Era o início de Outubro de 1990 e, junto à janela do primeiro andar de um pequeno café da Rue du Bac, em Paris, com os pés descontraidamente pousados sobre a cadeira da frente, Tom Waits discursava acerca do motivo que o conduzira à capital francesa: a apresentação, no Théâtre du Châtelet, da ópera The Black Rider que escrevera com William Burroughs e Robert Wilson. De súbito, lá em baixo, na rua, a figura de Kathleen Brennan - co-compositora, companheira e força da ordem no mundo de Waits -, saída do hotel em frente, surge, gesticulando para ele. Como quem faz apenas uma pausa para logo a seguir continuar o que ficara suspenso, em modo de ditador benévolo, Tom Waits diz-me: "Faça-me a próxima pergunta, deixe o gravador aqui e, por favor, vá até à rua para saber o que ela quer". Qual pombo correio, cumpri a missão em 5 minutos. Mais tarde, verificaria que ele fora também fiel ao compromisso, falando ininterruptamente durante todo o tempo. Apenas mais uma prova de que, pelo menos tão fascinante como a sua obra musical, Tom Waits em discurso directo é invariavelmente muito melhor do que qualquer tentativa de o caracterizar (daqui; segue para aqui)
Quando, à sétima canção de Stop Making Sense, David Byrne inicia um veloz corta-mato em redor do palco e sobre os adereços, enquanto o resto dos Talking Heads se entrega a uma intensa coreografia aeróbica, se até aí não tinha ficado claro, o que se escuta nessa interpretação de “Life During Wartime” eliminaria todas as dúvidas: “This ain't no party, this ain't no disco, this ain't no fooling around”. Não só não era, de facto, nada disso – a canção falava de cenários de guerra pós-apocalípticos com alusões aos Baader-Meinhof – mas era também completamente diferente da ideia que até aí fazíamos (e ainda hoje, em larga medida, fazemos) do que deveria ser um filme-concerto. Em Abril passado, por ocasião da morte do realizador, Jonathan Demme, Byrne recordou-o: “O génio de Jonathan foi encarar o concerto como uma peça teatral colectiva na qual as personagens e os seus tiques seriam apresentados ao público, permitindo-lhe conhecer a banda como pessoas com as suas personalidades distintas. Eu estava demasiado concentrado na música, na encenação e na iluminação para me aperceber quão importante era o recorte das personagens. Foi isso que tornou o filme tão diferente e especial”. À época, na “New Yorker”, Pauline Kael escreveu que ir ver Stop Making Sense era “como participar numa orgia austera” e descrevia David Byrne enquanto “esteta que opera no modo moderno de uma ironia assustadora e catatónica”.
Speaking In Tongues, o quinto álbum dos Talking Heads tinha saído em Junho de 83 e, na digressão que se lhe seguiria, David Byrne iria pôr em prática uma série de ideias que, há algum tempo, lhe tinham começado a espevitar o nervo criativo. Durante a tournée do anterior Remain In Light (1980), quando passara pelo Japão, tivera oportunidade de assistir a representações de teatro tradicional Kabuki, Noh e Bunraku, “altamente estilizadas, ao contrário do teatro pseudo-naturalista a que, no Ocidente, estamos habituados. Todos usavam roupa de tamanho grande, extremamente elaborada, e moviam-se de modo diferente daquilo que acontece na vida real”, conta ele em How Music Works (2012). Um pouco mais a Sul, em Bali, fora descobrir práticas religiosas rituais e o teatro de sombras local e tomara nota de que “mesmo quando alguns participantes entravam em transe, havia procedimentos estabelecidos, não se tratava de momentos puramente caóticos”. Aprendera, enfim, que “a ênfase ocidental no pseudo-naturalismo e no culto da espontaneidade como forma de autenticidade era apenas um modo de fazer as coisas em palco”. E, em Nova Iorque, no contacto com a cena teatral "downtown" – Robert Wilson, Mabou Mines, Wooster Group – e através das observações de William Chow (actor da ópera de Pequim que Byrne convidara para assistir a concertos dos Heads), amadurecera uma espécie de conceito pós-brechtiano: “primeiro, o mágico explica como se faz o truque e, a seguir, executa-o”.
Encontravam-se prontas a usar todas as peças que, meticulosamente reunidas, constituiriam os concertos que Jonathan Demme iria filmar no Pantages Theatre de Hollywood, em Dezembro de 1983: 88 minutos de um crescendo feito da exuberante geometria das coreografias (em que, ao quarteto base se acrescentariam Bernie Worrell, Alex Weir, Steve Scales, Lynn Mabry e Ednah Holt), da diabólica precisão das poliritmias pop-funk, da "body language" espasmódica de David Byrne e da sua "business suit XXXL", numa síntese de dança contemporânea, teatralidade pop experimental e fantasia ferreamente controlada. Só na digressão de Love This Giant (2012), com St. Vincent, David Byrne voltaria a envolver-se num projecto de palco de tal dimensão. Mas, então, já não estaria Jonathan Demme atrás das câmaras.
04 November 2015
LEVEZA
Na formidável colectânea de histórias de ódio, xenofobia, ficção-científica, violência sanguinária, pornografia e trepidante aventura que é o Antigo Testamento, nunca foi prestada a devida atenção ao facto de, logo a abrir, no Génesis, Adão e Eva terem sido proibidos de comer não uma inocente maçã (apenas a partir do século XIII, na iconografia religiosa europeia, o pecado original foi assim representado) mas sim “o fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal”. Isto é, o casal que (após a separação litigiosa de Adão e da primeira mulher, Lilith, devido a desentendimentos acerca da legitimidade da posição coital "girl on top" – ver Alfabeto de ben Sirach, 700/1000 EC) vivia em paradisíaco concubinato, estava contratualmente obrigado a ignorar a moral. Amoralidade essa que, sendo um dos requisitos para não ser expulso do Condomínio Éden, deveria conferir também uma maravilhosa leveza à existência.
No conto de fadas de George MacDonald, The Light Princess (1864), a protagonista lida com problema semelhante: em consequência do feitiço de uma tia malvada, desconhece a gravidade. Tanto a propriamente física – ao menor movimento, flutua no ar – como a que a impede de chorar e ver o lado sério das coisas. No suposto final feliz, é salva pelo proverbial príncipe apaixonado que a devolve às garras da maldição de Newton e, em pleno turbilhão emocional, desaba em pranto - de onde poderá, uma vez mais, concluir-se que a educação moral é, invariavelmente, causa de sarilhos e infelicidade. Já Tori Amos, autora de uma respeitável discografia (de que, no contexto em apreço, deverão destacar-se Abnormally Attracted to Sin, 2009, e a memorável estrofe “So you can make me come, that doesn't make you Jesus”), travou conhecimento com a gravidade da pior maneira, ao estatelar-se na adaptação do conto de MacDonald para o formato "musical". Desesperantemente convencional tanto no plano da composição como – a avaliar pelo que via-YouTube se pode perceber – naquilo que à produção do Royal National Theatre de Londres diz respeito, é peça a lonjura sideral, por exemplo, das colaborações de Lou Reed e Tom Waits com Bob Wilson e irmã quase gémea dos produtos da linha de montagem-Andrew Lloyd Webber. Indiscutivelmente, um pecado. Porém, nada original.
