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sexta-feira, janeiro 17, 2025

David Lynch (1946 - 2025)

[ David Lynch Foundation ]

Em 2022, Steven Spielberg realizou o mais autobiográfico dos seus filmes, Os Fabelmans, encenando as atribulações de um jovem cinéfilo, precoce cineasta, que um dia tem a possibilidade de visitar John Ford no seu escritório. David Lynch é o imperial intérprete de Ford naquele que seria o seu derradeiro trabalho como actor.
Dir-se-ia que, agora, essa cena se transfigura em testamento apócrifo de um visceral amor do cinema — Lynch faleceu no dia 15 de janeiro, contava 78 anos.

domingo, julho 16, 2023

* SOUND + VISION Magazine
— FNAC, 22 julho (17h00)

Estamos de volta ao Chiado para a sessão de julho (antes da tradicional paragem de agosto). O mais recente filme de Indiana Jones é pretexto para uma revisitação das aventuras de um ícone do espectáculo que pontua a história do cinema há mais de 40 anos — sem esquecer que tudo isso tem acontecido também através de algumas nostálgicas memórias musicais.

* FNAC Chiado: dia 22 de julho (17h00).

quarta-feira, fevereiro 22, 2023

Spielberg + Libération - cinefilia

Libération [22 fev. 2023]

* A cinefilia não é um reino unanimista, antes um território de muitas e salutares diferenças que, em todo o caso, se reconhecem no respeito básico pela pluralidade da história do cinema. Uma das suas regras clássicas proclama que, em nome dos seus próprios valores, se pode defender o que quer que seja... mas não se pode dizer não importa o quê.

* Na sua edição de 22 de fevereiro, o jornal Libération aborda Os Fabelmans, de Steven Spielberg, celebrando aquilo que chama o "ineditismo" do seu "nível de intimidade". O mínimo que se pode dizer face a esta afirmação é que há algumas realidades que a tornam, no mínimo, discutível. Os seus nomes são: Encontros Imediatos do Terceiro Grau, E.T., o Extraterrestre, Império do Sol, Sempre, A Lista de Schindler, A.I. - Inteligência Artificial...

* Eis um esclarecedor exemplo das diferenças interiores à cinefilia. Resta saber se isso confere qualquer tipo de pertinência ao texto da capa do jornal, em que encontramos esta apresentação do "Homem Cinema" que o Libération agora consagra:

>>> Os Fabelmans, filme autobiográfico poderoso e emocionante que mistura história do cinema e tragédia íntima, impõe o realizador, noutros tempos menosprezado pelos cinéfilos, como último guardião do templo de Hollywood.

* Há uma dúvida que este entusiasmo suscita: a facilidade com que se escreve "noutros tempos menosprezado pelos cinéfilos" mascara mais de meio século de muitas diferenças de leitura da obra de Spielberg — lembremos que Duel/Um Assassino pelas Costas tem data de 1971 —, rasurando as posições dos que, ao longo das décadas, manifestaram admiração pelo seu trabalho, inclusive nos tempos heróicos em que era chic acusá-los de "defender o imperialismo americano".

* E há também uma pergunta triste que emerge: estará o Libération a esquecer-se da sua própria história e, mais concretamente, das avaliações de muitos filmes de Spielberg, no mínimo reticentes, publicadas nas suas páginas?

* Registemos, em qualquer caso, o salutar entusiasmo do Libération: afinal, há mais formas de pensar para lá do anti-americanismo primário que se manifesta (um pouco por todo o lado) face à riqueza e complexidade dessa entidade a que se dá o nome de Hollywood. Ficamos mesmo a saber que Hollywood é (ou tem) um "templo" e, mais do que isso, que o seu "guardião" merece todos os elogios — eis uma visão a partir da qual podemos concordar e repensar as atribulações da cinefilia.

domingo, janeiro 01, 2023

Spielberg no país das maravilhas

Flmagens de Os Fabelmans:
o cinema produzido e vivido como uma celebração da vida

O novo filme de Steven Spielberg, Os Fabelmans, é um bom pretexto para recordarmos que, no interior da “fábrica dos sonhos”, ele protagonizou muitas transformações da indústria ao longo do último meio século sem nunca por em causa a condição de autor que sabe exprimir-se na primeira pessoa — este texto foi publicado no Diário de Notícias (18 dezembro).

Steven Spielberg nasceu no dia 18 de dezembro de 1946. Neste tempo em que o glamour das estrelas foi substituído pela pompa digital dos super-heróis e a frequência das salas está ameaçada pelos gigantescos super-mercados audiovisuais que são as plataformas de streaming, ele continua a ser identificado pelos espectadores de todo o mundo como símbolo do próprio cinema. Não é, por isso, acidente, banalidade ou improviso que o seu novo filme, Os Fabelmans, seja uma comovente celebração do amor primitivo do cinema visto e habitado como intemporal país das maravilhas.
O resumo temático é sugestivo… Aí está o jovem Spielberg a filmar com câmaras Super 8. Spielberg a usar a sua casa, a sua família e os seus colegas de escola como elementos dos filmes de adolescência. Spielberg, ainda mal saído dessa adolescência, a inventar estratagemas para ser recebido num estúdio de Hollywood. Até mesmo Spielberg a descobrir, através das primeiras experiências de filmagem, as convulsões vividas pelo pai e pela mãe, prenunciando um divórcio inevitável…
Em boa verdade, conhecíamos quase todos esses episódios através de muitas entrevistas mais ou menos confessionais dadas ao longo de décadas. O certo é que nunca Spielberg os tinha tratado com a paixão auto-biográfica que encontramos neste filme — Fabelman é apenas outra maneira de escrever Spielberg.

