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sexta-feira, novembro 01, 2019

Peter Handke — os filmes do Nobel

Saboreemos a ironia da Academia Sueca: depois de, em 2016, ter atribuído o Nobel da Literatura a um cantor (um tal Bob Dylan...), achou por bem distinguir este ano, com o mesmo prémio, um escritor, Peter Handke, cuja identidade criativa passa também pelo mundo do cinema. Isso mesmo podemos perceber e desfrutar através do conjunto de seis filmes apresentados, a partir de hoje, no Espaço Nimas. A provar, afinal, que o labor da escrita encontra um espelho específico nas narrativas fílmicas, de algum modo superando os seus próprios limites materiais — ou imateriais, se for caso disso.

1 Novembro / 13h
A ANGÚSTIA DO GUARDA-REDES NO MOMENTO DO PENALTY, de Wim Wenders
— com argumento de Peter Handke e Wim Wenders (1972)

2 Novembro / 13h
OS BELOS DIAS DE ARANJUEZ, de Wim Wenders
— a partir do livro homónimo de Peter Handke (2016)

4 Novembro / 13h30
MOVIMENTO EM FALSO, de Wim Wenders
— com argumento de Peter Handke e Wim Wenders (1975)

4 Novembro / 21h
A MULHER CANHOTA, de Peter Handke (1978) *
* Sessão seguida de conversa

6 Novembro / 13h30
A AUSÊNCIA, de Peter Handke (1992)

9 Novembro / 19h
AS ASAS DO DESEJO, de Wim Wenders
— com argumento de Peter Handke e Wim Wenders (1987)

terça-feira, outubro 15, 2019

Peter Handke: anjos, livros e filmes

AS ASAS DO DESEJO (1987)
Quanto lemos a escrita de Peter Handke, não podemos deixar de sentir a sua ligação com o mundo das imagens. Afinal, o Nobel da Literatura distinguiu um autor que é também um cineasta — este texto foi publicado no Diário de Notícias (12 Outubro).

Dois homens conversam junto a uma vedação que divide o território em zonas incomunicáveis: compreendemos que tudo foi organizado para que o outro lado permaneça inacessível. A torre de vigilância confirma a planificação tensa do espaço e também o pressentimento de qualquer coisa de ameaçador.
Ainda assim, a frieza militarizada da paisagem não anula a sensação de um suave intimismo. Reconhecemos nas personagens a serenidade de uma pose que envolve também, por certo, as palavras que trocam. Uma explicação mágica ajuda-nos a decifrar a cena: Damiel, a figura da esquerda, e o seu companheiro, Cassiel, não dependem das limitações dos humanos; são anjos que circulam pela região de Berlim, corria o ano de 1987. Para eles, o Muro (que existiria ainda durante mais dois anos) não passa de uma monstruosidade demasiado humana, impotente para impedir a sua circulação pelo céu da cidade, escutando com divina paciência as vozes interiores dos seus habitantes.
Damiel e Cassiel são interpretados, respectivamente, por Bruno Ganz e Otto Sander. Se a memória cinéfila ainda não foi completamente destruída pelo ruído do marketing cinematográfico, promovendo no céu e nas ruas super-heróis de coisa nenhuma, o leitor reconhecerá a imagem de As Asas do Desejo, o filme de Wim Wenders (datado de 1987, justamente) que continua a lembrar-nos que, apesar de tudo, podemos convocar os anjos para lidar com os limites da vontade humana. As palavras que circulam pelo filme foram escritas por Peter Handke, agora distinguido com o Nobel da Literatura.
Reencontro alguns livros de Handke. Na badana da primeira edição portuguesa de A Hora da Sensação Verdadeira (Difel, 1988; tradução de Adélia Silva Mello) releio umas breves e luminosas palavras de Eduardo Prado Coelho, retiradas de um texto publicado no Expresso: “Há um enorme silêncio nas narrativas de Handke. E também um sentido de pose: as personagens desenham-se, minuciosamente recortadas, contra o silêncio, a noite, a cidade longínqua.”
Handke é um escritor, também argumentista, também cineasta — recorde-se o exemplo de A Mulher Canhota, com Edith Clever, realizado em 1978 a partir do seu romance, publicado dois anos antes (brevemente, a respectiva cópia restaurada será lançada no mercado português do DVD). Dito de outro modo: o labor da sua escrita é indissociável da consciência aguda do mundo como imagem, ou melhor, do ser humano como entidade que se define a partir dos lugares que habita e das palavras que aí se dizem ou ficam por dizer.
Em A Hora da Sensação Verdadeira, por exemplo: “Um avião passou bastante alto e, por um breve momento, a luz modificou-se, como se a sombra do aparelho tivesse passado pela rua durante um breve segundo. Quis gritar a árvores que estavam bem longe e que cintilavam ao sol que permanecessem assim! Porque é que ninguém lhe dirigia a palavra?”
Num livrinho de 2012, intitulado Ensaio sobre o Lugar Tranquilo (edição francesa de 2014: Essai sur le Lieu Tranquille, Gallimard), Handke volta a experimentar um registo que cruza a escrita confessional e a deambulação filosófica para tentar definir o mapa desse Lugar Tranquilo, assim mesmo, com maiúsculas: “O seu Lugar Tranquilo não tinha telhado, abria-se para o céu.”
Abrir-se para o céu — eis a utopia ou, pelo menos, a maravilhosa insensatez do desejo de existir. Por isso mesmo, em As Asas do Desejo, a mobilização dos anjos não envolve qualquer derivação fantástica do cinema. Nem heróis nem super-heróis. Lembremos, aliás, o esplendor das imagens a preto e branco do filme de Wenders. São imagens assinadas pelo grande Henri Alekan que, ao fotografar A Bela e o Monstro (1946), de Jean Cocteau, nos ensinara que as fantasias que partilhamos são apenas uma variante da nossa vida concreta. Os anjos sabem disso, e não desistem de lidar com a nossa indiferença.