09 November 2013
O SEPARAR DAS ÁGUAS
Domingo, 27 de Outubro. “Sunday morning, and I'm falling, I've got a feeling I don't want to know”. Em poucas horas, mal a notícia da morte de Lou Reed, aos 71 anos, se espalhou, se isso servisse para alguma coisa, bem poderiam ter-lhe dito “watch out the world's behind you”: em brevíssimos "tweets", praticamente, sem palavras (Ryan Adams escreveu apenas “Lou Reed”), anónimos e notáveis, por todas as esquinas e becos das redes de comunicação, procuraram aliviar a irremediável sensação de perda. Lloyd Cole desabafou “Sem ele não existiria Bowie tal como o conhecemos. Eu? Seria provavelmente professor de Matemática” e até o cínico profissional, Luke Haines, não conseguiu dizer mais do que "Fuck, shit, Lou Reed. No". Não, o dia não era, de todo, perfeito. E Lou Reed também não.
Na segunda-feira, pelo meio dos inúmeros textos com que, dolorosamente, se faria o luto, o “Guardian” republicaria uma entrevista de Maio de 2003, realizada por Simon Hattenstone, em Stuttgart. Verdadeiro fã-desde-pequenino (mais exactamente, desde os nove anos, quando "Walk On The Wild Side" – a tal canção que, nos EUA, teve de ser editada, eliminando a frase “But she never lost her head, even when she was giving head”, para que Reed pudesse registar a sua única presença no top 40 do “Billboard” – lhe virou o seu pequeno mundo do avesso), Hattenstone descreve um penoso exercício de humilhação do qual estava muito longe de ser a primeira vítima. Enxotado da presença do músico durante a sessão de fotografia, quando, após mais outra hora de espera para o ensaio de palco, lhe faz uma pergunta sobre os textos de The Raven (publicado nesse mesmo ano), acidamente, ele responde-lhe “Não me vai pedir que lhos explique, pois não?” Interroga-o acerca da relação estética entre ele, Iggy Pop e David Bowie, nos anos 70, e ouve “Não faço a mínima ideia do que está a falar”. E, várias outras não-respostas tortas mais tarde, no momento em que, já praticamente em lágrimas, lhe confessa “Eu era um fã seu...”, é atingido por um intimidativo “Era?!!!...”
Estava lá tudo, desde o início, com os Velvet Underground. Primeiro, apenas Reed e John Cale, depois, os efémeros Angus MacLise e Walter de Maria e, enfim (antes de se iniciar o processo de expurgo constante que foi a história da banda), Nico, Sterling Morrison e Maureen Tucker, sob a tutela estética de Andy Warhol, na performance multimédia Exploding Plastic Inevitable – onde, como definia, aterrado, o “Chicago Daily News”, “desabrochavam as flores do mal”, nada era deixado à imaginação: “Estávamos em palco com chicotes, holofotes gigantes, seringas, arame farpado, enormes crucifixos de madeira. Antes de nós, quando se ouvia música, divagava-se ou associava-se aquilo em que se estava a pensar. Connosco havia uma imagem muito clara do que pretendíamos transmitir. O que chocava era a imaginação não ser suficientemente poderosa para conceber a ideia de pessoas chutando-se em palco, a ser crucificadas ou a lamber botas de cabedal”, contava Ronnie Cutrone, personagem da Factory, de Warhol, que, ao descrever o desempenho dos seus pupilos, afirmava “Nada poderia parecer tão estranho e tão novo sem que estivéssemos a rebentar alguma barreira. ‘É como a separação das águas do Mar Vermelho’, disse-me Nico, uma noite”.
Puríssima verdade: em pleno banho de pétalas do "flower power", os Velvets odiavam hippies (e diziam-no em voz alta), aos êxtases aromatizados a incenso preferiam a áspera dureza S&M, e, através de um álbum – The Velvet Underground & Nico, 1967 – que, nos primeiros cinco anos de publicação, mal vendeu 30 000 exemplares (em 2006, seria incluído na Library Of Congress), inventaram, de um só golpe, a estética punk, a ética indie e abriram de par em par a via para o art-rock. Porém, o “New York Times” descrevia-os como “Andy Warhol’s jazz band” e “uma combinação de rock’n’roll com dança do ventre egípcia”, e o respeitável Richard Goldstein, no “Village Voice”, embora concedendo que se tratava de “um grupo importante” e que "Heroin" eram “sete minutos de autêntico rock’n’roll dodecafónico”, insistia em caracterizá-los como “uma banda de que não é fácil gostar” e decretava que algumas das faixas eram “aborrecidas e repetitivas”, a voz de Lou soava aflitivamente ao “Bob Dylan inicial”, "There She Goes Again" era uma “cópia sem vergonha” de "Hitch Hike", dos Rolling Stones, e "Black Angel’s Death Song" e "European Son" chegavam a ser “insuportavelmente pretensiosas”.
A “pretensão” de Lou Reed, entretanto, era outra: “Eu não sou negro, não toco soul. Não sou um 'hillbilly', não toco country & western. Não ando pelas esquinas a cantar doo-wop. Era mais fácil pensarmos ‘vamos lá a ver como soamos’. E dei bastante importância às palavras na música, o que nunca tinha ouvido fazer antes. Isso parecia muito natural para alguém que, como eu, estudava literatura inglesa. Via todos aqueles 'songwriters' que só escreviam acerca de um domínio de experiências muito restrito. Parecia-me bastante evidente e muito fácil abordar as canções como um romancista, a ponto de não compreender o motivo por que ninguém o tinha feito. Peguemos no Crime e Castigo e transformemo-lo numa canção de rock’n’roll! Pode existir escrita literária a sério numa canção de rock se conseguirmos fazê-lo sem perdermos a noção do ritmo. Aquilo sobre que escrevo não pareceria nada de invulgar se surgisse num livro ou num filme”. E, apesar de, confessadamente, adorar Archie Shepp, Cecil Taylor, Don Cherry e Ornette Coleman – os dois últimos tocariam com ele, respectivamente em The Bells (1979) e The Raven –, um lema (que nunca seguiu, realmente, à letra) orientava-o: “Um acorde serve muito bem. Dois acordes é ir já longe. Três acordes e caímos no jazz”.
Essa espécie de primitivismo estético que dissimulava uma obsessão pela altíssima fidelidade, prosseguiria até ao fim da sua permanência nos VU e na posterior trajectória a solo que, sem o trampolim da produção de David Bowie em Transformer (1972), nunca saberemos se e como teria existido.