Autor e artesão

Estamos a falar de alguém que assinou alguns dos títulos de maior sucesso de toda a história do cinema. A sua importância, como realizador e produtor, transcende o deve e haver do mapa financeiro de Hollywood. Em boa verdade, Spielberg é detentor desse talento raro capaz transfigurar as histórias mais particulares em genuínos fenómenos universais. A lista das suas proezas vai desde a exuberante invenção dos “blockbusters” em 1975, com Tubarão, até à tão inesperada quanto fascinante revisitação do musical em West Side Story, lançado há cerca de um ano.
Como podemos confirmar através de Os Fabelmans, as atribulações juvenis e a passagem à idade adulta pontuam toda a sua trajectória. Ao mesmo tempo, nunca Spielberg se encerrou, ou foi encerrado, no estatuto de “especialista” de uma determinada temática. Até mesmo o rótulo de “mago dos efeitos especiais” é francamente simplista para caracterizar a sua evolução, mesmo se não podemos deixar de o reconhecer como brilhante experimentador desses efeitos, desde os dinossauros de Parque Jurássico (1993) até ao mundo virtual de Ready Player One: Jogador 1 (2018), passando pela maravilhosa fábula futurista que é A.I. - Inteligência Artificial (2001) ou a experiência radical de As Aventuras de Tintin - O Segredo do Licorne (2011), infelizmente pouco estimada pelas plateias de todo o mundo.
Da variedade dos temas à proliferação das técnicas, Spielberg possui a dimensão e os múltiplos talentos de um artesão à maneira clássica. Que é como quem diz: alguém capaz de investir os géneros mais diversos, sem nunca alienar a sua marca pessoal — na sua filmografia encontramos ainda, por exemplo, o melodrama em estado puro no muito esquecido Sempre (1989) a par da subtil crónica do jornalismo e da política que é The Post (2017).

Para lá do sucesso

Muitas vezes menosprezada pela suposta predominância de títulos considerados artificiosos ou escapistas, a sua obra nunca deixou de enfrentar a necessidade de lidar com a grande história colectiva. A Lista de Schindler (1993) será o exemplo mais contundente, até porque, como o próprio Spielberg reconheceu, a memória do Holocausto envolveu uma reflexão muito pessoal sobre as suas raízes judaicas. Sem esquecer os filmes que foram encenando questões viscerais da história dos EUA, incluindo A Cor Púrpura (1985), Amistad (1997) ou o prodigioso Lincoln (2012), com Daniel Day-Lewis.
Através de tais títulos, Spielberg não deixou de ser um protagonista das muitas transformações da indústria de Hollywood no último meio século sem, contudo, alguma vez ficar preso a um modelo único, nem mesmo através das sequelas da saga de Indiana Jones (ainda que seja forçoso reconhecer que o seu quarto capítulo, Indiana Jones e o Reino da Caveira de Cristal, lançado em 2008, é um dos momentos menos felizes da sua carreira).
A condição de realizador com muitos sucessos não exclui os momentos em que as bilheteiras não corresponderam à imaginação criativa dos próprios filmes. Exemplo maior: o delirante 1941 - Ano Louco em Hollywood, produção de 1979 que encena em tom burlesco um episódio fictício da Segunda Guerra Mundial (com os japoneses a invadirem a Califórnia…). Moral da história: um verdadeiro artesão deve dar provas também no domínio da comédia.

sexta-feira, dezembro 02, 2022

Indiana Jones 5: primeiro trailer

Passados quase quinze anos sobre o quarto título da saga de Indiana Jones — Indiana Jones e o Reino da Caveira de Cristal (2008) —, sempre sob a direcção de Steven Spielberg, valerá a pena relançar uma pergunta que não envolve qualquer reticência, mas não pode evitar alguma perplexidade. Ou seja: porquê, e para quê, produzir um nº 5?
Uma coisa é certa: como já se sabia há largos meses, o quinto filme vai mesmo existir e tem o lançamento global marcado para 30 de junho de 2023, com Harrison Ford na fotogenia dos seus gloriosos 80 anos de idade. Spielberg afastou-se do projecto e a realização terá assinatura de James Mangold. Tudo com chancela dos estúdios Disney, detentores da "marca" desde que a produtora Lucasfilm passou a fazer parte do império do Rato Mickey.
Entretanto, com a revelação do novo título — Indiana Jones and the Dial of Destiny —, surge também o primeiro trailer, ironicamente contaminado pela ansiedade de um marketing acelerado... que até se esqueceu de retirar do início as informações técnicas da campanha.
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P.S. - Hoje, durante a tarde, as informações técnicas foram retiradas do começo do video.

sábado, novembro 19, 2022

À espera de Steven Spielberg

Com Os Fabelmans, maravilhosa viagem pelos labirintos das memórias familiares e cinéfilas, Steven Spielberg convoca-nos para uma genuína memória de amor do cinema, e pelo cinema — é ele que está na capa da edição da Time com data de 5/12 de dezembro. Apresentado em ante-estreia no LEFFEST, o filme chega às salas portuguesas no dia 22 de dezembro.
 

