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20 June 2019

A BUSCA DA FELICIDADE


Bill Callahan é o tipo capaz de escrever “Dress sexy at my funeral, my good wife, for the first time in your life, wear your blouse undone to here and your skirt split up to there, and when it comes your turn to speak before the crowd, tell them about the time we did it on the beach with fireworks above us” e de cantar essas palavras envoltas na adequada gravitas que o tema exige, rematando-as com “Also tell them about how I gave to charity and tried to love my fellow man as best I could, but most of all, don't forget about the time on the beach with fireworks above us”. Estávamos em 2000 e no álbum Dongs of Sevotion, quando, na realidade, não tinha ainda conhecido a “good wife”. Foi só 12 anos mais tarde que encontrou Hanly Banks, documentarista que, sobre ele realizaria Apocalypse e que, em consequência da felicidade familiar que descobririam juntos, forçaria Shepherd In A Sheepskin Vest – o sucessor de Dream River (2013) – a ter de ir lentamente amadurecendo durante 6 anos. Quando, numa entrevista recente a “The Fader”, lhe chamaram a atenção para que, também agora, o há muito desaparecido David Berman (Silver Jews) reaparece, observou: “É como se todos os zombies tivessem acordado”.

    Levou 6 anos para concluir este álbum o que é bastante mais que a sua média habitual. Houve algum motivo particular para isso? 

Houve mudanças importantes na minha vida: casei-me e tive um filho. Não sou o tipo de pessoa capaz de ignorar tudo isso e continuar a trabalhar. Tive de aprender a ser pai e marido e isso ocupou-me alguns anos. Ao mesmo tempo, procurei não perder de vista o velho eu que faz música e encontrar o espaço no cérebro para cada uma das minhas diferentes responsabilidades. Foi demorado resolver tudo isso. Por outro lado, proporcionou-me tempo para reavaliar e repensaro meu trabalho.

    Na propria essência da escrita das canções, na forma como as trabalha e interpreta, houve alguma transformação concreta? 

Quis gravar um album cujo tema fosse definitivamente tudo aquilo por que tenho passado. Nunca me apercebi de que existissem muitos discos acerca da felicidade doméstica. Tudo isto me afectou muito profundamente. Se trabalhasse num escritório ou fosse advogado, trabalhava doze horas, voltava para casa, e tudo se passaria sem problemas. Mas, comigo, não é bem assim, preciso de me envolver com as coisas. E este não é, de facto um tópico que costume interessar imenso aos "songwriters". Talvez alguém mais jovem do que eu, que tenho já 53 anos, pudesse ter outra perspectiva sobre isto. 

    Tratar-se-á daquilo a que, habitualmente, se chama ter atingido a maturidade? ... 

... se calhar... muitas vezes, quando saímos de casa dos pais, não estamos ainda realmente preparados para assumir responsabilidades e tomar conta de nós mesmos enquanto jovens adultos. Provavelmente, só atingimos a maturidade quando damos vida a alguém. 



    Poderá dizer-se que aquilo que constitui o espírito do álbum é uma ideia de que vale mais concentrarmo-nos na descoberta e preservação da felicidade do que desperdiçar o tempo obcecado pelo lado negro e ameaçador da existência? 

Ainda não tinha pensado nisso dessa forma mas parece-me um bom ângulo sob o qual encarar o álbum. 

    Já descobriu a resposta para a interrogação que, em "Ride My Arrow", do último álbum, formulava: “Is life a ride to ride? Or a story to shape and confide? Or chaos neatly denied?” 

Hoje, provavelmente, responderia “a ride to ride” mas é importante permanecermos abertos a todas as possibilidades, não devemos agarrar-nos teimosamente apenas a uma. 

    Nos primórdios dos Smog, a música era agreste, ruidosa, experimental, lo-fi. Uma vez, descreveu-a como “a monkey throwing shit on the walls”. Pretendia puramente experimentar ou tinha alguma intenção definida? 

Gostava de explorar todos os tipos de ruído, moldá-los, tirar partido de vias mais abstractas, é um caminho muito aberto. É verdade que, na altura, também não dominava particularmente bem a guitarra... pretendia que fosse tudo imediato o que, numa situação de estúdio, é difícil acontecer. Tive de aprender tudo isso à minha custa. 



    Quando começou a dedicar-se à música, havia bandas ou músicos individuais que, de algum modo, tivessem funcionado como modelos para si? 

