sabe ser directa e sintética, não alimentando patéticas ilusões de intimidade. Quando lhe perguntam se já fumou erva e se quer ter filhos, responde da forma mais austera, sucessivamente: “não” e “sim”. Sem esquecer que há pelo menos uma resposta que desmancha qualquer possível barreira geracional — a pergunta é: “Qual a sua banda preferida?”; a resposta: “Os Beatles”.
sexta-feira, setembro 23, 2022
João Botelho
— retrospectiva / entrevista [1/2]
© Paulo Alexandrino/Global Imagens |
A primeira longa-metragem de João Botelho, Conversa Acabada, surgiu em 1981. Daí até ao recente Um Filme em Forma de Assim, o cineasta percorreu um caminho em que as formas do cinema nascem, quase sempre, de uma relação criativa com a literatura. Agora que a sua obra pode ser vista em retrospectiva na Cinemateca (até ao final de setembro), revisitamos com ele temas e silêncios da história portuguesa — esta entrevista foi publicada no Diário de Notícias (3 setembro), com o título '“Aprendi com o Sr. Pessoa que a minha pátria é a língua portuguesa”'.
A retrospectiva dos teus filmes na Cinemateca tem um título que tu próprio escolheste: “Os filmes são histórias, o cinema é o modo de as filmar” — queres explicar?
Quero, é muito simples. Cito sempre o exemplo da Madame Bovary. Conheço várias adaptações ao cinema do romance de Gustave Flaubert: uma do Renoir, outra do Minnelli, outra ainda do Oliveira (a “Bovary do Douro”, ou seja, Vale Abraão). São filmes maravilhosos e são filmes diferentes, tendo o mesmo texto como ponto de partida. Portanto, o cinema é, não as histórias, mas o modo de filmar as histórias. Gosto do cinema que se distancia das histórias, filtrando-as de maneira diferente.
Hoje em dia, face aos filmes é comum as pessoas citarem imensos pormenores de uma história, sem referir, por exemplo que a certa altura vemos um rosto em grande plano ou um plano geral de uma paisagem...
… ou onde está a câmara, ou que tipo de luz há neste ou naquele espaço. Nos meus filmes, a partir de certa altura, tive o cuidado de mostrar o artifício. Por exemplo, na abertura de Os Maias, tenho o Jorge Vaz de Carvalho — e não é gratuitamente que tenho um cantor de ópera — a ler o início do romance, mostrando atrás dele a parafranélia que vou utilizar no filme: desenhos, guarda-roupa, cabeleiras... Está tudo exposto. Tenho sempre o cuidado de mostrar que aquilo é um espectáculo, tudo o que está no ecrã é falso: já matei uma série de personagens nos meus filmes... e depois tomo café com eles.
É suposto o espectador saber que é um espectáculo?
Sim, e por isso tenho uma enorme inveja da ópera, em que todo o artifício do espectáculo está exposto: podes ter uma senhora de 100 quilos, com 60 anos, a interpretar uma adolescente — se cantar bem, se representar bem, vais às lágrimas! Isso tem-me levado a experimentar coisas como, por exemplo, filmar o canto, não em “playback”, mas em directo.
Foi o que aconteceu na longa-metragem mais recente, Um Filme em Forma de Assim.
Exactamente. A música foi filmada em directo, em planos-sequência — a música não está “por baixo”, passa a ser a matéria mais importante. Isso é uma derivação de uma ideia que em tempos formulei e à qual me mantenho fiel: a palavra como matéria, o texto como personagem.
Já adaptaste, entre outros, Almeida Garrett (Quem És Tu?), Agustina Bessa-Luís (A Corte do Norte), Eça de Queirós (Os Maias) — alguma vez sentiste que o próprio texto resistia à tua vontade de o transformar em coisa cinematográfica?
Sempre, o texto ganha sempre.
Ganha? Em que sentido?
O texto é sempre mais forte que o cinema. A única coisa que eu posso fazer é uma apropriação, uma espécie de violação do próprio texto. Por exemplo, houve quem achasse que, em Os Maias, a minha Maria Eduarda era muito frágil, como se estivessem à espera da Laura Antonelli a fazer uma personagem intensamente sexual. O certo é que, para mim, essa fragilidade era mais violenta, tornando o incesto ainda mais obsceno. Ao mesmo tempo, nos últimos filmes, por exemplo com o texto do Alexandre O’Neill em Um Filme em Forma de Assim, não acrescentei uma palavra — é um trabalho de “corta e cola”...
Há aí um paradoxo: preservas o texto, mas reconheces que aquilo que estás a criar é totalmente outra coisa. O que pode dar origem a outro paradoxo: não receias que os puristas considerem que atraiçoaste o texto?
Não atraiçoei. Cortei e colei, fiz o meu filme. Por exemplo, quando fiz Tempos Difíceis, segundo Charles Dickens, tirei-lhe a carne, ficou o osso: tudo o que era melodrama desapareceu, ficou a luta de classes.
É um trabalho semelhante à montagem?
É igual — aprendi com o Sr. Godard.
terça-feira, abril 14, 2020
Andrew Cuomo, face ao COVID-19
Fotografado por George Etheredge, Andrew Cuomo está na capa da edição de Maio da Rolling Stone. Em entrevista conduzida por Mark Binelli, o governador de Nova Iorque fala, antes do mais, dos dramas do seu estado, estatisticamente um dos mais castigados pelo COVID-19 em todo o território dos EUA. A sua actividade, incluindo as regulares aparições televisivas, transformaram Cuomo numa referência marcante para os cidadãos americanos — como se escreve no título, ele é alguém que "assumiu o comando". O seu lema poderá ser o que se enuncia nestas suas palavras: "(...) manter as coisas simples. Dizer a verdade. Dar factos às pessoas. Explicar o que se está a fazer, porque se está a fazer."