terça-feira, agosto 16, 2022

Mumford & Spielberg

Elemento central da banda britânica Mumford & Sons, Marcus Mumford estreia-se em nome próprio com o álbum Self-Titled (lançamento a 16 de setembro). Cartão de visita do novo registo é a canção Cannibal, encenada num primoroso teledisco a preto e branco, por certo um dos mais belos planos-sequência que vimos em tempos recentes. É também uma estreia no domínio dos video-clips para o respectivo realizador — chama-se Steven Spielberg e filmou Cannibal com o seu telemóvel.

sexta-feira, março 04, 2022

A caminho dos Oscars

Adriana De Bose em West Side Story:
a caminho do Oscar de melhor actriz secundária

Os prémios da Academia de Hollywood serão entregues a 27 de março. Com 12 nomeações, O Poder do Cão lidera a corrida aos Oscars referentes à produção de 2021, num ano em que, curiosamente, vários filmes, a começar por West Side Story, são testemunho de uma invulgar riqueza musical — este texto foi publicado no Diário de Notícias (9 fevereiro), com o título 'Os Oscars têm uma música própria'.

Música, eis a questão. Nas nomeações dos Oscars referentes à produção de 2021 encontramos, por exemplo: Billie Eilish, candidata na categoria de melhor canção, com No Time to Die, tema-título do último filme de James Bond (composto com o irmão, Finneas O’Connell). Ou ainda o baterista da banda The Roots, Questlove: o seu Summer of Soul, dando nova vida aos registos do Harlem Cultural Festival de 1969, surge entre os que podem ganhar a categoria de melhor documentário. Isto sem esquecer que Jonny Greenwood, membro dos Radiohead, volta a integrar os nomeados a melhor banda sonora graças à sua partitura para O Poder do Cão, de Jane Campion.
É caso para dizer que ecoa, aqui, uma música muito própria, de tal modo os prémios da Academia de Hollywood conseguem congregar aquela que é a maior estrela pop da actualidade, Billie Eilish, claro, com memórias do património musical afro-americano e o experimentalismo de Greenwood. Foi ele que compôs também a música de Spencer, de Pablo Larraín, porventura o mais “esquecido” dos grandes filmes de 2021, embora esteja representado por uma nomeação, na categoria de melhor actriz, para a admirável Kristen Stewart.
Enfim, não esqueçamos a renovada presença de Steven Spielberg. O seu West Side Story, com sete nomeações, possui o fulgor de um verdadeiro panfleto — musical, justamente. A recriação da obra de Leonard Bernstein e Stephen Sondheim — que deu origem ao primeiro West Side Story (1961), assinado por Robert Wise e Jerome Robbins — repõe na linha da frente um género nem sempre muito reconhecido na história moderna dos Oscars. E se é verdade que todas as apostas são sempre um exercício superficial, por vezes fútil, não é menos verdade que podemos supor que na comunidade de Hollywood todos ou quase todos acreditam que Ariana DeBose, a “Anita” escolhida por Spielberg, tem garantida a estatueta de melhor actriz secundária.
Enfim, a musicalidade de tudo isto não esgota a sedutora pluralidade das nomeações, este ano com um luso-canadiano também em destaque: graças ao seu excelente trabalho em Nightmare Alley, de Guillermo Del Todo, Luís Sequeira é um dos candidatos ao Oscar de melhor guarda-roupa. E também não diminui, de modo algum, a proeza de O Poder do Cão, líder na estatística das nomeações: encontramo-lo em nada mais nada menos que 12 categorias, incluindo, além de melhor filme, as de realização, actor (Benedict Cumberbatch), actor secundário (duas vezes: Jesse Plemons e Kodi Smit-McPhee) e actriz secundária (Kirsten Dunst). Uma coisa é certa: nenhum filme tem nomeações que lhe permitam obter o “quinteto dourado” dos Oscars — filme+realização+actor+actriz+ argumento —, essa conjugação mágica que só aconteceu três vezes (a última data de 1992, com a consagração de O Silêncio dos Inocentes).
Aliás, O Poder do Cão pode simbolizar também as evidências e ambivalências do confronto que, de uma maneira ou de outra, passou a marcar todo o território cinematográfico. A saber: a tensão entre o circuito tradicional das salas e as plataformas de “streaming”. Assim, O Poder do Cão é o emblema perfeito da produção multifacetada da Netflix e da sua ambição (muito legítima, entenda-se) de conseguir, finalmente, arrebatar o Oscar de melhor filme.
Até ao dia da cerimónia destes 94ºs prémios das Academia (27 de março), iremos, por certo, compreendendo melhor o modo como estas nomeações reflectem o estado convulsivo, afinal eminentemente criativo, em que vive a produção cinematográfica. Inclusive nas suas curiosas “contradições”. Exemplo? Repare-se no quinteto de nomeadas para o Oscar de melhor actriz: Jessica Chastain (The Eyes of Tammy Faye), Olivia Colman (A Filha Perdida), Penélope Cruz (Mães Paralelas), Nicole Kidman (Being the Ricardos) e a já citada Kristen Stewart. Que têm em comum? Pois bem, nenhuma delas está nos dez títulos que concorrem para melhor filme — não é inédito, mas não acontecia há 16 anos.