John Lee Hooker foi uma grande influência. Aprendi com ele que uma canção pode ser constituída apenas por meia dúzia de palavras, dois ou três acordes... De outra forma, também o Lou Reed: escrevia sobre aquilo que mais ninguém escrevia, coisas que estaríamos à espera de encontrar num livro ou num filme mas não numa canção. Abriu-me os horizontes para assuntos com os quais nem sequer sonhava. Mas também os Minutemen ou os Meat Puppets, os textos eram muito idiossincráticos. Muito no início, interessava-me também pela "musique concrète", pelo "free jazz"... sonoridades "free-form" que nunca podem ser recriadas. 

    E, hoje, que música ouve que o entusiasme? 

Oiço bastante "footwork", um género de hip-hop muito estranho e experimental popularizado pelo RP Boo, um DJ de Chicago. Acho-o muito hipnótico. Ninguém gosta, realmente de ouvir, é só um apoio para dançar, mas eu gosto mesmo. Também oiço muita música electrónica e "house", tudo aquilo que, antes, não conseguia compreender. Estou convencido que acabamos por ser capazes de entender tudo se não desistirmos de o fazer. 

    Foi a partir de 1997, com Red Apple Falls (produzido por Jim O’Rourke), que tudo começou a ser algo mais estruturado... 

Já tinha tocado com um baterista em Wild Love (1995) mas essa foi realmente a primeira vez que, num álbum, do princípio ao fim, usei bateria. Nessa altura, foi como se tivesse acendido um enorme foco de luz, a bateria torna tudo muito mais fácil, podemos apoiar-nos nela.



    A partir de 2007 e de Woke on a Whaleheart, deixou de gravar como Smog e passou a fazê-lo sob o seu próprio nome. Houve alguma razão especial para isso? 

O nome Smog era como uma tatuagem que eu tivesse feito aos 18 anos. E, à medida que o tempo ia passando, fazia cada vez menos sentido. 

    Não é fácil livrarmo-nos de uma tatuagem... 

É verdade, mesmo agora, em anúncios de concertos, muitas vezes, ainda continua a aparecer “Bill Callahan (Smog)”. Quis distanciar-me em relação a isso. Pelo menos, tentei... Para mim, tinha deixado de ter qualquer significado, estava farto. 

    Em 2010, publicou Letters to Emma Bowlcut a que chamou uma “epistolary novelette” e, quatro anos depois, I Drive a Valence, uma recolha de textos de canções e desenhos seus. Foram impulsos de ocasião ou gostaria de prosseguir uma carreira literária? 

Insistiam muito comigo para escrever um livro e gostava de pensar que serei capaz de voltar a escrever outro. Foi uma experiência de que gostei: escrever, reescrever, corrigir, editar... Mas só sou capaz de fazer uma coisa de cada vez: se estou a pensar num disco, não consigo, ao mesmo tempo, concentrar-me num livro. 

    Sentava-se disciplinadamente para escrever ou ia produzindo textos dispersos que, depois, reuniu em livro? 

Ao longo dos anos, tinha reunido um certo número de textos mais ou menos em formato epistolar e mais uns quantos outros. Uma amiga minha, Connie Lovatt, leu-os e editou-os. A forma de carta é um meio de expressão muito livre: pode ser prosa, poesia, entradas de um diário, crónicas, comentários, apontamentos... 

    Escrever um livro foi uma experiência radicalmente diferente de escrever canções? 

As canções são habitualmente estruturadas em versos e refrão. Os parágrafos não são a mesma coisa. São mais robustos e compactos. Os versos são mais finos e farpados.

23 November 2014

COM UM CÃO DEITADO NO CHÃO

  
“O processo de aprendizagem para os artistas de todos os géneros segue habitualmente a via da imitação, assimilação e inovação. (...) Por vezes, se algo, por algum motivo, se revela impossível de replicar, o artista procura descobrir outro caminho – é a inovação por defeito. (...) Era óbvio que Bob Dylan era um inovador. Esforçava-se para aprender o seu ofício, para imprimir um cunho próprio à música. (...) Aqui e ali, reconhecia possíveis influências. Uma noite, entrou pelo Kettle Of Fish dentro, acenando com uma folha de papel: ‘Têm de ouvir esta canção que acabei de escrever! Escrevi-a ou, pelo menos, julgo que a escrevi... mas posso tê-la escutado algures’, conta Suze Rotolo, a namorada de Dylan nos seus primeiros anos nova-iorquinos, em A Freewheelin’ Time: A Memoir of Greenwich Village in the Sixties (2008).