Para lá das componentes específicas de cada contexto nacional e do insubstituível labor dos que estão no terreno, a entrevista da Rolling Stone é mais um testemunho, de evidente apelo universal, que vale a pena ter em conta.
quinta-feira, setembro 19, 2019
Para ver & pensar o cinema português
Eis uma pequena grande vitória de A Herdade — obviamente não separável do impacto de alguns outros títulos recentes do cinema português, incluindo Snu, Tony e Variações. Dito de outro modo: apesar dos muitos maniqueísmos que continuam a assombrar a vida pública desse cinema — a começar pela estupidez ancestral da oposição entre filmes "populares" e filmes "intelectuais" —, a realização de Tiago Guedes, produzida por Paulo Branco, tem sido enquadrada pelos mais diversos exemplos de abordagem da sua especificidade enquanto objecto de cinema.
Eis também uma verdade rudimentar que todos sabemos, incluindo os que, por vezes, a querem escamotear: é possível ver & pensar os filmes sem favorecer a mediocridade argumentativa que consiste em arremessar números de bilheteira contra números de bilheteira...
Eis também uma verdade rudimentar que todos sabemos, incluindo os que, por vezes, a querem escamotear: é possível ver & pensar os filmes sem favorecer a mediocridade argumentativa que consiste em arremessar números de bilheteira contra números de bilheteira...
Escusado será dizer que relembrar tal estado de coisas é rigorosamente separável da performance comercial de A Herdade (hoje lançado nas salas), seja ela qual for. Recomenda-se, por isso, o muito interessante diálogo de Ricardo Gross com o realizador Tiago Guedes publicado há cerca de duas semanas nas páginas da Agenda Cultural de Lisboa — sem infantilismos jornalísticos, dois adultos falam sobre cinema.
quarta-feira, fevereiro 27, 2019
Os políticos portugueses e os seus cartazes
ALBRECHT DÜRER Auto-retrato 1498 |
Como é que os políticos se representam através das imagens da própria propaganda política? Que visão do mundo se exprime, por exemplo, nos seus cartazes? — este texto foi publicado no Diário de Notícias (21 Fevereiro).
Há dias, no final do “Jornal 2” (RTP2), Sandra Sousa conduziu uma breve e muito interessante conversa com Ricardo Pais. O pretexto imediato era a sua encenação da peça Oleanna, de David Mamet (Teatro Sá da Bandeira, Porto, até 17 de Março).
Foi com especial prazer que escutei as palavras concisas de Ricardo Pais sobre o texto de Mamet, explicando, em particular, a sua tão peculiar (e também tão inconfundível) arte do diálogo e sublinhando o desafio que representa para os actores. Para além disso, registo o modo preciso e eloquente com que lembrou uma verdade muito incómoda. A saber: o desinvestimento do Estado na chamada área cultural.
O assunto é árduo e, como é evidente, não “cabia” nos poucos minutos daquela conversa televisiva (nem nas linhas deste texto). Até porque se corre sempre o risco de esvaziar a difícil arte de fazer política, favorecendo a ideia simplista segundo a qual se trata apenas de distinguir os governos que investiram “mais” daqueles que investiram “menos”... e sabemos bem que a cena político-mediática está saturada de debates (?) desse género em que quase todos, de todos os quadrantes políticos, parecem apenas empenhados em encontrar algum radioso soundbyte.
Não querendo fazer extrapolações abusivas a partir das palavras de Ricardo Pais, direi apenas, em termos pessoais, que me parece que o desinvestimento atrás referido está longe de ser meramente financeiro. É, acima de tudo, um elemento estrutural de um universo político, direitas e esquerdas confundidas, que há muito desistiu de pensar culturalmente o mundo.
David Mamet |
Há excepções individuais, sem dúvida. Hoje como em décadas anteriores da nossa vida democrática. Mas também não se trata de multiplicar o simplismo, propondo uma espécie de “quadro de honra” no interior da classe política. Trata-se, isso sim, de perguntar como é que as entidades políticas que nos governam, já governaram ou podem vir a governar, pensam a cultura do país. Mais do que isso: como pensam culturalmente o país.
Será uma derivação esquemática, mas confesso que não pude deixar de recordar estes temas e dúvidas ao contemplar os cartazes que, preparando os próximos actos eleitorais, já começaram a proliferar nas ruas das nossas cidades. E perguntar: como é que os nossos políticos pensam as imagens? Ou apenas: como é que pensam as suas imagens?
Não tenho gosto nenhum em dizê-lo, mas receio que não pensem em nada que tenha a ver com a representação do mundo à sua volta — a começar pela representação de si próprios. Mais uma vez direitas e esquerdas confundidas, todos parecem obedecer aos conceitos criativos (?) de profissionais do marketing que, há anos, os fixaram num cliché único e unívoco: coloca-se uma foto tipo passe do político e ilustra-se com uma frase mais ou menos militante e apelativa.
Acima de tudo, importa que o fundo seja uma cor uniforme, pastel de preferência, não agressiva. Dito de outro modo: não há fundo representado (ou representável) para a imagem do político porque ninguém pensa, ou quer pensar, o contexto em que tudo isto está a acontecer.
Bem sei que a transformação das nossas vidas (já agora, se possível, para melhor) não se faz com cartazes nem se organiza com palavras de ordem. Ainda assim, quando os protagonistas da política acreditam que são aqueles cartazes que vão motivar os portugueses, contrariando, por exemplo, os seus hábitos abstencionistas, sou levado a pensar que há neles a candura chique de quem gosta de proclamar que “vivemos num mundo de imagens”, mas que nunca dedicou um escasso minuto do seu tempo a pensar o que isso pode querer dizer. Ou significar.
sábado, dezembro 01, 2018
João Botelho e o progresso das formas [2/2]
OS MAIAS |
De Conversa Acabada (1981) ao mais recente Peregrinação (2017), os filmes de João Botelho surgem em retrospectiva no Lisbon and Sintra Film Festival (LEFFEST): aos 69 anos de idade, o cineasta confessa que sente a falta do gosto colectivo de descobrir o cinema — esta entrevista foi publicada no Diário de Notícias (20 Novembro).