segunda-feira, dezembro 27, 2021

10 filmes de 2021 [1]


Steven Spielberg

Um musical gerado num contexto industrial dominado e, em muitos aspectos, atrofiado pelos super-heróis da Marvel e afins? É verdade. E, para mais, um musical apostado em reavivar a mágoa romântica do original de Leonard Bernstein/Stephen Sondheim, estreado na Broadway em 1957 (importa relembrar que o filme de Spielberg não é um remake do filme de 1961, assinado pela dupla Robert Wise/Jerome Robbins). Verdadeiro ovni de 2021, nele encontramos a energia de um cinema sem barreiras formais, ligando a música com o fresco social, as atribulações do quotidiano com a parábola política e, por fim, o melodrama com a tragédia — sem igual, isto é, literalmente, um objecto de esplendorosa solidão criativa.
 

quinta-feira, novembro 25, 2021

Quando Steven Spielberg
era um realizador de televisão

Dennis Weaver em "Duel": um popular actor de séries do Oeste americano

A carreira de Steven Spielberg começou na televisão, já lá vão 50 anos: o seu telefilme Duel/Um Assassino pelas Costas foi emitido pelo canal ABC no dia 13 de novembro de 1971 — este texto foi publicado no Diário de Notícias (13 novembro 2021).

Nestes tempos de coexistência, por vezes de conflito, entre os pequenos e os grandes ecrãs, as salas escuras e os circuitos de streaming, as produções de cinema vivem, para o melhor ou para o pior, enredadas com os dispositivos televisivos — no limite, todas as fronteiras se diluem. Como bem sabemos, nem sempre foi assim. E momentos houve em que, ironicamente, a história do cinema se escreveu também através da televisão. Um belo exemplo ocorreu há meio século: no dia 13 de novembro de 1971, o canal americano ABC estreava aquele que, para todos os efeitos, ficou como o primeiro filme de Steven Spielberg: Duel, entre nós Um Assassino pelas Costas.
É verdade que, através de uma prodigiosa colecção de títulos lendários — Tubarão (1975), E.T. - O Extra-Terrestre (1982), Parque Jurássico (1993), etc., etc. —, Spielberg viria a encarnar a própria ideia de Cinema (com maiúscula), um pouco à maneira de Alfred Hitchcock nas décadas de 1940/50. Mas não é menos verdade que, para lá da sua filiação no classicismo de Hollywood, a sua formação e prática como realizador de filmes é indissociável da televisão. Duel foi, assim, o primeiro trabalho de fundo de Spielberg para televisão. Dito de outro modo: na origem, estamos perante um telefilme.

Das séries ao telefilme

Nascido em 1946, Spielberg começara muito cedo a tentar a realização, acabando por assinar a curta-metragem Amblin (1968), sobre um casal de jovens “hippies” a deambular por paisagens desérticas. O título do filme seria adoptado como nome da sua própria empresa de produção que continua em plena actividade (o respectivo símbolo vai voltar a aparecer no novo filme de Spielberg, West Side Story, a ser lançado no Natal). Mais do que isso: o reconhecimento de Amblin valeu a Spielberg o seu primeiro contrato televisivo, com os estúdios Universal.
Como outros profissionais que tiveram importantes carreiras no mundo do cinema (lembremos apenas o exemplo do realizador de África Minha, Sydney Pollack), Spielberg começou por dirigir episódios de diversas séries, incluindo Marcus Welby, sobre o dia a dia de um médico interpretado por Robert Young, e Columbo, relatando as investigações de um detective da polícia de Los Angeles, célebre personagem interpretada por Peter Falk.
Para Spielberg, era importante dirigir um “filme de fundo”, isto é, um telefilme para consolidar o seu estatuto. A oportunidade surgiu quando Nona Tyson, a sua secretária, lhe sugeriu que lesse o conto intitulado Duel que Richard Matheson acabara de publicar na Playboy (abril 1971, capa) — a Universal tinha adquirido os direitos de adaptação, visando a sua inclusão na rubrica “Movie of the Week” que a ABC emitia aos sábados à noite (a rubrica manteve-se entre 1969 e 1975).
O desafio era grande, desde logo porque Matheson era um autor consagrado no domínio do fantástico mais ou menos ligado às matrizes da ficção científica — Hollywood tinha já adaptado, por exemplo, os seus romances I Am Legend (1954) e The Shrinking Man (1956). Mais do que isso, Duel colocava em cena uma situação minimalista — o condutor de um automóvel é perseguido, sem razão aparente, por um gigantesco camião — que representava um invulgar desafio de mise en scène.