Em 1967, Dylan havia já completado a aprendizagem – Bringing It All Back Home (1965), Highway 61 Revisited (1965) e Blonde On Blonde (1966) eram bem mais do que licenciatura, mestrado e doutoramento – mas, quando, após o famigerado acidente de moto do ano anterior, decidiu, em pleno Summer Of Love, exilar-se com a família, em Woodstock, na companhia da Band (ainda, então, apenas o grupo de músicos, ex-The Hawks, que o havia acompanhado em tournée), a atitude colectiva foi, essencialmente, a de uma descontraída cimeira de académicos da música popular norte-americana para revisões da matéria: ao universo poético e sonoro do tempo para cuja criação contribuíra, preferia, agora, intermináveis "jams" em torno das memórias de Hank Williams, Johnny Cash, Brendan Behan, John Lee Hooker, Curtis Mayfield, Patsy Cline ou Fats Domino, no cenário ideal de “uma atmosfera tranquila, uma cave com as janelas abertas e um cão deitado no chão” em que ele “actuaria como um médium numa sessão espírita, procurando captar o mistério, a magia e a verdade da grande música tradicional” e, por improváveis atalhos, oferecendo-lhe uma possibilidade de reconfiguração.

O resultado final, só hoje finalmente disponível na totalidade, desaguou em 17 bobinas engarrafadas com 138 canções (completas, em múltiplas "takes", apenas fragmentárias), quase metade versões de clássicos ou obscuridades. Na realidade, pouco ou nada é verdadeiramente inédito. Longamente aferrolhado nos cofres da Columbia até à primeira publicação, em 1975, das mui peneiradas Basement Tapes, o espólio transformou-se num dos mais lendários "bootlegs" que, em sucessivas encarnações – Great White Wonder (1969), Blind Boy Grunt & The Hawks (1986), The Genuine Basement Tapes (1992) A Tree With Roots (2001), Mixing Up The Medicine (2009) – acabaria por revelar praticamente todas as canções que as edições oficiais ou bandas como os Byrds, Band, Manfred Mann, Julie Driscoll & Brian Auger ou Fairport Convention ainda não tinham tornado públicas. A preciosidade legalizada (em versão “Raw”, de 2 CD, ou “Complete”, de 6) intitula-se The Bootleg Series Vol. 11: The Basement Tapes Complete e será, sem dúvida, merecido objecto de veneração. Mas a aura corsária já não está lá.

28 May 2014

THIS COULD BE THE LAST TIME 



Antes de tudo o que, a seguir, virá: nunca esquecer que, quando, em 1961, Mick Jagger e Keith Richards se mudaram de Dartford para Chelsea, em Londres, e aí conheceram Brian Jones, este e Richards começaram imediatamente a planear a formação de uma banda de rhythm’n’blues mas Jagger, pondo a render os seus sete O-levels e três A-levels, tratou de inscrever-se na London School Of Economics que frequentaria até 1963. Sublinhar “Economics”. Louvem-se, então, os benefícios que uma boa educação universitária pode proporcionar, constatando como, na lista das 20 mais lucrativas tournées de sempre, os Stones inscrevem quatro presenças: “A Bigger Bang Tour” (558 milhões de dólares, 2005 / 2007, em 2º lugar – apenas atrás do “U2 360º Tour” –, e a maior digressão norte-americana alguma vez realizada); “Voodoo Lounge Tour” (320 milhões, 1994 / 1995, 10º lugar); “Licks Tour” (311 milhões, 2002 /2003, 11º lugar); e “Bridges To Babylon Tour” (274 milhões, 1997 / 1998, 14º lugar). Destacadamente à frente de Bruce Springsteen, Madonna e U2 que se quedam, cada um, com duas entradas. 


Insistindo nos números astronómicos – vendas de discos, assistências record, dimensões de palco, parafernália de adereços e maquinaria, consumo de fármacos capaz de abastecer um hospital de grande dimensão –, poderia continuar a traçar-se uma biografia estatística paralela dos Rolling Stones. Porém, ficando só por aqui, deverá ser bastante para justificar por que motivos se tornou inevitável ouvir chamar-lhes “a maior banda de rock’n’roll de todos tempos”: aqueles que, em início de carreira, eram publicamente apresentados na qualidade de “pervertidos, ofensivos, violentos, repulsivos, feios, sem gosto, incoerentes, e isso é o que têm de bom” e sobre quem se lançava a insidiosa maldição “deixaria, alguma vez, a sua filha casar com um Rolling Stone?...”, terão excedido gostosa e largamente os traços negativos desse perfil mas isso não os impediu de se transformarem no género de gestores de negócios que poderiam dar "masterclasses" a quem se ocupa de maximizar lucros (não fazendo grande questão de reduzir despesas).