Tudo o que viria a seguir – quase sempre controverso, raramente consensual – fez-lhe ganhar e perder adeptos. Nomeadamente, o lendário crítico Lester Bangs que, em 1975, na “Creem”, transcrevendo uma entrevista-sessão de pugilato verbal com Reed significativamente intitulada “Let Us Now Praise Famous Death Dwarves”, escreveria: “Lou Reed é o tipo que injectou dignidade e poesia e rock’n’roll na heroína, nas anfetaminas, na homossexualidade, no sadomasoquismo, no homicídio, na misoginia, na apatia e no suicídio e, a seguir, tratou de demolir todos estes feitos transformando tudo numa monumental piada de mau gosto”. Em causa estavam os álbuns Berlin (1973) e Metal Machine Music (1975). Dezassete anos mais tarde, numa conversa com o escritor britânico Neil Gaiman que, surpreendentemente, decorreu sem atritos (embora Gaiman, que roubara a entrevista a Martin Amis, fizesse questão de recordar o proverbial mau feitio no primeiro concerto de Lou a que assistira em Londres: “No final do concerto, disse-nos que tínhamos sido um público tão miserável que não merecíamos um encore. E não o fez“), ele daria a sua interpretação dessas flutuações de fidelidade: “Algumas pessoas ficaram para sempre paradas nos Velvet Underground, no Transformer ou no Rock’n’Roll Animal. Algures por aí. Enquanto eu estava apenas de passagem”.
Uma imperial passagem que, foi oferecendo diversos exemplos daquilo para que foi criada, justamente, a palavra “seminal”: Street Hassle (1978), The Blue Mask (1982), o portentoso New York (1989) – que, caso fosse ainda necessário, o instalaria no mesmo panteão dos poetas da cidade já habitado por Martin Scorsese e Woody Allen –, Songs For Drella (1990), o requiem por Warhol, executado a quatro mãos com John Cale, Magic And Loss (1992), Live MCMXCIII (1993), registo da fugaz reunião dos VU, e o magnífico duplo conceptual, The Raven (2003), inspirado pela obra de Edgar Allan Poe e ponto de encontro para quase três dezenas de "guest stars", de Bowie, Ornette, The Blind Boys Of Alabama e Kate & Anna McGarrigle a Steve Buscemi, Willem Dafoe ou a já então sua companheira, Laurie Anderson.
Cruzou-se também, no teatro, com Robert Wilson, em Time Rocker (variação de 1996 sobre A Máquina do Tempo, de H. G. Wells) e POEtry (que, em 2000, seria o cadinho de The Raven; no cinema, com Wim Wenders (Faraway, So Close!, 1993) e Wayne Wang e Paul Auster (Blue In The Face, 1995, e Lulu On The Bridge, 1998); e, encarnando, por duas vezes, a tão odiada personagem do entrevistador, conversou com o seu herói literário, Hubert Selby, e com o fã de longa data, Vaclav Havel, na altura, presidente da (ainda) Checoslováquia recém-democrática, ambas publicadas na recolha de textos, Between Thought And Expression (1991). Na introdução desta última, conta como, na véspera de partir para Praga, tinha estado presente no estádio de Wembley, num concerto de homenagem a Nelson Mandela, dois meses após a sua libertação. Não chegou a encontrar-se com ele, viu-o apenas pela televisão. Mas interrogava-se: “Aos 71 anos, tinha um aspecto incrível. Como eu gostaria de, com essa idade, estar como ele...”
31 May 2010
STARING AT MARINA ABRAMOVIC
"At Marina Abramovic's MOMA retrospective 'The Artist is Present' the public is given the opportunity to sit across from (and generally stare at) the renowned performance artist for as long as they like. Photographer Marco Anelli takes a photo of each participant and catalogs them in a Flickr stream that currently contains over 1,300 portraits. The album captures celebrities, super fans, and average museum goers with a tolerance for 8-hour lines as they react to Marina's gaze, be it in terror, amusement, or more often than not, by crying like a baby". (aqui)
Lou Reed, 9 minutes
Isabella Rossellini, 8 minutes
Sharon Stone, 10 minutes
Björk, 4 minutes
Robert Wilson, 13 minutes
(2010)
29 March 2010
TERRA INCÓGNITA
The Knife in collaboration with Mt. Sims and Planningtorock - Tomorrow, In A Year
“Posto que muitos pontos sejam ainda bastante obscuros e assim ainda permanecerão durante muito tempo, vejo-me, contudo, após os estudos mais profundos e uma apreciação fria e imparcial, forçado a sustentar que a opinião defendida até muito recentemente pela maioria dos naturalistas, opinião que eu próprio partilhei, isto é, que cada espécie foi objecto de uma criação independente, é absolutamente errónea. Estou plenamente convencido que as espécies não são imutáveis; estou convencido que as espécies que pertencem ao mesmo ‘género’ derivam directamente de qualquer outra espécie ordinariamente distinta, do mesmo modo que as variedades reconhecidas dessa espécie, seja qual for, derivam directamente dessa espécie; estou convencido, enfim, que a selecção natural tem desempenhado o principal papel na modificação das espécies”.
Escrita, em 1859, na introdução de Sobre a Origem das Espécies por Meio da Selecção Natural, este é o género de declaração que permite, sem dúvida, afirmar que, se Deus morreu, Marx morreu e nós próprios não nos sentimos mesmo nada bem, Charles Darwin, esse, não poderia estar mais vivo. E – como uma inquietante multidão de criacionistas parece apostada em demonstrá-lo todos os dias – ainda muito capaz de continuar a provocar tumultos e sobressaltos num mundo em que o pensamento pré-científico permanece mais enraizado do que gostaríamos de imaginar. Daí que, todas as celebrações que ocorreram em 2009, por ocasião do 150º aniversário da publicação da obra fundadora do neto do não menos fascinante Erasmus Darwin, não tenham sido demais. Muito em particular, aquelas que aconteceram fora do âmbito estritamente científico, como é o caso deste Tomorrow, In A Year, ópera/performance encomendada pela companhia de teatro dinamarquesa Hotel Pro Forma ao duo electro sueco The Knife.
Estreada em 2 de Setembro passado no Teatro Real de Copenhaga e dirigida por Ralf Richardt Strøbech and Kirsten Dehlholm, pretendia mostrar “o mundo visto através dos olhos de Charles Darwin” e, ao mesmo tempo – tomando “o género operático como DNA” –, investigar “as relações entre imagem, narrativa, movimento e música” no sentido da criação de “uma nova espécie de electro-ópera”. O terreno, evidentemente, não é virgem: desde United States I-IV, de Laurie Anderson, às colaborações de David Byrne ou Tom Waits com Robert Wilson, os caminhos da ópera e da pop-e-tudo-à-volta, para o melhor e para o pior, já se cruzaram um razoável número de vezes. Mas, provavelmente, um tal projecto não terá sido nunca entregue aos cuidados de alguém como Olof Dreijer (a metade masculina de The Knife, irmão da outra metade, Karin Dreijer Andersson) que, candidamente, confessa “nunca ter assistido a uma ópera e desconhecer mesmo o que a palavra ‘libretto’ significava”.