quinta-feira, outubro 10, 2019

Peter Handke, in english
[FNAC, 2011]

Foi no dia 7 de Novembro de 2011, no âmbito das actividades paralelas do LEFFEST: Peter Handke esteve na FNAC do Chiado para uma conversa de cerca de 50 minutos (com Pedro Mexia e eu próprio na moderação) — mesmo com a resistência do escritor alemão a exprimir-se noutra língua (neste caso, o inglês), eis Handke na sua lição de rigor e método.

sábado, dezembro 31, 2016

Wenders, Handke e os outros (3/3)

O novo filme de Wim Wenders é uma prodigiosa cerimónia cinematográfica ancorada nas palavras escritas por Peter Handke — este texto foi publicado no Diário de Notícias (18 Dezembro), com o título 'Como pensar através dos filmes?'.

[ 1 ]  [ 2 ]

A história mais recente do cinema a três dimensões é, muitas vezes, uma história mal contada. Há nela um capítulo mais antigo que não pode ser reduzido aos efeitos “espectaculares” que agora nos propõem como a derradeira descoberta da arte de fazer filmes... Em meados da década de 50, títulos lendários como Máscaras de Cera (André De Toth, 1953), Chamada para a Morte (Alfred Hitchcock, 1954) ou O Monstro da Lagoa Negra (Jack Arnold, 1954) aplicaram o 3D no interior de uma guerra comercial que as chamadas “superproduções” dos anos 60 iriam continuar de outro modo — tratava-se de oferecer novidades que pudessem contrariar a desertificação das salas e o aumento exponencial das audiências televisivas.
Convenhamos que aquilo que está a acontecer nos últimos anos não é alheio a um drama com raízes, em parte, semelhantes: face à crise global de frequência das salas, acompanhada de um incremento dos consumos via Internet (legais e ilegais), o 3D surgiu como um “suplemento” de espectáculo, em última instância susceptível de “justificar” a cobrança de bilhetes mais caros.
Não está em causa que, a par da indigência de alguns filmes de “Harry Potter” e seus derivados, tal estratégia tenha também gerado algumas obras fascinantes — lembremos, por exemplo, Alice no País das Maravilhas (Tim Burton, 2010) ou A Invenção de Hugo (Martin Scorsese, 2011). O certo é que, sete anos passados sobre o lançamento desse título charneira que foi Avatar (James Cameron, 2009), não se pode dizer que o 3D tenha consumado a revolução prometida.
Importa, em particular, não reduzir o que está a acontecer a um fenómeno específico de Hollywood. O exemplo de Wim Wenders é, nesta perspectiva, modelar. Primeiro com a abordagem das coreografias de Pina Bausch, em Pina (2011), agora com o prodigioso Os Belos Dias de Aranjuez — por certo um dos acontecimentos fulcrais do ano cinematográfico de 2016 —, o cineasta alemão tem aplicado o 3D como um método paradoxal de intensificação realista, de algum modo próximo do que fez o seu compatriota Werner Herzog em A Gruta dos Sonhos Perdidos (2010).
Sempre atento às convulsões tecnológicas (em meados da década de 70, foi pioneiro a pressentir as mudanças de percepção associadas às novas câmaras de video), Jean-Luc Godard tem também deixado a sua inconfundível assinatura neste processo, através de um trabalho de pesquisa que desembocou nesse filme único que é Adeus à Linguagem (2014).
Porquê a afirmação de um “adeus à linguagem”? A expressão pode justificar as mais variadas reflexões, sendo a mais premente a que decorre de uma constatação amarga: vivemos o enfraquecimento de uma cultura literária, enraizada no valor primordial das palavras, favorecendo a sedução ambígua de um espaço dominado pelo poder das imagens. Godard pergunta-nos se, menosprezando as palavras, ainda sabemos pensar — em qualquer dimensão.