Razão adicional para vir a constituir-se em "case study", é o facto de a administração bicéfala da empresa – Jagger/Richards – atribuir pouca ou nenhuma importância ao chamado “bom ambiente de trabalho”. Sim, é verdade que tudo começou como vem descrito nos contos de fadas pop (a história dos dois miúdos ex-colegas da primária que se reencontram, anos mais tarde, já adolescentes, numa estação de comboios, com álbuns de Chuck Berry e Muddy Waters debaixo do braço), mas também será útil saber que, desde há cerca de quarenta anos, as relações entre ambos azedaram seriamente e, pelo menos, há vinte, nenhum ousa entrar no camarim do outro. Um dos pontos de não retorno aconteceu a meio da década de 80: Mick Jagger regista o primeiro álbum a solo (She’s The Boss, 1985) enquanto, em Paris, com sessões de gravação cuidadosamente planificadas para que nunca ambos se cruzassem, Keith Richards se ocupa praticamente sozinho do que viria a ser Dirty Work (1986). Sentindo-se traído, chega a colocar a hipótese de convidar Roger Daltrey, dos Who, para substituir Jagger. A usurpação da coroa não teria lugar mas, de entre as 27 canções que Richards leva para estúdio, várias (nenhuma seria publicada) ostentam títulos como “Fight”, “Had It With You” e “Knock Your Teeth Out”.



O pior de tudo: nada disto são intrigas de jornalismo de sarjeta, foi o próprio Keith Richards que o revelou na autobiografia Life, publicada há quatro anos (meses antes, recusara-se a aparecer no festival de Cannes por ocasião da apresentação de Stones In Exile – um documentário de Stephen Kijak sobre a gravação de Exile On Main St. – por entender que este prestava desproporcionada atenção a Jagger), espécie de ajuste de contas com o passado, na qual tece considerações acerca do insuficiente calibre de determinadas zonas anatómicas de Mick Jagger (a quem tratava, amavelmente, por “Brenda”, “Miss Jagger”, “Queen Mother” e “Her Ladyship”), revela detalhes sobre a variabilíssima geometria do quadrilátero formado por ambos, Marianne Faithfull e Anita Pallenberg, e desabafa, confessando que “viver com Jagger era como ser obrigado a cuidar de um periquito irritante”.


Não surpreende, assim, que a digressão “50 & Counting...“, de 2012 / 2013 (87.7 milhões, 18 concertos), destinada a comemorar o 50º aniversário da banda, tenha sido menos uma amistosa confraternização de antigos combatentes do que o resultado de uma frenética coreografia de reuniões entre advogados e managers assoberbados com uma missão de complexidade equiparável à de uma cimeira política no Médio Oriente. O que, naturalmente, coloca também um gigantesco ponto de interrogação sobre o seu prolongamento deste ano (a denominada “14 On Fire”, iniciada a 21 de Fevereiro em Abu Dhabi e com final previsto para 22 de Novembro, em Auckland, na Nova Zelândia): será esta a última vez que os Rolling Stones pisarão um palco?



Nada menos provável. Ao contrário de algumas pérfidas más-línguas que qualificam os actuais concertos dos Rolling Stones como “a noite dos mortos-vivos”, a capacidade para activar a velha máquina mantêm-se intacta e a empresa não perdeu o apetite pelo lucro. Mick Jagger afirma que já só pensa em “sequências de 20 concertos de cada vez” e sabe melhor do que ninguém que, embora a banda, desde há muito, tenha desistido da ambição de publicar música nova à altura dos seus clássicos, por esta altura – mesmo para grupos da dimensão dos Stones –, o pote de ouro já não se encontra no topo das tabelas de vendas. Muito mais valioso é ter sempre à mão um reportório pronto-a-usar, um stock de imagens, memórias, tiques e reflexos condicionados que, com um estalar de dedos, por maior uso que já lhe tenha sido dado, continua a produzir efeito e a encher estádios e arenas. E deixar pairar a dúvida acerca de quando chegará o fim – e a certeza de que ele, irremediavelmente, chegará não é o menor dos trunfos – será, paradoxalmente, o melhor seguro de vida: haverá sempre uma interminável multidão ávida de poder contar que “estava lá” no dia em que, depois de Elvis, depois dos Beatles, Hendrix e Cobain, real ou metaforicamente, uma vez mais, “the music died”.