[ 1 ]
Pensando nesta retrospectiva no LEFFEST, que filme ou filmes da tua obra conseguiram gerar essa comunhão [cinematográfica]?
Conversa Acabada foi um fenómeno de divisão, metade a gostar, metade a não gostar... Creio que Um Adeus Português ou Tempos Difíceis geraram essa comunhão. Houve uma altura em que aquilo que eu fazia seria, talvez, muito arriscado, acabando por obter um impacto internacional mais forte do que internamente. Quando adoptei outra atitude, com Filme do Desassossego ou Os Maias, procurando lutar contra o esquecimento, enfim, fazendo serviço público, os filmes começaram a funcionar melhor em Portugal do que lá fora... Mas o mais difícil é conseguir que os adultos voltem às salas — Os Maias terá sido o filme que mais conseguiu isso.
Quer isso dizer que, apesar de tudo, ainda há alguma disponibilidade que decorre do interesse pela nossa herança literária?
Sim, porque as pessoas podem ter lido ou apenas julgarem que leram Os Maias, mas persiste na sua memória como um dos grandes romances do século XIX português. Mas não é necessariamente por ter a ver com literatura. Poderia ser, por hipótese, um filme sobre o Amadeo de Souza Cardoso ou as fotografias do Carlos Relvas — há referências em relação às quais os adultos ainda têm algum interesse; os miúdos, não sei... Mas não é tanto uma questão de cultura, é sobretudo uma questão de educação: o sistema educativo português não é suficientemente atractivo e exigente.
Deveria haver um contacto das crianças com o cinema promovido, antes do mais, pela escola?
Sem dúvida. Há um menosprezo pela história do cinema que importa contrariar. Os pensadores da história do cinema, como o Sr. Godard, continuam a ser minoritários.
As crianças e os jovens estão a ser mais educados pelo cinema ou pela telenovela?
Nem por uma coisa nem por outra — estão a ser educados, não exactamente pelas “fake news”, mas pelo carácter mundano das coisas, pela sua facilidade. Hoje, já ninguém fala com os outros. O Google resolve uma dúvida em 30 segundos... mas 90% daquilo é lixo e consumo. Os “fait divers”, as notícias ridículas e pequeninas, a vida íntima, tudo isso passou a ser mais importante que as obras — as pessoas lêem pequenos resumos e acham que sabem tudo. Ao mesmo tempo, quero ser optimista e não posso deixar de lembrar que há uma minoria que também é forte, mas são casos individuais, não há ligação entre eles, não há diálogo.
Existia o colectivo. Antes do cinema, lembro-me que, em Coimbra, havia um tipo que sabia de jazz e chamava-nos para escutarmos o último disco do Miles Davis em casa dele... Na casa de outro, líamos em voz alta o Quarteto de Alexandria. Havia formas colectivas de aprendizagem.
E deixou de haver?
Quando apareceu, a televisão matou um pouco do cinema. Mesmo assim, era um acontecimento colectivo: a família via e discutia. Depois, cada um passou a ter uma televisão no seu quarto. Agora, já nem tem televisão — há computadores e iPhones, é um individualismo virtual. Não há toque, não há pele, não há discussão. Tudo isso me inquieta, porque o reforço do individual reforça a manipulação dos indivíduos. Assistimos a uma vingança dos ignorantes sobre o saber, contra a surpresa. Muitas pessoas não querem ir ao cinema para serem inquietadas: querem ser confortadas e confirmar o que já sabem. No limite, as pessoas querem saber da vida privada dos autores, mas não querem saber das obras — ora, eu posso ter uma vida privada estapafúrdia, mas as obras são sérias.
Nesse aspecto, terás consciência de que muitas pessoas, eventualmente espectadores de cinema, te reconhecem mais como homem da noite e adepto do Benfica...
Cada vez menos adepto do Benfica — aquilo está a correr muito mal, gosto mais de futebol do que da palhaçada à volta do futebol. Mas homem da noite, sim, é verdade: se calhar, sou o último dos homens que, com esta idade, ainda dança, salta e diverte-se.
Mas o que é a noite? Uma cultura? Uma utopia?
É uma ideia da dança... É o Nietzsche [riso]: “Só acredito num Deus que saiba dançar”. É a tal ideia de comunhão — nessa noite, ainda há sentido colectivo. E a electrónica não é uma dança de engate, nem sequer de par, é realmente uma dança colectiva em qua cada um dança como quer.
O certo é que há um cliché que associa a noite apenas ao consumo do álcool.
Sim, é verdade, mas eu bebo pouco, não tenho ressacas. Sempre fui noctívago e isso, aliás, tem também a ver com a educação dos filhos. Como tive filhos com diferenças de cerca de cinco anos, só encontrava o silêncio às duas da manhã — o trabalho passou a ser à noite, sempre. Para mim, o pensamento tem de ser no silêncio.
sábado, novembro 24, 2018
João Botelho e o progresso das formas [1/2]
[FOTO: Miguel A. Lopes] |
De Conversa Acabada (1981) ao mais recente Peregrinação (2017), os filmes de João Botelho surgem em retrospectiva no Lisbon and Sintra Film Festival (LEFFEST): aos 69 anos de idade, o cineasta confessa que sente a falta do gosto colectivo de descobrir o cinema — esta entrevista foi publicada no Diário de Notícias (20 Novembro).
Para João Botelho, os mestres que o ensinaram a respeitar o cinema merecem tratamento especial. Assim, não se refere a Manoel de Oliveira, Jean-Marie Straub ou Jean-Luc Godard, mas ao “Sr. Oliveira”, o “Sr. Straub” e o “Sr. Godard”. Ao mesmo tempo, quando o LEFFEST apresenta uma retrospectiva da sua obra, ele é o primeiro a ter consciência de que, muitas vezes, é identificado não como criador de filmes, mas homem da noite e adepto do Benfica — para ele, trata-se, afinal, de preservar o silêncio em que o pensamento ainda é possível.