Telefilme & filme

Obviamente não por acaso, Duel passou a ser frequentemente associado a Tubarão, que Spielberg assinaria quatro anos mais tarde. Em ambos os casos, a emoção e o suspense nascem não apenas da acção física propriamente dita, mas do factor irracional que gera o medo: tal como o tubarão, o camião que persegue o protagonista não obedece a qualquer lógica dramática, muito menos humana — ataca para destruir, ponto final.
Magnificamente fotografado por Jack A. Marta, típico e talentoso veterano da “idade de ouro” de Hollywood, Duel tinha também um trunfo especial no intérprete principal, Dennis Weaver. Embora com alguma carreira no cinema (em 1958, por exemplo, integrara o elenco de A Sede do Mal, de Orson Welles), era, sobretudo, uma figura popular do pequeno ecrã, em particular através das séries do Oeste Gunsmoke e McLoud: a familiaridade do seu rosto ajudava a reforçar o misto de estranheza e inquietação da saga vivida pela personagem de Duel.
O impacto do telefilme levou a Universal a “transformá-lo” em objecto de cinema, difundindo-o em algumas salas dos EUA e, sobretudo, nos cinemas europeus. Portugal foi um dos países em que o nome de Spielberg foi descoberto, precisamente, através de Um Assassino pelas Costas.
Em 1974, Spielberg teria a sua estreia “oficial” como realizador de cinema, assinando esse magnífico e, infelizmente, pouco conhecido drama policial que é The Sugarland Express/Asfalto Quente. Um ano mais tarde, o mundo descobriria o seu tubarão assassino, revolucionando de alto a baixo os conceitos de espectáculo e o mercado dos filmes.

sábado, junho 12, 2021

"Os Salteadores da Arca Perdida", 40 anos

Steven Spielberg usando uma maqueta para estudar os ângulos de abordagem de uma cena de Raiders of the Lost Ark/Os Salteadores da Arca Perdida — eis uma imagem capaz de resumir toda uma estratégia de espectáculo. A saber: reconverter o espaço natural em realidade espectacular. Neste caso, recuperando todo uma imaginário alheio àquilo que, hoje em dia, se chama de "produção-de-efeitos-especiais", porque enraizado em formas primitivas de encenação da aventura, nomeadamente os "serials" da Republic Pictures.
Foi no dia 12 de junho de 1981 que Raiders of the Lost Ark chegou às salas do mercado americano — faz hoje 40 anos.
Eis o trailer original e o tema-título, composto por John Williams.



sexta-feira, maio 21, 2021

O mundo (não) é a preto e branco

Erik Messerschmidt

O Oscar para Erik Messerschmidt, pela fotografia de Mank, fica para a história como uma referência marcante dos prémios de 2021 da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas — este texto foi publicado no Diário de Notícias (27 abril).

O Oscar de melhor fotografia para Erik Messerschmidt, pelo filme Mank, distinguiu aquele que é, por certo, um dos mais prodigiosos trabalhos de imagem que o cinema gerou neste século XXI. Trata-se de uma proeza tanto mais admirável quanto resolve uma insólita “quadratura da círculo”: a recriação de um “look” ligado às películas e ao cinema de Hollywood das décadas de 30/40 — revisitando os bastidores de O Mundo a Seus Pés, o clássico de Orson Welles estreado em 1941 —, utilizando agora algumas das mais modernas e sosfisticadas câmaras digitais (RED).
Com um pormenor que quem viu o filme não poderá deixar de valorizar: a direcção fotográfica de Messerschmidt tem como pressuposto criativo e simbólico o “reencontro”, precisamente, com o visual de O Mundo a Seus Pés. Entenda-se: através de imagens a preto e branco.
Dá que pensar que uma das marcas do classicismo de Hollywood, a fotografia a preto e branco, tenha sido recuperada, em anos recentes, por dois títulos produzidos por uma plataforma de streaming (Netflix): primeiro, Roma (2018), realizado e fotografado por Alfonso Cuarón, e agora Mank. Com a particularidade de ambos terem sido distinguidos nessa mesma categoria.
Aliás, a estatística revela-nos um daqueles curiosos fenómenos que, infelizmente, nunca adquire valor mediático. Assim, até à produção de 1966, inclusive, a Academia de Hollywood atribuiu dois Oscars de fotografia, a preto e branco e a cores — o derradeiro vencedor na categoria a preto e branco foi Haskell Wexler, por Quem Tem Medo de Virginia Woolf?. Depois disso, antes de Roma (portanto, ao longo de 52 anos), apenas Janus Kamisnki tinha ganho um Oscar pelas imagens de um filme a preto e branco: A Lista de Schindler (1993). Pelo meio, ficou uma excepção paradoxal: O Artista (2011), a preto e branco, foi eleito melhor filme, mas não recebeu o Oscar de fotografia, embora estivesse nomeado na respectiva categoria.
Em 1947, 88 por cento da produção de Hollywood era filmada a preto e branco. Em 1954, numa altura em que os novos “formatos largos” (CinemaScope) funcionavam como arma concorrencial face à televisão, os filmes a cores já eram mais de metade. Mais tarde, o novo-riquismo associado ao período de vulgarização dos televisores a cores, levou muitos espectadores a interiorizar um preconceito que ainda dura: o preto e branco seria um percalço criativo e, pior um pouco, a expressão de uma insuperável indigência técnica…
Ao mesmo tempo, importa reconhecer que a multiplicação de reposições de filmes em cópias restauradas (sendo o mercado português um bom exemplo) tem contribuído para devolver aos filmes a preto e branco, não apenas a dignidade artística, mas também o seu lugar emblemático na história global do cinema. Como se prova, esse lugar continua a ser ocupado por notáveis formas de tratamento das imagens a preto e branco. Neste caso, falta o mercado corresponder à actualidade. Como? Por exemplo: organizando a reposição de O Mundo a Seus Pés.