Não foi, porém, obstáculo inultrapassável. Olof e Karin aplicaram-se na escuta de Meredith Monk, Luigi Nono, Diamanda Galas, Joan La Barbara, Klaus Nomi, Penderecki e Stockhausen, muniram-se de "field recordings" de sons da Amazónia e Islândia, desmembraram e atonalizaram radicalmente o perfil musical que lhes conhecíamos de Silent Shout ou da aventura colateral de Karin, Fever Ray, recorreram às vozes da cantora lírica Kristina Wahlin, da actriz Laerke Winther e do singer-songwriter Jonathan Johansson, praticaram um exercício de quase "cut-up" sobre os textos de Darwin, e – não esquecendo que apenas temos acesso ao registo sonoro de um espectáculo de teatro, dança e música – edificaram uma obra literalmente monumental de música electrónica-concreta-electro-pop que reinvindica ser digerida em regime de dedicação exclusiva. Não de forma tão extrema como (as proto-óperas) Tilt ou The Drift, de Scott Walker (aqui, ainda se encontram bússolas orientadoras para esta expedição por terra incógnita) mas não menos exigente do que a aventura do Beagle.
No ano de 1845, em The Imp Of The Perverse, Edgar Allan Poe desenvolveria de forma explícita uma ideia que atravessa toda a sua obra (particularmente em The Black Cat, Never Bet The Devil Your Head ou no "mal constitucional" de que falava o Roderick de The Fall Of The House Of Usher): "Estou absolutamente convicto de que a certeza de uma acção ser errada é frequentemente a única força invencível que nos impele a levá-la a cabo. Esta avassaladora tendência para fazer o mal pelo próprio mal não admite análise nem explicação. É um impulso elementar, radical, primitivo". Cento e vinte e quatro anos depois, em "Some Kinda Love", Lou Reed quase o repetia: "Let us do what you fear most, that from which you recoil, but which still makes your eyes moist". Não era a primeira e não seria a última canção na qual Reed comentaria o que, "between thought and expression", se passa na mente de quem se sente irremediavelmente impelido para a transgressão, o erro compulsivo, a atracção pelo abismo, a autodestruição. Daí que estivesse provavelmente escrito algures que Reed e Poe, um dia, se haveriam de encontrar...
Tudo começou com POEtry, a quarta ópera criada em 2000 por Robert Wilson em colaboração com o Thalia Theater de Hamburgo, após as duas realizadas com Tom Waits (The Black Rider, 1990, e Alice, 1992) e uma primeira, Time Rocker, de 1996, já com Lou Reed, sobre texto de Darryl Pinckney, a partir de The Time Machine, de H. G. Wells. Se, nesta, tudo se centrava numa viagem através do tempo a bordo de um peixe gigante que circulava entre o antigo Egipto, um salão de ópio do século XVII, o Kansas actual e o distante futuro, com dezasseis novas canções de Lou Reed, em POEtry, Reed não assinou apenas as canções mas foi também responsável pela totalidade do libretto, baseado em onze novelas e poemas de Edgar Allan Poe. Nela, um Poe múltiplo, jovem e não tanto, guia da narrativa ou apenas personagem incidental, confrontava-se com o seu próprio labirinto, assombrava e deixava-se assombrar pelas imagens do seu universo mental onde se cruzavam as criaturas que povoam o negrume macabro da sua obra: vítimas torturadas pelo demónio da perversidade, supliciadas pela hiper-acuidade dos sentidos, homicidas claustrofóbicos que reflectem as sombras obsessivas da alma de Poe, enquanto à volta da vertigem se erguiam os enigmas dum longo sono desperto concebido por Robert Wilson. "Aqueles que sonham de dia conhecem muitas coisas que escapam aos que apenas sonham de noite" dizia Poe, em Eleonora. Reed e Wilson encarregaram-se de nos fazer vê-las.
POEtry - Robert Wilson + Lou Reed
Aquando da estreia, declarou este último ao "Tageszeitung": "Poe está, para mim, entre os maiores escritores de sempre. E penso que, ao dizê-lo, estou em boa companhia: Heiner Müller admirava-o desmedidamente. Quando lhe falei acerca da minha intenção de trabalhar sobre Poe, ele encorajou-me. O que me interessa em Poe é que ele representa um mistério insolúvel, algo que faz parte do subconsciente colectivo. Há nele também algo estranho: se, por um lado, foi um espírito universal, por outro, o seu destino pessoal influenciou enormemente a sua obra. Poe está cheio de contradições. E o que me fascina mais nele é a presença de uma certa forma de ironia quando, habitualmente, o imaginamos como uma personagem extremamente sombria. POEtry tem, evidentemente, a ver com Poe, mas, na realidade, Lou Reed e eu criámos o nosso próprio universo. Levámo-lo em consideração assim como à sua obra, tratámo-lo com o maximo respeito, mas não sacrificámos a nossa independência". Pelo seu lado, Lou Reed confessaria: "Poe é compulsivo, obsessivo, ansioso, pura paranoia. Peguei no ensaio que ele escreveu, The Imp Of The Perverse e, a partir dele, escrevi uma pequena peça para o álbum. Fi-lo no estilo de Poe a pedido do Bob Wilson que me tinha sugerido que escrevesse um ensaio freudiano sobre ele. O tema é: porque me atrai tanto aquilo que sei ser mau para mim? Basicamente, parti dos textos de Poe para me exprimir individualmente. E nunca tive um momento que fosse de hesitação. Adoro a linguagem de Poe. Tem tudo a ver com o que penso que o rock poderia ser: o lado físico, rítmico e sexual combinado com o poder da palavra. Não vejo nenhuma razão para que não possamos gostar de rock e ser inteligentes ao mesmo tempo. Há uma teoria segundo a qual, se pusermos o cérebro a funcionar, o sexo já não se diverte. Parece-me uma visão muito estreita das nossas possibilidades".
Vincent (real. Tim Burton, 1982, dito por Vincent Price)
A reverência e admiração pela obra de Edgar Allan não é, obviamente, recente: traduzido e venerado por Baudelaire (que iniciava cada dia com uma oração a Poe e acerca dele escreveu sobre "o prazer sobrenatural que o homem pode sentir ao ver o seu próprio sangue escorrer, os impulsos súbitos, violentos e inúteis, os enormes gritos lançados para o ar quando a mente já não controla a garganta"), Fernando Pessoa, Jorge de Sena ou Mallarmé e cuidadosamente anotado por Valéry, é também o antepassado de H.P. Lovecraft e do cinema de terror. Arthur Conan Doyle disse acerca dele que, se cada escritor tivesse de pagar um cêntimo por cada influência que retirou da sua obra, as moedas assim recolhidas ultrapassariam a altura da Grande Pirâmide. Mestre das fobias e do suspense, inventor do romance policial, jornalista amador de pasquins humorísticos, Poe foi não apenas o criador de uma certa forma de obsessão e de angústia modernas mas também o primeiro comentador irónico e lúcido do universo literário, simultaneamente popular e erudito, que inventou. E outro seu devoto, o produtor norte-americano Hal Willner, recorda que, uma vez, Allen Ginsberg lhe disse: "Tudo vai ter a Poe. Toda a arte literária posterior reflecte a influência de Poe: Burroughs, Baudelaire, Genet, Dylan".