domingo, dezembro 25, 2016

Wenders, Handke e os outros (2/3)

O novo filme de Wim Wenders é uma prodigiosa cerimónia cinematográfica ancorada nas palavras escritas por Peter Handke — este texto foi publicado no Diário de Notícias (16 Dezembro), com o título 'Nick Cave: um compositor que gosta de cinema'.

[ 1 ]

A presença de Nick Cave em Os Belos Dias de Aranjuez tem qualquer coisa de aparição fantasmática. Provavelmente, não deveríamos dizê-lo, permitindo que o espectador descobrisse tal aparição sem ter qualquer informação prévia. O certo é que o trailer (atenuando o próprio efeito de surpresa) revela a sua presença no cenário do filme, ao piano, interpretando Into My Arms — trata-se de uma canção de 1997, incluída no alinhamento do álbum The Boatman’s Call, décimo registo de estúdio de Nick Cave and the Bad Seeds [em baixo: teledisco de Jonathan Glazer].
As mágoas românticas das suas canções têm sido uma pontuação importante de vários momentos da obra de Wenders, a começar por As Asas do Desejo (1987), em que Nick Cave e a sua banda surgiam mesmo numa das cenas. Há ainda temas de sua autoria em Até ao Fim do Mundo (1991), Tão Longe, Tão Perto (1993), e Imagens de Palermo (2008). Wenders incluiu também uma das suas canções no documentário The Soul of a Man (2003), da série The Blues, produzida por Martin Scorsese.
Poderá pensar-se que a condição de artista de culto reduz as suas relações com o cinema a filmes mais ou menos independentes e marginais. O certo é que escutamos canções de Nick Cave em produções como uma comédia de Jim Carrey, Doidos à Solta (1994), Batman para Sempre (1995) e até mesmo Harry Potter e os Talismãs da Morte: Parte 1 (2010).
O seu trabalho como autor de bandas sonoras é indissociável da colaboração com Warren Ellis, australiano como ele, companheiro de The Bad Seeds e também de um dos projectos “paralelos” de Nick Cave, a banda Grinderman, fundada em 2006. Assinaram, assim, a música de títulos como Escolha Mortal (2005), de John Hillcoat (com Nick Cave a assumir também as funções de argumentsita), O Assassínio de Jesse James pelo Cobarde Robert Ford (2007), de Andrew Dominik, A Estrada (2009), outra vez de Hillcoat, e Custe o que Custar (2016), de David Mackenzie, um “western” em cenários contemporâneos, recentemente lançado entre nós. Compuseram ainda as ambiências musicais para a edição audio de um romance de Nick Cave, The Death of Bunny Monroe (2009).
20.000 Dias na Terra (2014), de Iain Forsyth e Jane Pollard, destaca-se de todos estes títulos, uma vez que apresenta uma reflexão autobiográfica pouco canónica, brincando com as próprias regras do documentário. Entretanto, Andrew Dominik voltou a colaborar com Nick Cave no filme One More Time with Feeling, revelado há cerca de três meses em paralelo com o álbum Skeleton Tree. Num registo que combina o olhar documental com a atitude confessional, nele se cruzam as gravações do disco e a memória trágica de um dos quatro filhos de Nick Cave, Arthur, falecido num acidente em 2015, aos 15 anos de idade — para já, o filme teve apenas uma apresentação isolada em salas de cinema de todo o mundo (incluindo Portugal), na véspera do lançamento de Skeleton Tree.