terça-feira, abril 27, 2021

"West Side Story", primeiras imagens

De que falamos quando falamos de West Side Story? Pois bem, do musical de Leonard Bernstein e Stephen Sondheim estreado em 1957 na Broadway, da adaptação cinematográfica de 1961 com assinatura de Robert Wise e Jerome Robbins e, finalmente, da versão de Steven Spielberg, agora agendada para 10 de dezembro (depois de ter estado prevista para 18 de dezembro de 2020) — as primeiras imagens aí estão, 90 segundos de puro deslumbramento.

terça-feira, abril 20, 2021

Ser ou não ser jogador de xadrez

Max Pomeranc

Jogada Inocente é o retrato de um menino de 7 anos, génio do xadrez: admirável estreia na realização de Steven Zaillian, o filme está, discretamente, disponível em streaming — este texto foi publicado no Diário de Notícias (11 março).

Consultamos a ficha de Jogada Inocente (Netflix) e ficamos a saber que é a história de um “génio do xadrez” com 7 anos de idade, surgindo identificado como do género de “filmes para toda a família”. Estranhamente, tal generalização parece limitada pelo facto de ser “recomendado para maiores de 13 anos”…
Não seria necessário, muito menos obrigatório, qualquer enquadramento crítico para apresentar o filme, mas é pena que esta pérola da produção americana de 1993 surja, assim, tão desprotegida. E tanto mais quanto Searching for Bobby Fischer (título original) é mesmo uma raridade: nunca foi lançado nas salas portuguesas, embora exista no mercado numa edição em DVD.
Seria interessante, por exemplo, recordar que estamos perante a estreia na realização de Steven Zaillian, nome essencial na história do cinema americano das últimas décadas, desde logo porque, no mesmo ano de Jogada Inocente, assinou o argumento de A Lista de Schindler, de Steven Spielberg, trabalho que viria a valer-lhe um Oscar. Zaillian é ainda o criador (em parceria com Richard Price) de The Night Of (2016), uma das mais fascinantes séries de televisão que se fizeram neste século. Sem esquecer que é também o argumentista de um dos objectos fulcrais na dinâmica de produção da Netflix: O Irlandês (2019), de Martin Scorsese.
Bobby Fischer (1943-2008), lendário jogador de xadrez, surge, não exactamente como personagem, antes como ponto de fuga utópico do pequeno Josh Waitzking (figura verídica, prodígio juvenil do xadrez nos EUA). Invulgarmente dotado para os caminhos cruzados do tabuleiro de xadrez, Josh vai viver uma odisseia capaz de colocar à prova o equilíbrio do seu espaço familiar e a consistência dos seus estudos. No limite, este é um filme sobre a convergência (ou a contradição) de dois vectores: o processo de crescimento e integração num determinado tecido social e a procura de uma perfeição do jogo que tende a confundir-se com um ideal artístico.
Sem nunca ceder a qualquer visão paternalista ou pitoresca da infância, Zaillian revela-se um subtil observador da natureza humana, além do mais contando com um excelente elenco que inclui Max Pomeranc (na altura com 8 anos, no papel de Josh), Ben Kingsley (o professor de xadrez), Joe Mantegna e Joan Allen (os pais). Pormenor nada secundário: a direcção fotográfica tem assinatura de Conrad L. Hall (1926-2003), mestre absoluto da luz e da cor, aqui nomeado para um Oscar.

domingo, fevereiro 14, 2021

Da inocência de “A Guerra das Estrelas”
ao marketing de “Star Wars” [3/3]

Ewan McGregor, herdeiro de Alec Guinness

Foi em 1977 que surgiu o título inaugural de Star Wars, uma criação de George Lucas. Muitos anos depois, através de ramificações que vão desde a televisão aos videojogos, passando pelos brinquedos, a saga passou a ser um dos principais trunfos comerciais dos estúdios Disney; nas salas de cinema, o próximo filme está agendado para o Natal de 2023 — este texto foi publicado no Diário de Notícias, com o título 'Os "filhos" de George Lucas' (30 janeiro).

[ 1 ]  [ 2 ]