Isso aconteceu quando Willner trabalhava na gravação de Closed On Account Of Rabies - Poems And Tales Of Edgar Allan Poe (1997), um álbum duplo de "spoken word" em que, entre outros, participaram Marianne Faithfull, Christopher Walken, Iggy Pop, Diamanda Galás, Abel Ferrara, Jeff Buckley, Debbie Harry ou Gabriel Byrne. Embora na área da música a predilecção por Poe não fosse coisa nova (de Peter Hamill a Philip Glass, Debussy, Alan Parsons Project, Mr. Bungle ou até o próprio Lou Reed, em The Bells, todos o abordaram), seria essa obra colectiva coordenada por Hal Willner que haveria de funcionar como antecedente directo de The Raven, o recém-publicado duplo álbum de Reed que reconstitui e amplia o espectáculo de palco criado com Bob Wilson. Ancorado em diversas peças cruciais de Poe — The Cask Of Amontillado, The Fall Of The House Of Usher, The Tell Tale Heart, The Pit And The Pendulum, Annabel Lee e diversas outras incluindo o referido The Imp Of The Perverse —, centra-se metaforicamente em torno do poema "O Corvo" que Pessoa traduziria. Escrito no Inverno de 1843/44, à beira do Hudson (desesperado por dinheiro, acabaria por vendê-lo por quinze dólares à "American Whig Review" juntamente com a sua Philosophy Of Composition), aquele que, em 1849 — ano da morte de Poe —, foi considerado por John Daniels "o primeiro poema americano" é aqui fabulosamente lido por Willem Dafoe numa muito livre paráfrase de Lou Reed que dele só conserva a estância inicial.
"The Raven" lido por Willem Dafoe + The Cabinet of Dr. Caligari (real. Robert Wiene, 1920)
Num álbum literalmente assombroso (que, naturalmente, Willner foi chamado a produzir), Dafoe é apenas uma das estrelas de um elenco onde aos elementos da banda de Reed (Mike Rathke, Fernando Saunders e Tony Smith) se reunem Laurie Anderson, David Bowie, Kate & Anna McGarrigle, os Blind Boys Of Alabama, Ornette Coleman, a violoncelista Jane Scarpantoni, os sopros "downtown" pós-Lounge Lizards de Steven Bernstein, Paul Shapiro e Doug Wieselman, o contratenor, Antony, os teclados de Friedrich Paravicini e, na declamação dos textos, Steve Buscemi, Elizabeth Ashley, Amanda Plummer, Fisher Stevens e Kate Valk. Algures entre teatro radiofónico à Orson Welles, musical delirantemente poliestilístico (jazz, electrónica, gospel, rock abrasivo, canção minimal) e uma espécie de "cinema for the mind", The Raven não cabe, para Lou Reed, em nenhuma das categorias habitualmente aceites: "De certo modo, isto é uma nova forma. Não sei como chamar-lhe porque já não se trata de um espectáculo e não é um filme. É dirigido puramente aos ouvidos e à imaginação. Não faço a menor ideia se as pessoas estão preparadas para isto ou se irão interessar-se minimamente. Mas exige uma grande dose de concentração".
"Tell Tale Heart" + animação de FRfeeney sobre desenhos de Alberto Breccia
E, de entre o luxo de todas as colaborações, ao "LA Weekly", sublinhou a experiência que foi partilhar um estúdio com Ornette Coleman: "Fizemos sete versões de 'Guilty' com o Ornette. Ele gravou a primeira e eu fiquei à beira das lágrimas, era lindíssima. Disse-lhe 'Se quiseres, podemos ficar já por aqui'. 'Não, não', respondeu-me ele, 'agora quero gravar outra com o guitarrista, depois outra com o baixo, a seguir mais uma com o baterista, outra com a voz e, no fim, uma todos juntos'. E foi exactamente isso o que ele fez! No início dos anos 60, costumava andar atrás dos concertos dele no Village. Não tinha dinheiro para entrar na maioria dos clubes. Por isso, escutava através da porta aquela banda com o Billy Higgins, o Charlie Haden e o Don Cherry". Sobre "Fire Music" — a avassaladora descarga de ruído branco que antecipa "Guardian Angel", a faixa final do álbum —, enfim, confessa: "É uma experiência auditiva como uma gigantesca onda sonora. Foi gravada logo a seguir ao 11 de Setembro e é, em grande medida, um reflexo disso. Foi muito complexo gravá-la. Não tem guitarras. Queria obter um certo som de guitarra tipo Metal Machine Music e esperei muito tempo por que a tecnologia para isso se desenvolvesse. Conversava com especialistas de informática e eles diziam-me que era impossível. Até que descobri uma forma de o fazer. Se a conseguia ouvir era capaz de a tocar. Mas tenho de confessar: não seria capaz de a repetir. Aconteceu naquele momento e não conseguiria fazê-lo outra vez. Ouvi-la em MP3 será castrá-la. Pode haver quem diga que isso não tem importância. Tudo bem, façam-no por vossa conta e risco. Mas será como ler o Ulisses, de Joyce, em banda desenhada".
(2003)
25 June 2008
"NÃO TENHO PACIÊNCIA PARA ME REPETIR" (entrevista nunca libertada do jornal onde jazia e que, hoje, me apeteceu recuperar)
"Traidor" foi o que de mais simpático lhe chamaram quando decidiu acabar com os Talking Heads. Aos 40 anos, David Byrne sobreviveu a essa decisão "traumática" e a sua carreira a solo prossegue imparável, ao ritmo de discos completamente diferentes entre si. Byrne diz não ter paciência para se repetir e que a "world music" é apenas "um separador numa loja de discos".
O seu último álbum, Uh-Oh, foi recebido com apreciações críticas diversas. Pensa que, apesar do seu já considerável trabalho a solo, ainda continua a ser comparado com o que os Talking Heads produziram? Sem dúvida. Para imensas pessoas, os Talking Heads tiveram imenso significado: cresceram com aquelas canções que ficaram ligadas à sua vida. A dissolução do grupo surgiu-lhes quase como um acto de traição, sentiram que algo lhes fora roubado.
Pôr fim aos Talking Heads, exactamente quando estavam à beira do grande sucesso, deve ter sido um acto de coragem... Foi, realmente, doloroso, traumático. Musicalmente, tudo estava bem mas, no seio do grupo, a felicidade não era muita e isso estava a destruir o prazer de fazer música. Não era assim que eu desejava viver. Se tiver de sofrer, prefiro não fazer música.