É uma coisa muito estranha. Foi tudo muito rápido, não tinha dado conta de ter feito tantos filmes. Há pouco tempo, em Madrid, revi Conversa Acabada que, afinal, foi rodado há 38 anos... Não me pareceu mal. Mas é esquisito porque, quando revejo um filme que fiz, aquilo já não me pertence — pertence às pessoas que o vêem, mesmo se, de alguma maneira, eu estou lá metido. As retrospectivas têm sempre algo de doloroso, parece que é o fim de uma coisa... Ora, eu quero continuar.
Será que há nos filmes uma espécie de auto-biografia?
Encontro, sobretudo, uma certa coerência — aquilo que fiz corresponde mais a uma ideia de cinema do que a uma preocupação de contar esta ou aquela história. Há um modo de filmar, talvez se possa mesmo identificar um estilo, que está presente desde o início.
Um modo primitivo de filmar?
É algo que aprendi com o Sr. Oliveira: nunca esquecer a tradição. Não se trata de copiar os filmes dos outros, mas sim preservar uma memória, não esquecer que o cinema tem uma história. Agora, acontece-me mesmo encontrar em alguns filmes mudos sinais mais contemporâneos do que nos filmes actuais. O Sr. Straub também me ensinou a não dizer “moderno”, aplicando antes essa mesma palavra: “tradição”.
Serão, talvez, os pais do cinema, a começar por Griffith...
Sim, também Griffith, mas não só. A questão é que o modo de filmar é mais importante que as histórias que se contam. Um dos defeitos que, por vezes, encontro nos meus filmes vem daí: é muito visível o modo de filmar, as pessoas podem sentir-se um bocadinho perdidas. Pode haver todo um pensamento de enquadramento, luz, sombras... que impede a fluidez: é uma atitude com virtudes e defeitos que não abdica de dizer que o cinema tem uma tradição, podia ter sido uma arte, mas foi o negócio que prevaleceu.
Jean-Luc Godard |
Hoje em dia, as salas de cinema são ocupadas a 90% por miúdos que vão ver desenhos animados com os pais e jovens adolescentes que vão ver super-heróis — não é uma questão portuguesa, acontece assim no mundo inteiro. Há uma vitória do entretenimento sobre o pensamento do modo de filmar. Quando um filme tem 3 mil planos e outros tantos efeitos sonoros, alguém dá atenção a alguma coisa? Não, ninguém dá atenção, ninguém vê. O que triunfa é uma certa euforia que, reconheço, também gera coisas engraçadas e divertidas... mas a ideia do pensamento foi arredada de muito cinema que se faz hoje. Daí que encontremos em algumas séries de televisão americanas melhores actores, melhores autores, no fundo, melhor cinema.
Seja como for, se pensarmos em Griffith, Renoir ou Bergman, o certo é que podemos encontrá-los na Net e, como se diz agora, vê-los em streaming. Que resta, então? Já não é a mesma coisa?
A obra está lá... mas falta a celebração colectiva, passou a ser um trabalho individual: “eu” posso ver aquilo sozinho! Despareceu essa ideia de que se podia ir a uma sala escura, todos se calavam e era possível experimentar uma emoção colectiva. Triunfou o individualismo e, como é óbvio, não é uma questão exclusiva do cinema: o “eu” sobrepôs-se ao colectivo. Por vezes, isso torna-se inquietante porque envolve a perda da aprendizem colectiva e a possibilidade de o “eu” se dissolver numa certa comunhão. Como o Sr. Godard já nos avisou, “eles” não procuram a evolução das formas, apenas querem o impacto mediático e o sucesso imediato — deixou de haver uma luta pelas ideias e pelo progresso das formas.
sexta-feira, dezembro 15, 2017
Abel Ferrara, um americano na Europa (3/3)
Madonna / DANGEROUS GAME (1993) |
Abel Ferrara regressou a Portugal para, no LEFFEST, apresentar os seus dois filmes mais recentes: Alive in France e Piazza Vittorio — este texto acompanhava a entrevista publicada no Diário de Notícias (27 Novembro), com o título 'Jogos Perigosos'.
A certa altura da conversa com Abel Ferrara, houve um pequeno desvio motivado pela importância que a música, em particular as canções, sempre têm nos seus filmes. Falámos de Dangerous Game (1993), em que, apesar de ter o principal papel feminino, Madonna não canta. E perguntei-lhe se era verdade a informação que tinha circulado sobre a desilusão de Madonna e do próprio Ferrara face aos resultados do filme: “Não, pelo contrário, fiquei muito contente com o filme, ela é que não — na altura, pelo menos; não sei o que pensa agora.”
[ Programa japonês, 1993 ] |
Ferrara, por sua vez, consegue em Dangerous Game uma rara exposição dos meandros de uma rodagem cinematográfica, em particular através do confronto, de uma só vez mental e anímico, entre um cineasta (Harvey Keitel) e a sua actriz principal (Madonna). Jogo perigoso, sem dúvida, como sugere o título. Para a história pitoresca que estas coisas sempre envolvem, registe-se que Dangerous Game nunca teve exibição comercial em Portugal, tendo sido lançado em DVD com o título Linha de Separação. Como?
sexta-feira, dezembro 08, 2017
Abel Ferrara, um americano na Europa (2/3)
Abel Ferrara em Piazza Vittorio |
Abel Ferrara regressou a Portugal para, no LEFFEST, apresentar os seus dois filmes mais recentes: Alive in France e Piazza Vittorio — esta entrevista foi publicada no Diário de Notícias (27 Novembro), com o título '“Na Europa encontro compaixão e um sentido da cultura"'.
[ 1 ]
[Elsinor] |
Há cada vez mais filmes que as pessoas vêem “streaming”.