Os filmes de Jenkins e Waititi deverão surgir em paralelo (ou alguma forma de alternância) com uma outra trilogia que se anuncia como “independente” da saga de Skywalker: os respectivos argumentos estão entregues a Rian Johnson, realizador responsável por Star Wars: Episódio VIII - Os Últimos Jedi (2017). Grande actividade está também prevista no domínio televisivo, sobretudo depois do impacto das duas primeiras temporadas da série The Mandalorian, um dos principais trunfos da plataforma Disney+: criada por Jon Favreau em 2019, a série, já com uma terceira temporada em fase de produção, aposta na recriação de referências de Star Wars num registo de aventuras que o próprio Favreau definiu a partir da inspiração do “western” e dos filmes de samurais.
Com lançamento previsto para 2022, Andor é outra série em gestação, neste caso narrando os antecedentes da história de Rogue One: Uma História de Star Wars (2016), o primeiro dos “filmes de antologia” que começou a desenvolver um novo conceito: recriar os elementos figurativos e o modelo de aventuras de Star Wars, agora introduzindo novas personagens (por exemplo, a guerreira Jyn Erso, interpretada por Felicity Jones). Obi-Wan Kenobi, o lendário mestre Jedi, estará também no centro de uma série (homónima) com Ewan McGregor a retomar o papel que, em 1977, foi criado por Alec Guinness.
Face a este ziguezague de histórias e personagens, não deixa de ser desconcertante recordar que o projecto de A Guerra das Estrelas nasceu assombrado por muitos percalços, adiamentos e dúvidas. Lucas estreara-se na longa-metragem com THX 1138 (1971), um brilhante exercício de ficção científica que desenvolvia os temas e ambientes de uma curta-metragem que realizara em 1967, ainda na condição de estudante de cinema na Universidade da Califórnia. Desde essa altura, alimentou a ideia de concretizar um outro tipo de aventura, menos trágica, mais festiva, tendo mesmo tentado garantir os direitos de adaptação de Flash Gordon, a banda desenhada criada em 1934 por Alex Raymond.
Entretanto, Flash Gordon foi adquirido pelo produtor italiano Dino De Laurentiis (que lançaria a respectiva adaptação, realizada pelo inglês Mike Hodges, apenas em 1980), levando Lucas a trabalhar em algo bem diferente: American Graffiti (1973), misto de romantismo e comédia, com muitas componentes autobiográficas, sobre um grupo de jovens que celebra o fim do liceu e a entrada na universidade (subtítulo português: Nova Geração).
Na altura, Lucas integrava uma galeria de notáveis — Francis Ford Coppola, Martin Scosese, Brian De Palma, Steven Spielberg, etc. — que, de facto, estavam a mudar todas as regras do jogo no interior da grande máquina de Hollywood. Em 1975, com o espectacular sucesso do seu prodigioso Tubarão, Spielberg inaugurara, para o melhor e para o pior, a idade dos “blockbusters”.
Ainda assim, para Lucas, a procura de um estúdio disposto a financiar Star Wars não foi simples: depois da revelação através de filmes relativamente baratos, os executivos duvidavam da sua capacidade para gerir um tão grande orçamento… Na sequência de sucessivas recusas, seria Alan Ladd Jr., presidente da 20th Century-Fox, a dar um voto de confiança a Lucas, avançando com 11 milhões de dólares para a produção (valor, apesar de tudo, mediano para a época). Para a história épica da galáxia de Hollywood, registe-se que entre os estúdios que, na altura, não quiseram colocar o seu dinheiro em Star Wars estava uma empresa lendária, de seu nome Walt Disney Productions.

sábado, fevereiro 15, 2020

Os Oscars perdidos

Joe Pesci e Martin Scorsese
— rodagem de O Irlandês
Já tinha acontecido com Gangs de Nova Iorque: um filme de Martin Scorsese (agora, sucedeu com O Irlandês) obtém uma dezena de nomeações, incluindo a de melhor do ano, e sai da cerimónia dos Óscares sem qualquer prémio: a memória dos que perderam faz também parte da história e do imaginário de Hollywood — este texto foi publicado no Diário de Notícias (10 Fevereiro), com o título 'Um zero para Scorsese'.

Lembrar os que não ganharam Oscars é, nestas ocasiões, uma espécie de vício cinéfilo. Benigno, entenda-se, sobretudo se for entendido, não como uma “culpabilização” dos que votaram, antes como uma abertura de pontos de vista.
Já sabíamos que Uma Vida Escondida, de Terrence Malick, um dos títulos mais singulares do ano (e, a meu ver, dos mais brilhantes), nem sequer surgia nas nomeações. Quanto ao filme de Clint Eastwood, O Caso de Richard Jewell, nobre representante do classicismo de Hollywood e da sua vocação política, estava presente em apenas uma categoria — melhor actriz secundária, através de Kathy Bates — e perdeu.
Em qualquer caso, deparamos com um incómodo vazio: O Irlandês, um dos títulos que se apresentava entre os mais nomeados, saíu da cerimónia nº 92 da Academia de Hollywood exactamente como entrou. Ou seja: sem prémios.
Para a estatística, o prodigioso filme de Martin Scorsese ganha lugar numa galeria não muito apetecível. A saber: a dos filmes com pelo menos uma dezena de nomeações que não obtêm qualquer prémio. Scorsese, aliás, já lá estava representado com Gangs de Nova Iorque (2002): dez nomeações, zero Oscars. Nesse domínio, só dois títulos conseguiram “melhor” performance: A Grande Decisão (1977), de Herbert Ross, e A Cor Púrpura (1985), de Steven Spielberg — ambos obtiveram onze nomeações e nenhuma vitória.
Para a Netflix, produtora de O Irlandês, este é um revés importante. E não só pelo dinheiro (159 milhões de dólares) que a plataforma de “streaming” investiu na saga de Scorsese. Sobretudo porque, deste modo, volta a ficar adiado o seu reconhecimento pleno no interior da comunidade de Hollywood, reconhecimento que, como é óbvio, envolve (ou envolverá) a conquista do Oscar máximo.
Ainda assim, quanto mais não seja de um ponto de vista sentimental, o grande derrotado da noite terá sido 1917, de Sam Mendes. Derrota insólita, sem dúvida, mesmo não esquecendo que o épico da Primeira Guerra Mundial conseguiu três Oscars nas categorias técnicas — fotografia, efeitos visuais e mistura de som —, afinal reveladores da complexidade da sua produção. O certo é que, sobretudo depois dos prémios da associação de produtores e do sindicato de realizadores, 1917 parecia ser o vencedor “obrigatório” na categoria de melhor filme do ano.
Enfim, registe-se também que os filmes correntes de aventuras e super-heróis ficaram de fora. Um velho preconceito manda dizer que esses são produtos mal amados pelos críticos… Em qualquer caso, recorde-se que tais filmes quase não surgiram nas nomeações. Os que apareceram — os mais recentes episódios de Avengers e Star Wars, respectivamente com uma e três nomeações —, não receberam qualquer distinção. E não consta que tenham sido os críticos a votar.