Os Talking Heads foram, essencialmente, uma banda dos anos 80. Que sente, hoje, em relação a essa época? Não sei se me apetece muito pensar nela... quando alguém menciona os anos 80 (pelo menos nos EUA), só consigo pensar em Ronald Reagan e George Bush, não penso muito em música. Mas isso não quer dizer que não houvesse muito boa música. Foi um período em que, para mim e para muitos outros, teve início o acesso e a circulação de música de origens geográficas muito diversas, bem mais do que nos anos 60 e 70. Foi também quando a televisão dominou a música e passou a influenciar o modo como as pessoas pensavam nela e a sentiam. O vídeo transformou-se numa indústria, uma força com que passou a ser necessário contar. Claro que tanto os há bons como maus.
Como se situa face à polémica do uso quase obrigatório dos videoclips como promoção da música? Alinha com quem vê neles um factor de empobrecimento da imaginação de quem ouve? De certo modo, sim. Muitos clips retiram ao ouvinte a possibilidade de interpretar a música. É quase um roubo, um acto de censura cometido sobre a imaginação que exclui a hipótese de cada um construir o seu próprio argumento. Também é verdade que já existe uma fórmula estabelecida para os fazer. Para apresentar um músico ou um cantor, a melhor ideia ainda seria apresentá-lo tal qual, "sem nada", sem montagem. Claro que seria muito difícil fazer com que o público o aceitasse assim...
Quando surgiram, no final dos anos 70, os Talking Heads foram encarados como uma banda da "new wave" novaiorquina, em reacção contra a música da época, decorrente da atmosfera do final dos anos 60. Como evitaram cair nessa armadilha? Essa era a época de todos os excessos, quando os grupos de rock se divertiam a lançar televisores pelas janelas dos hotéis e a enfiar Rolls Royces nas piscinas. Em todos os concertos, eram comuns os shows de laser, os palcos giratórios, as bombas de fumo... O que era divertido, mas, para a minha geração, começou a parecer-se demais com uma enorme produção em que a música quase deixava de fazer sentido. Achámos que era preciso desfazermo-nos de todo aquele aparato decorativo e tocarmos de forma tão simples quanto possível.
Sentiram-se, realmente, parte de uma cena artística novaiorquina? Um pouco. Em Nova Iorque, todos os grupos tinham um sentido de individualidade muito marcado. A Patti Smith, os Television, os Blondie, Ramones, eram todos muito diferentes pelas suas atitudes. As bandas inglesas tinham uma imagem colectiva mais acentuada.
A ideia de "carreira" não parece preocupá-lo muito. Publica discos completamente diferentes, não se importa com a definição de uma imagem musical fixa. É mesmo assim? É verdade. Claro que tenho consciência disso, é o género de coisas que, às vezes, me faz confusão. Ter de possuir uma imagem pública, entender que vender discos é uma necessidade e, ao mesmo tempo, não me ralar demasiado com isso é um conflito algo complicado.
Que é que o lançou na exploração das músicas do Terceiro Mundo? Sentiu haver um esgotamento no panorama pop/rock ocidental? Esgotamento talvez não, mas alguns aspectos estavam a tornar-se aborrecidos. O ritmo era quase sempre igual, previsível. Quando me apetecia dançar, dava comigo a ir a um clube de salsa, em Nova Iorque, onde os ritmos eram muito diferentes. Mas foi uma coisa que nasceu mais do entusiasmo do que da insatisfação, foi um gesto positivo. Travara conhecimento com uma geração de músicos e de compositores brasileiros que nunca tinham deixado de ser inovadores, nunca tinham caído em fórmulas, e o mesmo acontecia com muitos outros.
O seu trabalho recente e as publicações que realiza através da Luaka Bop têm sido vistos, simultaneamente, como projectos louváveis e actos de imperialismo cultural, acusação também dirigida a músicos como Paul Simon e Peter Gabriel. Como reage a isso? Entendo essas críticas e o que pretendem dizer. Mas escolheram a expressão errada. Imperialismo cultural é ir ao Rio de Janeiro e só conseguir ouvir roc'n'roll e beber Coca Cola. Claro que gostava de fazer dinheiro com os discos da Luaka Bop mas não faço. Praticamente, só dá para pagar a edição. Se vendêssemos milhões, talvez essas críticas tivessem razão de ser. Mas, por agora, não.
Neste contexto, a etiqueta "world music" significa alguma coisa para si? Não. É só um separador numa loja de discos. É como quando chamavam aos Talking Heads uma "banda punk". É uma forma temporária de chamar a atenção para músicas que, de outra forma, não seriam ouvidas, o que até acaba por nem ser mau. As diferenças reais, mais tarde ou mais cedo, tornam-se evidentes.
Como tem sido a experiência de conjugar a sua nova música com personalidades tão diferentes como as de Twyla Tharp, Bob Wilson, Bertolucci ou Brian Eno? Funciona sempre como trabalho de colaboração em que tento compreender o que pretendem. Parte do prazer está aí mesmo: entender isso enquanto componho a minha música. Por vezes, levei tempo a entender os processos. As técnicas são diferentes mas o processo criativo é, no fundo, igual. Por baixo das várias formas e géneros, há um movimento comum.
Nas suas canções, tem tendência para abordar temas pouco habituais, para se situar em contextos invulgares ou mesmo usar formatos não narrativos como em Music For The Knee Plays. É um processo natural ou predispõe-se, desde o início, a quebrar as regras? A maior parte das vezes, acontece naturalmente embora exija trabalho. Sei que cherguei onde queria quando as coisas me surpreendem, quando olho para o papel e não tenho consciência de ter sido eu a criar aquilo.
Na sua última entrevista para o "New Musical Express", chamaram-lhe "the king of post-modernism". Para si, isso faz algum sentido? Pensava que era um estilo de arquitectura... Sei o que querem dizer mas não tenho a certeza de que seja um elogio...
Jà escreveu música para o cinema, o teatro e a dança, já realizou filmes, tocou com um grupo e a solo, montou uma editora. Que lhe falta ainda fazer? Queria fazer outro filme mas ainda não arranjei dinheiro. Por agora, estou muito feliz com o que tenho feito.
Em Stolen Moments, um livro de entrevistas de Tom Schnabel em que você também participa, vem, na abertura, uma citação de Nietzsche: "Sem música, a vida seria um erro". Qual foi o último disco que ouviu que o fez concordar com isso? Ah, essa é difícil... quando estive agora em Itália, ouvi gravações de um compositor chamado Fabricio de Andre que me espantaram. Também gosto muito do novo de Caetano Veloso.
"Say something once, why say it again?": essa interrogação, em "Psychokiller", é o seu lema? É, de facto, aquilo em que mais acredito. Não tenho paciência para me repetir.