Até porque a outra omnipresente estatística que nos informa encontrarem-se já todos para lá da fasquia dos 70 anos (à excepção do garoto Ronnie Wood, à beira dos 67) ainda não parece demasiado próximo de vir a ser, verdadeiramente, um obstáculo. Em Setembro passado, no “Financial Times”, Gillian Tett (editora adjunta e analista financeira, uma miudinha de 47 anos), lançando o anzol para outros mares, tomava-os como pretexto, a propósito de um concerto da tournée “50 & Counting...“ a que assistira. Após babar-se perante “o extraordinário atleticismo e magnetismo sexual” do “sobrenatural Jagger, de jeans pretos justos”, Tett interrogava-se: “Ter à frente um grupo de homens nas sétima e oitava décadas de vida, com uma média de idades aparentemente mais elevada do que a dos juízes do Supremo Tribunal norte-americano (...) e, nos EUA e na Europa, tecnicamente, na idade da reforma, a abanar o rabo e rockando furiosamente, dá que pensar: se ‘pensionistas’ são capazes de dançar assim tão freneticamente em palco, durante horas, não será altura para repensar todo o conceito de reforma?” E, vendo bem, se nos recordarmos que eles se forjaram no molde dos velhos bluesmen, basta pormos os olhos em John Lee Hooker que tocou até aos 83, em B.B. King que está a um passo dos 90 mas ainda não levantou os dedos das seis cordas da inseparável Lucille ou em Chuck Berry que, aos 88, continua por aí...

01 April 2010

VISITA GUIADA



Get Yer Ya-Ya’s Out




Rolling Stones Live At The Max




Terrifying/The Legendary Atlantic City Concert

Breve visita guiada à história da música popular, na segunda metade do século XX: primeira paragem, Madison Square Garden, 27 e 28 de Novembro de 1969, antepenúltimos concertos dos Rolling Stones na digressão que, a 6 de Dezembro, terminaria em Altamont e, aí, extinguiria oficialmente os fumos de “paz & amor” da década. A tournée havia começado menos de três meses após o festival de Woodstock e um pouco mais depois de Armstrong e Aldrin terem caminhado sobre a Lua. Richard Nixon tinha sido eleito presidente dos EUA, um movimento radical de estudantes ocupara a universidade de Harvard e o massacre de My Lai, no Vietname, ocorrera apenas há dois meses. Nos bastidores dos concertos, circulavam Jimi Hendrix, Jerry Garcia, Janis Joplin e o yippie Abbie Hoffman que tentara ludibriar a segurança, fazendo-se passar pelo coronel Tom Parker, o famigerado empresário de Elvis Presley.



Com reportório assente em Beggars Banquet (do ano anterior) e Let It Bleed (que seria publicado uma semana depois), a digressão daria origem a Live'r Than You'll Ever Be, um dos primeiros bootlegs ao vivo, e a Get Yer Ya-Ya’s Out, o live acerca do qual Lester Bangs, um ano mais tarde, escreveria: “Numa época em que a maioria dos concertos se tornou quase embaraçosa no seu exibicionismo e excesso, Ya-Ya’s pontapeia-nos para fora da cadeira. Não o amamos apenas pelo que é mas também por aquilo que ele não é”. E, concentrando-se na última faixa, concluía: “’Street Fighting Man’ eleva o concerto a um nível de intensidade estratosférica que simplesmente se ergue acima do resto do álbum e lhe serve de síntese”. Nos últimos dias da aventura americana, Mick Jagger, aos 26 anos, resmungava “Não podemos continuar a fazer isto eternamente, estamos a ficar demasiado velhos”.



Segunda paragem: digressão "Steel Wheels/Urban Jungle" (na extensão europeia), de Agosto de 1989 a Agosto de 1990, entre os EUA, a Europa – a 10 de Junho de 90 picaria o ponto em Lisboa, no estádio de Alvalade – e o Japão, quase 120 concertos e um colossal sucesso financeiro. Filmados em Londres, Berlim e Turim, em toda a glória do sistema IMAX, os Stones actuam num gigantesco cenário disneyano, repleto de “exibicionismo e excesso”, Jagger muda de guarda-roupa entre cada duas canções, os ângulos de filmagem oscilam entre o hagiográfico e o acrobático. Três passos antes do último (a inevitável "Satisfaction"), é a vez de "Street Fighting Man", a tal canção que Jagger e Richards haviam escrito inspirados no revolucionário trotsquista Tariq Ali e nos motins parisienses de Maio de 68 (“Nessa altura, Londres era uma cidade muito pacata… Em França mas também na América, vivia-se uma época muito estranha por causa da guerra do Vietname e de todas aquelas revoltas constantes. Pareceram-me tempos óptimos, violentos. Em França quase derrubaram o governo”, diria ele, mais tarde, a Jann Wenner, da “Rolling Stone”): do lado direito do palco, um enorme dragão insuflável multicolorido contorce-se. Qual S. Jorge, Jagger investe sobre ele, de peito aberto e lança em punho, até ser, metaforicamente, devorado. O cenário de 68 virara BD, Mick Jagger tinha 47 anos e, até hoje, “demasiado velho” ou não, continuaria “a fazer aquilo”. The show must go on.