Absolutamente.
Será que se está a perder algo da relação clássica com o cinema?
Tenho sentimentos contraditórios. Não creio que seja uma questão de perda. E é verdade que, mesmo na Internet, se pode obter uma boa qualidade de imagem. No fundo, a questão é saber como é que o trabalho artístico pode continuar — como é que os fulanos que fazem filmes podem... continuar a fazer filmes. Porque, por vezes, as pessoas andam a roubar esses filmes que custaram dinheiro. E, no entanto, a Internet podia ser um grande elo ligação dos artistas com os espectadores, numa partilha planetária.
Tenho sentimentos contraditórios. Não creio que seja uma questão de perda. E é verdade que, mesmo na Internet, se pode obter uma boa qualidade de imagem. No fundo, a questão é saber como é que o trabalho artístico pode continuar — como é que os fulanos que fazem filmes podem... continuar a fazer filmes. Porque, por vezes, as pessoas andam a roubar esses filmes que custaram dinheiro. E, no entanto, a Internet podia ser um grande elo ligação dos artistas com os espectadores, numa partilha planetária.
No seu caso, como é que vê filmes?
Quando venho a festivais, tento ver filmes. Vejo-os também no meu computador e, como dou aulas, vejo muitos filmes com os meus alunos — aproveito todas as oportunidades.
Recentemente, fez algumas boas descobertas?
Sim, sem dúvida. Serão, sobretudo, filmes que pouca gente viu, coisas como uma curta de 10 minutos feita por um miúdo de 19 anos que passou, algures, num festival... E tenho alunos que são mesmo muito bons. Além do mais, não vejo televisão, pelo que não estou a seguir todas essas séries que agora se fazem. Na verdade, o que faço mais é ler — faça-me perguntas sobre livros.
O que é que anda a ler?
Solzhenitsyn. Svetlana Alexievich — o livro dela sobre Chernobyl é qualquer coisa de poderoso.
E o seu novo filme, Piazza Vittorio, como é que o apresentaria?
É um documentário sobre a zona de Roma em que vivo: a Piazza Vittorio, perto de Santa Maria Maggiore, onde, em 1948, Vittorio De Sica filmou Ladrões de Bicicletas. É uma zona multi-étnica, um pouco à maneira de Nova Iorque, com muitos emigrantes, especialmente agora, vindos de África e da Europa de Leste, muitos deles vítimas de guerras terríveis. Digamos que tento fazer um pouco aquilo que faz Svetlana Alexievich: dar a palavra às pessoas, deixá-las falar.
[Vittorio De Sica] |
Quer isso dizer também que decidiu viver na Europa?
Vim cá fazer um filme, encontrei Christina, tivemos um bebé (tenho uma menina com dois anos e meio) — a minha escolha é a Europa. Não compreendo o que está a acontecer nos EUA, especialmente em Nova Iorque, a “cidade que nunca dorme”, etc. Talvez tenha chegado ao meu limite, talvez precisasse de alguma mudança. É certo que ainda o mês passado estive lá a filmar... O ar tornou-se insuportável, a comida é péssima, os preços estão completamente fora de controle, a cidade foi entregue aos ricos, é uma espécie de recreio para os que querem roubar dinheiro ao mundo todo — está tudo bem se se tiver uma carrada de dinheiro, mas não é essa a minha cena.
Será que a “sua” Nova Iorque já não existe?
Nova Iorque muda todos os dias. Além do mais, eu sou do Bronx, que é outra Nova Iorque...
Nova Iorque muda todos os dias. Além do mais, eu sou do Bronx, que é outra Nova Iorque...
E o que é que encontra de tão especial na Europa?
Encontro compaixão, um sentido da cultura... As coisas aqui têm dois ou três mil anos; o meu país tem uma história de 300 ou 400 anos, está ainda a descobrir o que é ou pode ser. Aqui, não é a procura do lucro que comanda: encontro respeito pela vida, pelos lugares, de umas pessoas pelas outras. Em última instância, tem a ver com o modo como se coloca luz numa sala — quem iluminou esta sala fê-lo respeitando as pessoas que se vão aqui sentar.
Encontro compaixão, um sentido da cultura... As coisas aqui têm dois ou três mil anos; o meu país tem uma história de 300 ou 400 anos, está ainda a descobrir o que é ou pode ser. Aqui, não é a procura do lucro que comanda: encontro respeito pela vida, pelos lugares, de umas pessoas pelas outras. Em última instância, tem a ver com o modo como se coloca luz numa sala — quem iluminou esta sala fê-lo respeitando as pessoas que se vão aqui sentar.
sábado, dezembro 02, 2017
Abel Ferrara, um americano na Europa (1/3)
[FOTO: Nuno Pinto Fernandes / DN] |
Abel Ferrara regressou a Portugal para, no LEFFEST, apresentar os seus dois filmes mais recentes: Alive in France e Piazza Vittorio — esta entrevista foi publicada no Diário de Notícias (27 Novembro), com o título '“Na Europa encontro compaixão e um sentido da cultura"'.
Em Alive in France, surge com a sua banda de rock’n’roll — como é a sensação de estar frente à câmara?
É uma óptima sensação. Queria interpretar aquelas canções e reunir-me em palco com toda aquela malta, em especial o Joe Delia que há muito tempo compõe música para os meus filmes — são velhos amigos.
Na sua filmografia, há um título de ficção científica, Body Snatchers (1993), que se destaca pela sua produção. Que memórias guarda dessa experiência?
É verdade: era um filme de estúdio, da Warner Bros., e com um grande orçamento. Foi filmado em CinemaScope, numa rodagem longa, em Selma, Alabama, um lugar complicado. Fizemo-lo à maneira clássica, até porque tínhamos na história original de Jack Finney um excelente ponto de partida. Aliás, na altura já existiam duas versões da história, uma de Don Siegel (1956), uma verdadeira obra-prima, outra de Philip Kaufman (1978). Tentámos preservar uma certa estilização que vinha de Siegel — não foi fácil, mas o filme que existe corresponde àquilo que queríamos fazer.