(1992)
18 February 2008
TOM WAITS: AUTOBIOGRAFIA EM PEQUENAS PRESTAÇÕES, DITOS DE ESPÍRITO E SABEDORIA (XXXII)
"Para Alice, tentámos descobrir um theremin mas, localmente, não conseguimos encontrar ninguém que fosse capaz de o tocar bem. A mulher que o tocou na orquestra original de Alice era a bisneta do inventor, o Leon Theremin. Era espantosa. Estávamos à espera que ela viesse com um instrumento realmente sofisticado mas apareceu-nos com uma coisa que parecia uma marmita com uma antena de automóvel a sair. Abriu-a e, lá dentro, todas as ligações entre os circuitos eram feitas com bocadinhos de lata de cerveja apertados à volta dos fios. A tinta estava a cair mas, quando ela o tocou parecia o Jascha Heifetz. Parece que agora andam a fazer experiências com o theremin porque, quando o tocamos, as ondas sonoras terão um certo efeito terapêutico. É qualquer coisa a nível genético que pode curar doenças. E ressuscitar os mortos.
(...)
"O meu filho Casey toca bateria na minha banda. É natural. Se se cresce numa família que tem uma agência funerária, é muito provável que se venha a ser gato-pingado. É praticamente inevitável, tem-se muito mais apoio se entrarmos para o negócio da família. Eu disse-lhe, se quiseres ser astronauta não te vou poder dar muita ajuda...
(...)
"É importante sabermos trilhar o nosso próprio caminho. O conformismo é o paraíso dos imbecis. Tenho influências como toda a gente mas procuro contrariar a tendência para o conformismo.
(...)
"Trabalhar com o Bob Wilson é como participar num bailado subaquático, qualquer coisa entre Freud e a NASA, é como olhar pela primeira vez para uma gota de água através do microscópio e dizer 'Meu Deus, há aqui um mundo inteiro! Vivo! Não sei se devo continuar a beber disto...'
(...)
"Gosto de coisas mal compreendidas. Penso que tenho um problema de processamento auditivo. Gosto de ouvir uma canção num rádio ao longe e não a perceber bem quando é interrompida pelo som de um avião, do vento ou de um tractor. Gosto das peças que faltam. Não gosto das coisas muito arrumadinhas. O Terry Gilliam ouviu aquela frase de 'The Part You Throw Away' onde canto 'In a Portuguese saloon' e julgou que eu estava a dizer 'On the porch the geese salute'. Fica muito melhor assim! Espero que haja muito mais gente que me compreenda mal.
2002
(2008)
31 October 2007
TOM WAITS: AUTOBIOGRAFIA EM PEQUENAS PRESTAÇÕES, DITOS DE ESPÍRITO E SABEDORIA (XX)
"'Murder In The Barn' é como um conto da Flannery O'Connor. Compro os jornais locais todos os dias e eles estão cheios de acidentes de automóveis. Tudo depende do que nos atrai. Será o humor negro irlandês? A minha mulher também provém de uma família irlandesa.
(...)
"O Greg Cohen, o Robert Wilson e eu fomos ter com o William Burroughs a Lawrence, no Kansas. Parecia uma cimeira literária. Ele tirou-nos fotografias a todos no portão. Levou-me até à garagem, mostrou-me as suas pinturas à pistola e o jardim. Por volta das três, começou a olhar para o relógio à medida que se aproximava a hora dos cocktails. Pareceu-me muito sério e erudito. Era, evidentemente, um perito em cobras, insectos e armas de fogo. Para mim, foi uma influência tão grande como Kerouac. Em Pela Estrada Fora, ele era o Bull Lee, uma espécie de Mark Twain mais ousado. Parecia concebido para ocupar a posição de poeta laureado da nação. Tinha uma visão mais ampla, cheia de cinismo e maturidade com um grande sentido de ironia que ia direito ao coração da experiência americana.
(...)
"Hoje crio música muito mais agressiva do que quando tinha 23 anos? Pois é, estou sempre do lado errado. Deito fora o manual das instruções e, depois, fico a pensar como é que se monta o raio da geringonça... Não sei, talvez seja só eu a revoltar-me contra a luz que se vai apagando. Ou será, como se costuma dizer, que a juventude é desperdiçada nos jovens? Talvez, nos sintamos mais próximo desses sentimentos à medida que nos afastamos deles. O tempo não é uma linha recta ou uma estrada que nos vai afastando das coisas, é tudo exponencial. Tudo o que vivemos aos 18 anos permanece connosco. Todos os dias caem do espaço 43 milhôes de toneladas de poeira dos meteoros e o que isso terá a ver com isto, não faço a menor ideia.
(...)
"Quando se produz um disco que também se está a gravar, é preciso dividir as tarefas. Ou tratamos nós da quinta ou temos de subcontratar mão de obra. Nem sempre sou em quem trata da reparação do material eléctrico lá em casa, habitualmente chamo um especialista. Por isso, contratámos músicos profissionais, um grupo do qual, honestamente, não sei se farei parte... Crio as formas e, às vezes, atrevesso-me no meu próprio caminho. O essencial é trabalhar com gente capaz de sucumbir ao poder da sugestão. É uma espécie de experiência hipnótica em que, quando se pede aos músicos que toquem como se tivessem o cabelo a arder, eles sabem exactamente o que queremos dizer.
(...)
"Escrever canções com a minha mulher é assim: um segura no prego e o outro bate-lhe com o martelo. Colaboramos em tudo. Ela escreve mais inspirada por sonhos e eu pelo próprio mundo. Quando escrevemos canções, navegamos pelo meio da escuridão e não sabemos a direcção certa. Cinco minutos a mais e pode-se dar cabo de uma canção. Por isso, o tempo também participa do processo. Temos o nosso negociozinho familiar. Eu sou o prospector e ela cozinha. Eu trago o flamingo para casa e ela corta-lhe a cabeça. Eu meto-o na água e ela depena-o. Depois, ninguém lhe apetece comê-lo.
(...)
1999
(2007)
14 April 2007
AGUARELA E BOURBON
Tom Waits - Alice e Blood Money
Quando se interroga Tom Waits acerca da forma como encara a escrita de canções, ele costuma responder coisas como: «O que eu faço é escrever canções com três patas que se conseguem ter de pé sozinhas. Desenvolver uma canção em estúdio é como cortar um dedo para o fazer entrar numa luva. Corre-se sempre o risco de ficar com mais dedo do que luva. Escrever uma canção é como talhar um pau em bico. Algumas canções são feitas de madeira, outras de vidro e outras de papel. Essas, quando o vento pára, deixam de voar, termina a sua existência».
Ou, então, entrega-se à pura divagação: «As canções são grandes viajantes e vêm de sítios muito distantes e diversos. Às vezes, quando chegam, andamos em viagem. Muitas passam tão depressa que nem tempo temos de as ver. O importante é apanhá-las em voo, fabricá-las rapidamente e guardá-las bem». De vidro, de papel, de pau talhado em bico, apenas com três patas e certamente apanhadas em voo, Alice e Blood Money são as duas mais recentes colecções de canções de Tom Waits, e é indispensável que se diga desde já que estabelecem para o resto do ano um termo de comparação improvavelmente igualável.