Terceira paragem: Atlantic City, New Jersey, 1989, ainda a "Steel Wheels Tour". Nem músicos com a dimensão dos Stones estão imunes a que o "business as usual", na sua versão mais rasteira, os abocanhe. Quem viu as imagens e escutou o som de Live At The Max, dificilmente acreditará que se trata da mesma banda e da mesma digressão que aqui – com os special guests John Lee Hooker, Clapton e Axl Rose - se apresenta: há DVDs domésticos de qualidade facilmente superior em todos os parâmetros de avaliação e este apenas poderá beneficiar da atenuante de, logo no título, se anunciar tal como, realmente, é – Terrifying.
Sumário: Get Yer Ya-Ya’s Out, na sua opulência de caixa contendo a gravação original, um CD de inéditos, outro (óptimo) com as participações de B. B. King e Ike & Tina Turner, um DVD (dispensável a não ser pelo carácter documental) de cinco temas e um booklet de 28 páginas (fotos, textos, memorabilia) em "hardback", é material de consulta indispensável; Live At The Max satisfaz os interessess de quem prefere os Stones maduros, em versão-Grand Guignol, e acredita piamente que eles continuam a ser "the greatest rock’n’roll band"; Terrifying, na ausência da acção directa de um qualquer grupo de "street-fighting men", é apenas um caso de polícia.

(2010)

15 September 2009

NA FLORESTA COM UM MAPA DE LONDRES



Nick Cave & The Bad Seeds - From Her To Eternity




Nick Cave & The Bad Seeds - The Firstborn Is Dead




Nick Cave & The Bad Seeds - Kicking Against The Pricks




Nick Cave & The Bad Seeds - Your Funeral... My Trial

Pouco depois do início do segundo capítulo do documentário Do You Love Me Like I Love You, de Iain Forsyth e Jane Pollard – equitativamente dividido pelos quatro DVD que acompanham a reedição remasterizada do quarteto inaugural da discografia de Nick Cave & The Bad Seeds –, o jornalista e biógrafo de Cave, Max Dax, invoca o conceito de "cross-mapping", do realizador e romancista alemão, Alexander Kluge, para caracterizar o quase fetichismo literário de Nick Cave (em particular, de The Firstborn Is Dead, de 1985, em diante) pelos temas e autores do Sul norte-americano. Australiano, emigrado de Melbourne para Inglaterra, gravando no antigo salão de baile nazi dos estúdios Hansa, imaginando-se na pele de Faulkner, Carson McCullers ou Flannery O’Connor, Cave era como alguém que “caminhava pelo interior de uma floresta com um mapa de Londres nas mãos”.



Já, a propósito de From Her To Eternity (1984) – primeira faixa do primeiro álbum em nome próprio: "Avalanche", de Leonard Cohen – , alguém havia definido a transição dos Birthday Party para os Bad Seeds como uma mudança estético-táctica, do “carpet bombing” sonoro e literário para um “bombardeamento mais cirúrgico”, algo como “Elvis Presley meets Johnny Cash, meets the Sex Pistols”, com “melhor conteúdo poético”. Não desvalorizando a obra propriamente musical de Nick Cave, permitam-me sugerir que ele nunca foi mais "sulista" e "faulknercullerso’conneriano" do que no cinema, em The Proposition (2005), de John Hillcoat, para o qual escreveu o argumento e a banda sonora, onde, o regresso à Austrália colonial, lugar de nenhuma redenção e de todas as irremediáveis condenações, se desenhava como espaço de confronto, sem vencedores e só com derrotados, entre a implacável natureza e o imenso pior (e apenas o hipotético melhor) da espécie humana.



Limpo o pó das espiras de vinil e puxado o lustro à primitiva tecnologia digital, tanto esses dois álbuns como Kicking Against The Pricks e Your Funeral My Trial (ambos de 1986) – um, segundo Simon Reynolds, a conversão de “xâmane, à maneira de Jim Morrison e Iggy Pop, em showman”, o outro, uma experiência de “tentar não ser tão esquisito”, nas palavras de John Darnielle, dos Mountain Goats –, regressam, agora, em toda a sua glória original, rememorando os anos em que apenas Mick Harvey conseguia segurar as desvairadas pontas de um bando de junkies em roda livre, o produtor, Flood, operava milagres improváveis com tempo de estúdio limitado e (de acordo com os depoimentos de fãs, cúmplices, jornalistas, gente alucinada e colaborante dos Einstürzende Neubauten e Die Haut, roadies, editores, e outros santos e apóstolos) uma seita que fazia questão de nada ter a ver com a mitologia do rock’n’roll e lhe preferia as assombrações de John Lee Hooker e Blind Lemon Jefferson, o kitsch de Gene Pitney e dos Seekers ou os pesadelos no ventre da besta de Jack Henry Abbott, edificava um universo paralelo... do rock’n’roll. Do espectro do gémeo morto de Elvis Presley à memória das chain-gang songs, dos danados de Peckinpah a Edgar Allan Poe ou ao Huck Finn de Mark Twain revisto por Bukowski, com um único rumo: “This is the track of deception, leads to the heart of despair".

