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AS ASAS DO DESEJO (1987) |
Quanto lemos a escrita de Peter Handke, não podemos deixar de sentir a sua ligação com o mundo das imagens. Afinal, o Nobel da Literatura distinguiu um autor que é também um cineasta — este texto foi publicado no Diário de Notícias (12 Outubro).
Dois homens conversam junto a uma vedação que divide o território em zonas incomunicáveis: compreendemos que tudo foi organizado para que o outro lado permaneça inacessível. A torre de vigilância confirma a planificação tensa do espaço e também o pressentimento de qualquer coisa de ameaçador.
Ainda assim, a frieza militarizada da paisagem não anula a sensação de um suave intimismo. Reconhecemos nas personagens a serenidade de uma pose que envolve também, por certo, as palavras que trocam. Uma explicação mágica ajuda-nos a decifrar a cena: Damiel, a figura da esquerda, e o seu companheiro, Cassiel, não dependem das limitações dos humanos; são anjos que circulam pela região de Berlim, corria o ano de 1987. Para eles, o Muro (que existiria ainda durante mais dois anos) não passa de uma monstruosidade demasiado humana, impotente para impedir a sua circulação pelo céu da cidade, escutando com divina paciência as vozes interiores dos seus habitantes.
Damiel e Cassiel são interpretados, respectivamente, por Bruno Ganz e Otto Sander. Se a memória cinéfila ainda não foi completamente destruída pelo ruído do marketing cinematográfico, promovendo no céu e nas ruas super-heróis de coisa nenhuma, o leitor reconhecerá a imagem de
As Asas do Desejo, o filme de Wim Wenders (datado de 1987, justamente) que continua a lembrar-nos que, apesar de tudo, podemos convocar os anjos para lidar com os limites da vontade humana. As palavras que circulam pelo filme foram escritas por
Peter Handke, agora distinguido com o Nobel da Literatura.
Reencontro alguns livros de Handke. Na badana da primeira edição portuguesa de A Hora da Sensação Verdadeira (Difel, 1988; tradução de Adélia Silva Mello) releio umas breves e luminosas palavras de Eduardo Prado Coelho, retiradas de um texto publicado no Expresso: “Há um enorme silêncio nas narrativas de Handke. E também um sentido de pose: as personagens desenham-se, minuciosamente recortadas, contra o silêncio, a noite, a cidade longínqua.”
Handke é um escritor, também argumentista, também cineasta — recorde-se o exemplo de A Mulher Canhota, com Edith Clever, realizado em 1978 a partir do seu romance, publicado dois anos antes (brevemente, a respectiva cópia restaurada será lançada no mercado português do DVD). Dito de outro modo: o labor da sua escrita é indissociável da consciência aguda do mundo como imagem, ou melhor, do ser humano como entidade que se define a partir dos lugares que habita e das palavras que aí se dizem ou ficam por dizer.
Em A Hora da Sensação Verdadeira, por exemplo: “Um avião passou bastante alto e, por um breve momento, a luz modificou-se, como se a sombra do aparelho tivesse passado pela rua durante um breve segundo. Quis gritar a árvores que estavam bem longe e que cintilavam ao sol que permanecessem assim! Porque é que ninguém lhe dirigia a palavra?”
Num livrinho de 2012, intitulado Ensaio sobre o Lugar Tranquilo (edição francesa de 2014: Essai sur le Lieu Tranquille, Gallimard), Handke volta a experimentar um registo que cruza a escrita confessional e a deambulação filosófica para tentar definir o mapa desse Lugar Tranquilo, assim mesmo, com maiúsculas: “O seu Lugar Tranquilo não tinha telhado, abria-se para o céu.”
Abrir-se para o céu — eis a utopia ou, pelo menos, a maravilhosa insensatez do desejo de existir. Por isso mesmo, em As Asas do Desejo, a mobilização dos anjos não envolve qualquer derivação fantástica do cinema. Nem heróis nem super-heróis. Lembremos, aliás, o esplendor das imagens a preto e branco do filme de Wenders. São imagens assinadas pelo grande Henri Alekan que, ao fotografar A Bela e o Monstro (1946), de Jean Cocteau, nos ensinara que as fantasias que partilhamos são apenas uma variante da nossa vida concreta. Os anjos sabem disso, e não desistem de lidar com a nossa indiferença.