[continua]

quinta-feira, dezembro 22, 2016

Wenders, Handke e os outros (1/3)

O novo filme de Wim Wenders é uma prodigiosa cerimónia cinematográfica ancorada nas palavras escritas por Peter Handke — este texto foi publicado no Diário de Notícias (16 Dezembro), com o título 'As palavras de Peter Handke filmadas em 3D por Wim Wenders'.

O mercado cinematográfico habituou-nos a associar a utilização das três dimensões às grandes produções de Hollywood, povoadas de heróis e super-heróis. Aí está, aliás, neste Natal, um novo capítulo da saga Star Wars, obrigando ao uso dos inevitáveis óculos... Pois bem, importa olharmos à nossa volta, reconhecendo que é mesmo preciso um pouco de tudo para fazer um mundo: o mais fascinante filme em 3D desta quadra (em boa verdade, do ano inteiro) chama-se Os Belos Dias de Aranjuez (em exibição) e tem assinatura do alemão Wim Wenders.
Convenhamos que qualquer cinéfilo minimamente atento saberá que não se trata de uma surpresa. Ao contrário de outros veteranos cineastas, nem sempre muito disponíveis para as mais recentes transformações técnicas, Wenders foi um dos primeiros a reconhecer as potencialidades formais e criativas do formato 3D, com ele registando as coreografias de Pina Bausch para o seu filme Pina, lançado em 2011. Nesse ano, na respectiva estreia mundial no Festival de Berlim, Wenders reconheceu mesmo que, “se não fosse o 3D”, não teria ousado filmar os trabalhos de Pina Bausch.
Porque é que o 3D é tão essencial para a elaboração de um filme como Os Belos Dias de Aranjuez? Precisamente porque, através dele, Wenders assume uma atitude de genuíno experimentador. Para ele, as três dimensões não têm de desembocar num artifício mais ou menos de ficção científica; o seu tratamento específico das imagens pode mesmo estar ao serviço de uma intensificação do realismo.
Sem dúvida uma palavra insólita (“realismo”), sobretudo tendo em conta que se trata de filmar a peça homónima de Peter Handke, um texto admirável centrado em duas personagens — um “homem” e uma “mulher”, de acordo com as indicações do autor — que dialogam sobre os enigmas das relações amorosas, a descoberta do desejo e a nostalgia de uma natureza que a nossa civilização abandonou (edição portuguesa: Documenta, 2014, com tradução de Maria Manuel Viana). O certo é que este é um filme que nos convoca para voltarmos a admirar as nuances da luz, o espaço e a sua profundidade, enfim, o rigor com que as palavras procuram preservar a complexidade anímica e simbólica de qualquer relação humana.

“Fora do tempo”