Quando se trabalha com os grandes estúdios a liberdade criativa é menor?
Mais dinheiro pode implicar menos liberdade. Quando se trabalha com um grande estúdio, não se fala de “autores”. Apesar de tudo, convém lembrar que a Warner era o estúdio a que estava ligado Clint Eastwood. A margem de liberdade era grande, maior do que noutros estúdios e muito maior do que agora. Foi por essa altura que, também na Warner, Oliver Stone fez JFK e Spike Lee Malcolm X. Mas agora parece-me que não estão interessados em fazer mais filmes com realizadores de Nova Iorque...
Como definiria a situação actual?
Não posso abdicar da minha visão: trabalha-se em grupo e a visão tem de ser a do realizador — ponto final. Não vale a pena envolver ninguém que não reconheça essa base de trabalho: é uma comunidade e as ideias de todos são bem-vindas, mas o realizador tem direito à última palavra. Aliás, tem direito à primeira palavra e à última palavra.
E o que é que muda, ou não, quando faz filmes a partir de pessoas verdadeiras como Pasolini (2014) ou Welcome to New York (2014), inspirados em Pier Paolo Pasolini e Dominique Strauss-Kahn?
Quando estamos a fazer um filme, a única coisa que existe é o mundo de faz-de-conta que estamos a criar. O que quer que seja, ou foi, a realidade... Podemos filmar nos mesmos cenários, usar as mesmas roupas, mas o momento é outro. Não se trata de invocar o fantasma de Pier Paolo, ou seja de quem for...
Welcome to New York acabou por ser pouco visto, não tendo sido lançado em muitos países, incluindo Portugal. Terá tido influência a contemporaneidade da própria personagem?
Talvez. Mas há sempre outras questões, desde os problemas de distribuição até ao facto de haver muita gente que deixou de ir regularmente ao cinema. Há filmes que encontram logo a sua audiência, outros que demoram 50 anos a consegui-lo... Mas os filmes existem, estão aí — e quem quiser realmente vê-los, acaba por encontrá-los.
[continua]
quarta-feira, novembro 08, 2017
Wim Wenders em Lisboa (3/3)
O Eden que já não existe [FOTO: Cinemas do Paraíso] |
Wim Wenders é um militante defensor da diversidade do cinema e da cultura europeia, não se cansando de chamar a atenção para as exigências da nova conjuntura digital — este texto foi publicado no Diário de Notícias (26 Outubro), com o título 'O amigo alemão'.
Conheci Wim Wenders em 1990, tendo-o acompanhado numa visita ao Cine-Teatro Eden (juntamente com o produtor Paulo Branco e Manuel S. Fonseca, então meu colega de trabalho na secção de cinema do semanário Expresso). O cineasta alemão procurava um cenário para uma cena de Até ao Fim do Mundo. A cena foi, de facto, rodada no Eden, tendo o filme estreado em 1991, numa versão amputada que Wenders nunca reconheceu — a versão integral só foi reposta em 2015 (tendo sido exibida, nesse ano, no Lisbon & Estoril Film Festival).
Cruzando essas memórias com as palavras de Wenders sobre a urgência de defender o património cultural europeu (e não apenas no domínio cinematográfico), reencontro a tristeza imensa que é ver importantes referências arquitectónicas da cidade de Lisboa (como o Eden) “modernizadas” em função das mais indiferentes lógicas de “progresso”. Aliás, sabemos que há casos ainda mais trágicos, como o do velho Monumental, na Praça do Saldanha: não tivesse desaparecido do mapa, seria hoje, por certo, um símbolo exemplar da idade de ouro do consumo cinematográfico em toda a Europa.
Não recordo isto para favorecer qualquer “tribunal” de tipo televisivo empenhado em listar “culpados” e “inocentes”. A realidade crua é mais complexa e menos espectacular. Acontece que as formas de criação e intervenção cívica de personalidades como Wenders nascem, de facto, de uma genuína vontade de preservação daquilo que, sendo passado, nos enriquece enquanto habitantes do presente. Mais do que isso: a relação com tal passado afigura-se vital na inteligência que podemos inscrever no nosso presente. Eis um labor a que o espaço jornalístico pode e deve continuar atento. Seria interessante que todas as entidades políticas manifestassem a mesma disponibilidade.
sábado, novembro 04, 2017
Wim Wenders em Lisboa (2/3)
Michelle Williams LAND OF PLENTY / Terra da Abundância (2004) |
Wim Wenders é um militante defensor da diversidade do cinema e da cultura europeia, não se cansando de chamar a atenção para as exigências da nova conjuntura digital — esta entrevista foi publicada no Diário de Notícias (26 Outubro), com o título '“A herança cinematográfica europeia necessita de ser resgatada do esquecimento"'.
[ 1 ]
Como evoluiu a sua própria percepção do cinema nos EUA?
Vivi dois períodos da minha vida na América, num total de 15 anos. Descobri que nunca iria fazer filmes americanos: era algo que não existia em mim, seria sempre um cineasta europeu — e o Sonho Americano foi-se dissipando. Vi os outros lados daquele imenso continente. Agora, estamos a ver o lado mais horrível, quase como um pesadelo.
No actual cinema americano, não haverá uma espécie de esquizofrenia entre as grandes máquinas de produção e os filmes que procuram outros modos de expressão?
Sim, muitos dos meus amigos americanos têm sérias dificuldades em trabalhar de forma independente. Eu sei, por experiência própria, que quanto maior é o orçamento com que trabalhamos menor é a possibilidade de dizer aquilo que se quer dizer. Quando se tem um pequeno orçamento, aí sim, podemos filmar como queremos — foi o que me aconteceu com Terra da Abundância, um filme feito na América, sobre a América, em que pude fazer exactamente aquilo que quis. Quanto mais dinheiro se tem, mais se é obrigado a obedecer à maquinaria do marketing. A maneira europeia de fazer filmes é diferente, vem mais da escrita, do teatro, da pintura — é mais inspirada pela vida, pela procura de respostas.