terça-feira, fevereiro 11, 2020

Billie Eilish nos Oscars

Nos Oscars de 9 de Fevereiro, o segmento de evocação dos que faleceram ao longo dos últimos doze meses foi apresentado por Steven Spielberg, com Billie Eilish a interpretar um clássico dos Beatles, Yesterday — foi um dos grandes momentos da noite.

sexta-feira, novembro 29, 2019

A purificação do YouTube

READY PLAYER ONE [2018]
Como é que as formas de violência surgem tratadas nas imagens do mundo virtual, nomeadamente no YouTube? Eis uma velha questão que importa enfrentar para além de qualquer oposição maniqueísta entre “jogo” e “realidade” — este texto foi publicado no Diário de Notícias (23 Novembro).

Na quinta-feira, dia 21, Susan Wojcicki, CEO do YouTube, publicou a sua “última carta de 2019”, fazendo um balanço do ano da plataforma de partilha de videos a que preside. Reforçando o que já escrevera em agosto (estas são comunicações trimestrais), lembrou que persiste uma prioridade na gestão de conteúdos do YouTube: "conseguir o equilíbrio correcto entre abertura e responsabilidade”.
A apresentação de Wojcicki possui o mérito de não escamotear os muitos e complexos problemas que têm sido suscitados pelo funcionamento das redes classificadas como “sociais”. Afinal, pelo menos desde o escândalo Cambridge Analytica (com o Facebook a “ceder” informações de milhões de utilizadores, sem o seu consentimento expresso, para utilizações de propaganda política), desagregou-se o mito virginal da circulação de informação: tudo o que circula participa da nossa percepção do mundo.
Depois de abordar questões tão complexas como a gestão dos direitos envolvidos na difusão de conteúdos musicais, Wojcicki dedica um breve parágrafo a uma velha questão: as imagens que dão a ver actos violentos, ou melhor, o acesso a essas imagens. "Velha questão” porque a sua abordagem está há muitos anos contaminada pelas cruzadas dos que, ciclicamente, despertam para a figuração de “sexo e violência”, visando as formas de ficção (cinematográfica e televisiva), ao mesmo tempo que cultivam um silêncio comprometedor face ao horror normativo do comportamento humano, em particular no domínio da sexualidade, todos os dias difundido pela “reality TV”.
Vale a pena citar na íntegra o parágrafo de Wojcicki: “Quanto aos criadores de jogos, ouvimos alto e bom som que as nossas regras necessitam de estabelecer uma diferença entre a violência do mundo real e a violência dos jogos. Brevemente, isso mesmo acontecerá através de uma actualização da nossa política. A nova política terá menos restrições para a violência nos jogos, mas manterá a nossa fasquia bem alta no sentido de proteger as audiências da violência do mundo real.”
Eis um enunciado que, perversamente, participa da “naturalização” do universo hiper-tecnológico em que vivemos. Não se trata, entenda-se, de pôr em causa a boa fé seja de quem for, nem de escamotear que a boa saúde do YouTube implica lidar com as suas inevitáveis convulsões figurativas. Resta saber se semelhante programa de purificação — enraizado numa dicotomia moralista entre o mundo “real” e o universo do “jogo” — nos conduz a algo mais do que uma visão beata da tecnologia e dos seus “malefícios”.
Triunfa, aqui, uma visão do cidadão concreto, não como aquele que é a peça fulcral dos referidos processos de abertura e responsabilização, antes como um peão abstracto que a própria tecnologia se deverá encarregar de “proteger”. Assim se reforça o quotidiano processo de infantilização dos consumidores: venham a nós, que não os deixaremos cair em tentação...
Ao mesmo tempo, assim se exclui de qualquer responsabilidade a poderosíssima indústria dos jogos. Será, então, importante “regular” a figuração da violência nos produtos dessa indústria? Essa é, quase sempre, a hipótese normativa sustentada pela classe política. Sempre com o mesmo efeito: excluir de qualquer reflexão (social, precisamente) que os jogos não são o contrário do mundo real, mas sim dispositivos que encenam e reencenam esse mundo real, contaminando a visão que milhões de cidadãos, jovens e menos jovens, vão elaborando de assuntos tão díspares como os combates com metralhadoras ou os gestos técnicos de Ronaldo e Messi.
Curiosamente, a discussão das formas de profilaxia sustentadas pela CEO do YouTube começa no interior da própria cultura “made in USA”. Veja-se ou reveja-se o filme Ready Player One (2018), de Steven Spielberg. O que nele se encena não é exactamente o conflito do “jogo” com a “realidade”, mas sim a morte trágica de qualquer realidade que não passe pela vertigem do jogo. Spielberg é um optimista, eu sei, mas tem a coragem de lidar com o medo.