Há, por isso, um modo raro de representação nos actores de Os Belos Dias de Aranjuez. Reda Kateb e Sophie Semin não surgem como personagens que, de alguma maneira, nos vão revelar o interior da sua “psicologia”. Eles são presenças muito físicas — um par marcado pelos temas e problemas do século XXI — e também figuras de um performance abstracta em que se discute a própria possibilidade de acontecer alguma comunicação um com o outro, uns com os outros.
Como escreve Handke na nota introdutória da sua peça, tudo acontece “como que fora do tempo”. O filme de Wenders explora até às últimas consequências essa sensação de se estar sempre a falar de um presente obsessivamente presente (passe a redundância), sem que tal impeça o cinema de se afirmar como uma cerimónia em que a reprodução das coisas “como elas são” não recusa, antes parece atrair, uma envolvente magia.
É bem provável que Wenders e, sobretudo, o próprio Handke não se reconheçam nas experiências mais extremas do cinema de Marguerite Duras (1914-1996), com as palavras. Ainda assim, encontramos em Os Belos Dias de Aranjuez uma serena sensação de fim do mundo que faz lembrar as perturbantes intensidades de filmes como India Song (1975) ou Son Nom de Venise dans Calcutta Désert (1976) — como se o radicalismo das palavras (“amor”, “natureza”, “Aranjuez”) contaminasse o cinema com os fantasmas de uma utopia perdida.
Em boa verdade, Os Belos Dias de Aranjuez é o mais cristalino dos filmes, tão desarmante na sua transparência que podemos voltar a acreditar no cinema como pura exaltação da vida, do desejo de viver. Sem esquecer que, a certa altura, como uma aparição, somos visitados por um trovador chamado Nick Cave...

[ continua ]

quarta-feira, novembro 09, 2016

A infância segundo Peter Handke

Peter Handke esteve em Portugal para apresentar uma cópia restaurada do seu filme A Mulher Canhota — este texto foi publicado no Diário de Notícias (6 Novembro), com o título 'Os lugares tranquilos de Peter Handke'.

A presença em Portugal do austríaco Peter Handke, um dos maiores escritores contemporâneos, não encontrou grande eco nas “redes sociais”. Faz sentido que assim seja: para além das honrosas excepções, tais “redes” existem dominadas pelo ruído mediático, não por qualquer disponibilidade para olhar o mundo e escutar as suas diferenças.
Aliás, Handke pode ser definido como um autor da escuta e do silêncio, da recusa do ruído e da paciente atenção às mais secretas vibrações das palavras. Lembram-se de As Asas do Desejo (1987), de Wim Wenders? Foi ele o argumentista, tendo escrito, por exemplo, o texto que lança essa fábula sobre as convulsões históricas da cidade de Berlim, protagonizada pelos anjos que povoam o seu céu: “Quando a criança era uma criança / caminhava balouçando os braços / querendo que o ribeiro fosse um rio / o rio uma corrente / e esta poça fosse o mar” (com as minhas desculpas por esta tradução do alemão “filtrada” por uma versão inglesa).
Handke veio ao Lisbon & Estoril Film Festival para apresentar a cópia restaurada de A Mulher Canhota (1978), por ele realizado a partir do seu romance homónimo. Protagonizado por Edith Clever — a extraordinária actriz alemã que já surgira em A Marquesa d’O (1976), de Eric Rohmer, e viria a rodar Parsifal (1982), sob a direcção de Hans-Jürgen Syberberg —, trata-se de um filme de admirável delicadeza sobre uma solidão feminina que resiste a qualquer estereótipo “social”, feminino ou feminista. Quase quarenta anos depois, A Mulher Canhota ilustra mesmo uma visão dos seres humanos, homens ou mulheres, capaz de contrariar os esquemas da “psicologia” corrente, presente em poderosos discursos sociais como são as abordagens grosseiras da imprensa cor-de-rosa ou dos livros de auto-ajuda.
Podemos reencontrar tal visão em dois breves e belíssimos livros de Handke, publicados em francês há cerca de cinco anos: La Grande Chute e Essai sur le Lieu Tranquille (ambos com chancela da Gallimard). A meio caminho entre a reflexão na primeira pessoa e a deambulação romanesca, são livros que perseguem essa utopia do “lugar tranquilo”, citado no título do segundo. Como defini-lo? Não apenas a partir da suspensão do ruído social. Trata-se de lidar com as imagens “desencarnadas” e a aventura de alguém — um narrador, o escritor — que procura, precisamente, um lugar que seja seu e lhe permita dizer “eu”, isto é, pertencer a uma história.
Provavelmente, o mistério, carregado de sedução, da escrita de Handke provém do facto de o seu ponto de fuga ser sempre a infância. Não a infância pitoresca e consumista dos media (que vai reaparecer na publicidade de Natal), antes um tempo em que o absoluto fez sentido. Como nestas outras palavras de As Asas do Desejo: “Quando a criança era uma criança / não sabia que era uma criança / tudo tinha uma alma / e todas as almas eram uma só”.