Essa procura de respostas vai reflectir-se, de alguma maneira, no documentário que está a fazer sobre o Papa Francisco?
Nos nossos dias, os documentários são uma forma muito livre de trabalho. Aquele que estou a fazer ocupa-me há cerca de quatro anos, deverá ser lançado no próximo ano, e não é “sobre” o Papa Francisco, mas “com” o Papa Francisco. Entretanto, fiz um filme apresentado recentemente no Festival de San Sebastian, Submergence, que deverá estrear em Portugal no começo de 2018. É um dos filmes mais ambiciosos que já fiz, pelo orçamento e também pelo esforço que envolveu, tendo alternado a sua produção com o trabalho no documentário. Para mim, isso é muito importante: poder alternar os dois registos — sinto que cada um deles transmite energia para o outro.
Tendo em conta o poder de alguns filmes americanos no mercado europeu, o que mudaria se houvesse mais dinheiro para o marketing dos filmes europeus?
Seria, seguramente, um jogo completamente diferente. Para mim, o cinema americano não é o inimigo. Acontece que aquilo que temos na Europa é mais pequeno e mais frágil, o que no mundo de hoje implica o risco de ser rapidamente marginalizado. É um problema de toda a humanidade: as economias mais pequenas, os povos mais pequenos são marginalizados porque os mercados funcionam por processos de exclusão.
Imaginemos que lhe pediam para sugerir três filmes a jovens espectadores europeus, precisamente no sentido de começarem a compreender a herança cinematográfica europeia. Quais seriam as suas escolhas?
Acho que todos deviam ver algum filme de Ingmar Bergman: poderia ser O Sétimo Selo ou Morangos Silvestres, um qualquer... Todos reflectem os mesmos valores e a mesma grandeza. Depois, um filme de Federico Fellini, Oito e Meio por exemplo. E todos deviam conhecer um filme de François Truffaut: todos os estudantes deviam ver Jules e Jim, Fahrenheit 451 ou O Menino Selvagem... Qualquer um, realmente, já que cada um funcionaria como um apelo para verem mais. Mas podemos também fazer uma lista de títulos menos “históricos”, de anos mais recentes...
Como por exemplo...
Comecemos pela Itália: A Grande Beleza, de Paolo Sorrentino. Consideremos a França: O Profeta, de Jacques Audiard. E a Alemanha: Adeus, Lenine!, de Wolfgang Becker. E não esqueçamos os espanhóis: é preciso introduzir pelo menos um Almodóvar nesta equação.
terça-feira, outubro 31, 2017
Wim Wenders em Lisboa (1/3)
FOTO: Nuno Pinto Fernandes / DN |
Wim Wenders é um militante defensor da diversidade do cinema e da cultura europeia, não se cansando de chamar a atenção para as exigências da nova conjuntura digital — esta entrevista foi publicada no Diário de Notícias (26 Outubro), com o título '“A herança cinematográfica europeia necessita de ser resgatada do esquecimento"'.
O cineasta alemão Wim Wenders foi distinguido com o Prémio Europeu Helena Vaz da Silva, atribuído pelo Centro Nacional de Cultura. Em cerimónia realizada na Fundação Gulbenkian, o prémio foi entregue pelo Presidente da República que, na mesma ocasião, o condecorou com o grau de comendador da Ordem do Mérito [DN, 24 Outubro]. Como disse Marcelo Rebelo de Sousa, Wenders “nunca foi estrangeiro em Portugal” — ele é, afinal, um cidadão da Europa com uma obra de viajante pela pluralidade cultural do nosso continente e também, mais do que nunca, apostado em enfrentar os desafios da era digital.
O Prémio Helena Vaz da Silva consagrou-o, não apenas como cineasta, mas enquanto personalidade do mundo da cultura europeia. Como encara tal distinção?
O que está em jogo é um certo empenho na Europa: a ideia de que necessitamos de algo para o futuro, algo que vem do passado e corre o risco de se perder. Não é, portanto, um prémio exactamente para mim, mas sim por aquilo que muitas pessoas estão a fazer, sendo eu apenas uma delas. Sou um empenhado europeu, filmei em toda a Europa e, quase involuntariamente, contribuí para preservar uma certa herança. Por exemplo, em Lisboa: filmei aqui no começo dos anos 80 [O Estado das Coisas], depois em 1990 [Até ao Fim do Mundo] e ainda em 1994 [Lisbon Story].
Que herança é essa?
A noção de herança é algo estranha: pode sugerir uma certa ideia de museu, mas não é disso que se trata — a herança é algo que diz respeito ao nosso futuro.
Na defesa dessa herança, qual a importância da Academia Europeia de Cinema a que preside?
Defendemos algo que não pode ser dado como adquirido. O cinema europeu está a ser atacado por uma indústria muito mais poderosa. É um cinema frágil, feito por países muito diferentes, mas o seu conjunto representa um valor fundamental: a nossa própria diversidade. E está a desaparecer. Quase tudo o que eu fiz há 40 anos está a desaparecer, a não ser que seja preservado, ajudando os filmes a entrar na nova idade digital. Hoje em dia, se um determinado filme apenas existe numa cópia em película, esse filme está morto — para viver, necessita de ser transferido para digital e, desse modo, aceder a várias plataformas. Grande parte da nossa herança necessita, assim, de ser resgatada do esquecimento.
Diz-se, por vezes, que há uma relação fraca dos espectadores mais jovens com os filmes europeus — concorda com esse ponto de vista?