(2009)


Voto na urna: nulø, com a frase "ESTA GENTE É UM NOJO"

11 May 2009

OS DIAS DA RÁDIO


Bob Dylan - Together Through Life

Como diria Margaret Atwood, "o contexto é tudo". E isso, no que diz respeito à devida apreciação do último álbum de Bob Dylan, adquire toda uma importância suplementar. Antes de mais, tome-se nota que ele próprio faz questão de nos colocar nas mãos – na edição "deluxe" de Together Through Life – a chave essencial para a descodificação: um CD extra com a edição número 17 ("Friends & Neighbors") do seu programa, "Theme Time Radio Hour", na XM Satellite Radio e, posteriormente, na Sirius Satellite Radio. Os dylanófilos mais militantes não ignorarão, mas haverá, de certeza, quem desconheça que, desde Maio de 2006, Dylan manteve uma emissão de rádio semanal de uma hora, tematicamente estruturada, na qual, assumindo as funções de realizador, narrador, comentador, entrevistador e "radio DJ", articulou, do modo mais livre e eclético, faixas celebérrimas e obscuras de jazz, blues, folk, soul, rockabilly, country, pop, garage e R&B com intervenções de notabilidades da música e das várias artes, histórias e farrapos de informação avulsos, emails e telefonemas de ouvintes, jingles, recitações de poesia, receitas de cocktails, aconselhamento acerca da alimentação de felinos, e os seus próprios pontos de vista e apartes a propósito do transcendente e do trivial.



Ao longo de três temporadas (50 edições, de Maio de 2006 a Abril de 2007, 25 edições de Setembro de 2007 a Abril de 2008, e outras 25, de Outubro de 2008 a Abril deste ano), organizados à volta de conceitos como "Weather", "Mother", "Rich Man, Poor Man", "The Bible", "Cats", "Dogs", "Guns", "Women’s Names", "Hair", "Birds", "Danger", "Blood", "Madness", "Noah’s Ark" e todos os outros 86 que faltam, os programas da sua "Radio Hour" constituíram algo como a banda sonora complementar e ideal para a exploração de profundidade da alma da América tal como Greil Marcus a vem realizando, em boa medida, a partir da obra... de Bob Dylan. Aparentemente terminado de vez a 15 do mês passado (tema: "Goodbye"; canção de fecho: "So Long, It’s Been Good To Know You", de Woody Guthrie - mas o veredicto definitivo acerca de uma futura quarta temporada ainda se encontra suspenso), existe, porém, disponível para "download" na íntegra e pronto a trazer o júbilo a milhões de discípulos de His Bobness, em dois verdadeiros baús do tesouro – e raras vezes esta expressão foi mais apropriada – nos arquivos da Croz.fm e, em matéria de guiões, textos e anotações, nas páginas do "Bob Dylan Fan Club". Detalhe de decifração esotérica adicional: no primeiro programa da última temporada, difundido na semana de Outubro de 2008 em que rebentou a gigantesca bolha financeira da crise global em curso, o tema – previamente definido – era "Money: Part 1".


Recuo, agora, até Julho do ano passado, ao palco do passeio marítimo de Algés e (autocitando-me) exercício de escavação na memória: à nossa frente, Dylan, comandando a banda em que desejaríamos tropeçar "se parássemos num bar de estrada do Minnesota" e que "se diria saída de um cenário de Peckinpah filmado pelo Tarantino de Reservoir Dogs", imprimia às canções "uma espessura que parecia arrancada à noite mais funda da história americana (sim, a tal 'old weird America')" e "acrescentava-lhe a tarimba de muitas milhas de blues/rock denso, duro mas ágil, coisa de 'honky tonk' rodado". Sim, no exacto instante em que a trajectória de ressurgimento das trevas dos anos 90 – iniciada uma década antes com Time Out Of Mind (1997), continuada através de Love And Theft (2001), Modern Times (2006), o oitavo volume das Bootleg Series, Tell Tale Signs (2008), e reforçada pela publicação quase sucessiva das suas Chronicles, de Like a Rolling Stone – Bob Dylan At The Crossroads, de Greil Marcus, e pela exibição de I’m Not There, de Todd Haynes – atingia o ponto mais alto, Bob Dylan dissimulava-se sob o disfarce de vetusta personagem anónima da lenda norte-americana, exclusivamente devotada a autorizar que, através dela, a tradição continuasse a fazer o seu caminho.