Em muitos casos sim, é uma triste verdade. Mas também é verdade que onde quer que haja uma sala e pessoas empenhadas em mostrar cinema europeu devidamente contextualizado, os jovens mostram-se interessados, até mesmo entusiasmados. É fundamental educar os jovens para o cinema, começando nas escolas porque é a nossa herança que está em jogo. Há muitos jovens que cresceram sem a conhecer: ensinamos-lhes literatura ou pintura, mas não lhes ensinamos a arte mais ameaçada que temos, a arte das imagens em movimento.
Em vários dos seus filmes, como O Amigo Americano, Paris, Texas ou Terra da Abundância, encontramos uma relação forte com a cultura americana. Como avalia o peso dessa relação no seu universo criativo?
Cresci admirando a cultura americana, porque cresci num país destruído — a Europa não passava de uma ficção. A certa altura, era mais difícil ir à outra metade da Alemanha do que ir à Lua. A América era uma bela utopia, imensa e livre, reflectida na beleza do seu cinema. Não havia cinema no meu país e, de facto, só mais tarde vim a conhecer Fritz Lang ou Murnau. A América apaixonava-me, não necessariamente através das ideias, mas pelo espírito, pela grandeza, pelas imagens que de lá chegavam. Aliás, não nos podemos esquecer que o cinema americano é, em grande parte, uma invenção de europeus, a começar pelos anos 20 e 30. No meu caso, foi depois disso que aprendi a admirar as minhas origens europeias, descobrindo cineastas como Bergman, Truffaut ou Godard.
[continua]
sábado, outubro 07, 2017
Vanessa Redgrave na primeira pessoa (2/2)
SEA SORROW (2017) |
Com o filme Sea Sorrow, Vanessa Redgrave propõe uma visão da situação actual dos refugiados com perguntas incómodas dirigidas, sobretudo, aos políticos do seu país. Como ela diz, importa não abdicar da intransigente defesa dos direitos humanos — esta entrevista foi publicada no Diário de Notícias (1 Outubro), com o título '“Sinto-me furiosa quando vejo os políticos a mentir na televisão"'.
[ 1 ]
Na década de 60, quando surgiu em filmes tão importantes como Morgan – Um Caso para Tratamento, de Karel Reisz, ou Blow-up, de Michelangelo Antonioni, será que a vida política no seu país era diferente?
Na sua origem, os problemas seriam distintos. Em qualquer caso, eu fui das primeiras pessoas a protestar contar a guerra do Vietname.
Na verdade, quando nos envolvemos numa acção desse género, não creio que pensemos em termos de optimismo. O importante é saber o que fazer para ajudar e talvez provocar uma pequena mudança — ou uma grande mudança.
Guarda boas memórias desse tempo?
Creio que a minha memória está a desaparecer... [riso] Nessa altura nem sequer ia muito ao cinema. Nos anos 60, quando fui para Hollywood senti-me muito impressionada com a qualidade do trabalho. Participei em Camelot, de Joshua Logan, um dos derradeiros filmes dos grandes estúdios. O trabalho dos vários departamentos de produção era absolutamente incrível e isso desapareceu, para sempre.
Era um cinema com características muito próprias, sem dúvida. Mas o que eu lamento é o desperdício. Mais do que lamentar, odeio o desperdício. Não quer dizer que hoje em dia eu não trabalhe com pessoas de que gosto sempre imenso: são inteligentes e promissoras, mas já não têm o mesmo conhecimento. Por exemplo, há certa coisas que os cenógrafos ou criadores de guarda-roupa já não sabem fazer... O conhecimento desapareceu, e importa dizer que também não têm o dinheiro nem o tempo para o fazer — o problema está instalado e envolve tudo isso.
Esse conhecimento está mesmo perdido?
Sei que se perdeu. E os dois ou três profissionais que ainda poderiam retomar essas tarefas não são contratados pelas principais produções. Porquê? Porque ia demorar muito tempo... Do meu ponto de vista, não seria tempo a mais.
É, portanto, uma questão de trabalho.
E, acima de tudo, de competências. Uma questão de conhecimento. É um desperdício que se observa, não apenas no cinema, mas por todo este planeta — a vida tem sido desperdiçada por todo o planeta. Precisamos todos de despertar. Claro que continuamos como se o dia de amanhã fosse necessariamente igual... Mas não é. Digo isto com ternura, não com fúria. Claro que me sinto furiosa quando vejo os políticos a mentir na televisão. E tenho a sensação que a maioria das pessoas já não acredita nos políticos — mas quem quer tomar o seu lugar?
E, acima de tudo, de competências. Uma questão de conhecimento. É um desperdício que se observa, não apenas no cinema, mas por todo este planeta — a vida tem sido desperdiçada por todo o planeta. Precisamos todos de despertar. Claro que continuamos como se o dia de amanhã fosse necessariamente igual... Mas não é. Digo isto com ternura, não com fúria. Claro que me sinto furiosa quando vejo os políticos a mentir na televisão. E tenho a sensação que a maioria das pessoas já não acredita nos políticos — mas quem quer tomar o seu lugar?
Acontece que as notícias deviam dar... as notícias. Não é essa a responsabilidade do cinema, a não ser que se mostrasse um filme novo todos os dias. A televisão quase não dá notícias — e se alguém achar que estou errada, tenho todo o gosto em ouvi-lo.
A televisão não mostra o mundo tal como ele existe?
Por vezes, num relance, isso acontece, mas não há uma explicação do porquê. As pessoas não estão a ser educadas, os pais dos jovens de hoje não foram educados.Nessa perspectiva, podemos dizer que o modo como Sea Sorrow lida com a actualidade não é muito frequente no cinema contemporâneo.
Talvez porque eu tenho 80 anos. Tive um ataque cardíaco há dois anos e um brilhante cirurgião grego, num hospital público inglês, salvou-me a vida. Viajo de país em país para mostrar o meu filme. Neste momento, é esta a minha prioridade. Quero fazer o que está certo e tentar ajudar. E se conseguir ajudar, sinto que a minha vida valeu a pena — é tão simples quanto isso.
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