É precisamente aqui que Together Through Life acha o espaço e justifica a contextualização: como se, decidido a conceber um último episódio da "Theme Time Radio Hour" disciplinadamente em concordância com o espírito geral das emissões anteriores, Dylan, tivesse, contudo, feito questão de, desta vez, o ocupar inteiramente com temas originais seus. O elo de ligação mais recente com o mito americano ainda é o da capa: uma fotografia de Bruce Davidson, retirada do clássico estudo a preto e branco sobre as tribos juvenis de Nova Iorque, Brooklyn Gang. É de 1959. O resto é muito mais antigo e é o próprio Dylan quem o explica, numa frase de "I Feel a Change Comin'On": "I'm listening to Billy Joe Shaver and I'm reading James Joyce/Some people they tell me I've got the blood of the land in my voice". Tem, sim. E no sangue da terra que lhe circula pela voz não navegam apenas Joyce e Shaver mas igualmente John Lee Hooker, Jimmy Reed, Howlin’Wolf, Django Reinhardt, Otis Rush, George Jones, Muddy Waters ou Willie Dixon, em dez canções habitadas por figuras retiradas das galerias de Chuck Berry e Little Richard, movimentando-se por cenários que oscilam entre a Chicago-negra-de-blues, a Louisiana do bayou e pinceladas de fronteira Tex-Mex (cortesia de David Hidalgo, de Los Lobos), gravadas há meio século, em Memphis, nos estúdios da Sun Records, sob direcção dos manos Chess, e destinadas a ser emitidas para a rua durante os três minutos e trinta e três segundos daquele plano-sequência inicial de Touch Of Evil, de Welles, em que Charlton Heston e Janet Leigh deambulam pela "border-town", imediatamente antes da deflagração da bomba-relógio.


Com excepcional colaboração de Robert Hunter (Grateful Dead) que co-assina todos os textos menos um ("This Dream Of You"), pilhagem discreta de algumas linhas das "Canterbury Tales", de Chaucer, uma ou duas assombrações ("All night long I lay awake and listen to the sound of pain, the door has closed forevermore, if indeed there ever was a door"), e o q.b. indispensável de veneno ("Big politician telling lies, restaurant kitchen all full of flies, don't make a bit of difference"), a "Theme Time Radio Hour" dificilmente poderia ter melhor encerramento de actividade.

(2009)

06 July 2007

TRANSCULTURAIS



Tinariwen - Amassakoul




Erik Marchand et Les Balkaniks - Pruna

Naqueles raros momentos em que "world music" significa algo mais do que apenas uma designação de "marketing" para impingir ao Ocidente a música do resto do mundo (ou aquela da antiga tradição do seu mundo) que ele imperialmente ignora, podem surgir álbuns como estes dois. Espontaneamente transculturais ou deliberadamente miscigenados. Amassakoul ("viajante") é a consequência musical inteiramente orgânica de um colectivo de combatentes armados tuaregues originários do Mali que — com passagem pelos campos de treino da Líbia de Kadhafi —, desde o final dos anos 70, não perderam tempo a distinguir o que era cantiga e o que era arma. Usaram ambas.



Aparentemente apaziguadas, desde 1996, as tensões políticas e sociais que estiveram na raiz da guerra civil no seu país, os Tinariwen prosseguiram a actividade como músicos de que Amassakoul é o mais recente testemunho: blues do deserto hipnóticos e circulares, recitações de quase-rap, estridentes vozes femininas guturais, guitarras entre John Lee Hooker, Ali Farka Touré e Hendrix, percussões ocultas de cabaças e darbukas, flautas, coros encantatórios. Literalmente, uma "trip" militante e alucinada pelo excesso de luz do Sahara.



Pruna, por outro lado, procura voluntariamente o contacto de idiomas musicais geográfica e culturalmente longínquos: o "gwerz" bretão e o mosaico de géneros romeno/balcânico/turcos da zona de Banat, na Roménia (a região europeia que conta o mais elevado número de minorias étnicas). Erik Marchand — veterano do canto tradicional bretão cuja discografia já inclui experiências idênticas com o Taraf de Caransèbes —, acompanhado por dezena e meia de músicos romenos, moldavos, sérvios, trácios e franceses, descobre o sentido último da configuração do puzzle (lançando até, às tantas, sobre a mesa, dois temas de... Carlos Paredes) e, por entre coreografias de puro virtuosismo, invocações poéticas e estonteantes nós-cegos de melodia, harmonia e ritmo, avista um outro ângulo daquela paisagem que é habitualmente cenário vivo dos delírios de Kusturica. (2004)