Publicadas em simultâneo, reúnem o segundo e terceiro painéis da trilogia de óperas concebida com Robert Wilson e iniciada, em 1990, com The Black Rider. Alice, com texto de Paul Schmidt (sobre o original de Carroll), foi estreada em Dezembro de 92 em Hamburgo pelo Thalia Theater, tendo sido apresentada em Lisboa, no CCB, em 94, e Blood Money (baseado no Woyzeck, de Büchner) subiu ao palco em Novembro de 2000, no Betty Hansen Theatre, de Copenhaga. Se ambas retêm um certo «ar de família» com os ambientes musicais e de fábula poética de The Black Rider, temperados pelo alucinado cafarnaúm da sucata sonora que Waits prefere aos timbres convencionais («Trabalho de uma forma muito básica mas uso coisas que não são habitualmente vistas como instrumentos: uma cadeira arrastada pelo chão, umas boas pancadas num cofre, sinos, megafones, instrumentos defeituosos. A verdade é que eu não gosto de linhas rectas. O problema é que a maior parte dos instrumentos são quadrados e a música é sempre redonda»), talvez nunca como aqui a música se tivesse assemelhado tanto a uma aguarela sobre a qual, inadvertidamente, se entornou um copo de «bourbon».
Em Alice, por entre charangas de circo caleidoscópicas e danças de salão de ópio, predomina o tom de elegia surreal dissimuladamente erótica de que «Alice», «Lost in the Harbor» e, sobretudo, o assombroso «tone poem» de «voyeurismo» impressionista «Watch'em Disappear» serão os momentos maiores num libretto/partitura integralmente admirável. O milagre é que Blood Money lhe consiga ser, porventura, ainda superior: imprecação feroz contra a imundice do mundo e da espécie («If there's one thing you can say about mankind, there's nothing kind about man», uiva ele depois de ter explicado que «all the good in the world you can put inside a thimble and still have room for you and me»), é um carrossel de litanias infernais, weillianismos esventrados, urros das galés e estropiadas valsas agridoces que, sobre uma espiral ébria de acordeões, clarinetes, marimbas, calíopes, chamberlains e pianos de brinquedo, retrata a negro e vermelho-sangue um mundo em que «God's away on business» e invectiva «the ones that we kept in charge, killers, thieves and lawyers». Exactamente o género de música sem a qual é impossível viver. (2002)
A VELHA TEORIA DA REDE DE BORBOLETAS
Tom Waits - Mule Variations
O jornalista Rip Rense (ainda por cima em serviço promocional para o "press release" da editora) não teve culpa nenhuma. Mas quando, em Janeiro deste ano, perguntou a Tom Waits com o maior respeito "Neste momento, suponho, o senhor deverá ter cerca de sessenta anos, não é verdade?", a resposta que recebeu foi "Quer levar um murro ou quê?!!!...". No fundo, tinham ambos razão. Por um lado, é natural que alguém que só no proximo mês de Dezembro completa o meio século não ache muita graça a que, sem aviso, lhe coloquem mais uma década no bilhete de identidade. Por outro, quem olha para o rosto de Tom Waits (e, mais do que isso, escuta a sua música) vê, de facto, a história quase toda da América. Ou, pelo menos, uma história tão antiga que se torna inacreditavelmente moderna.
Por isso, pensando melhor, Rip Rense devia ter reflectido um bocadinho mais. Até porque, na resposta anterior a essa pergunta, Tom Waits havia acabado de definir a sua música no último álbum Mule Variations como "surrural" (isto é, "surreal"+"rural"), explicando que "as canções têm uma tonalidade antiga o que pode desorientar quem as ouve porque não se trata de um disco antigo gravado por um velho". O que acaba por ser a ideia central de praticamente toda a discografia de Waits e, muito em particular, daquela etapa iniciada, em 1983, com Swordfishtrombones de que Mule Variations constitui o derradeiro capítulo.
Na verdade, desde a estreia com Closing Time (1973) até Blue Valentines (1978), Tom Waits ocupou-se essencialmente com a construção da sua máscara de "beatnik" vagabundo do sonho americano, figura das ficções literárias de Kerouac, Damon Runyon e Raymond Chandler em simultâneo, acompanhada da banda sonora adequada. Cada álbum era o potencial argumento para um filme (ou para vários filmes) e as canções — onde os textos eram pura poesia "beat" contaminada pelo swing daquele jazz que apenas levanta voo quando o álcool, a nicotina e outros fumos circulam pela corrente sanguínea — trabalhavam cada personagem e o seu mundo como quem edifica pequenos universos privados onde a "low life" não é senão uma gigantesca metáfora para a tragicomédia da espécie humana em todos os seus escabrosos e sublimes detalhes.
Heartattack And Vine (1980) funcionou como peça de transição e, após o virtual passo atrás de One From The Heart (1982) para o filme/"opereta lounge" homónimo de Francis Coppola (que lhe valeu uma nomeação para os Óscares), Swordfishtrombones inauguraria uma expedição à descoberta dos novos elementos cenográficos capazes de mobilar de outra forma a sua ficção privada. Das explorações instrumentais e tímbricas à maneira de Harry Partch e Captain Beefheart aos blues mais arcaicos, das percussões étnicas e exóticas a Kurt Weill, da sucata sonora pura e simples aos "compagnons de route" da vanguarda nova-iorquina, daí em diante, Tom Waits em Raindogs (1985), Frank's Wild Years (1987), Big Time (1988), Bone Machine (1992), a banda sonora para Night On Earth de Jim Jarmusch (1992), The Black Rider (1993, escrito com William Burroughs e encenado por Robert Wilson) e Alice (também concebido com Bob Wilson para o palco a partir de Lewis Carroll e que passou em Lisboa, no CCB, em 1994)renovaria a sua base de dados musical.
Em última análise, como ele agora confessa, as coisas nunca são extraordinariamente transcendentes: "A única razão para escrevermos canções novas é termo-nos cansado das antigas. Deitam-se umas fora e arranjam-se outras. Não é como se tivéssemos sido atingidos por um raio. Para mim, tudo começa com qualquer coisa que me diverte e que eu deixo que passe através do meu espírito juntamente com muitas outras. Centenas de melodias e de ideias passam-nos pela cabeça quando não estamos a escrever. E nós permitimos que isso aconteça. Quando começamos a escrever, construimos uma pequena barragem e começamos a apanhá-las. É a velha teoria da rede de borboletas".
No caso de Mule Variations, a rede teve uma malha especialmente apertada para os blues e — em variadíssimas encarnações — foi o seu espírito que acabou por ser capturado. Não é, evidentemente, acontecimento novo na obra de Tom Waits que é o primeiro a reconhecer que esse é o lugar onde sempre regressa e que "enquanto forma de arte, tem possibilidades infinitas, tanto como ingrediente simples como na qualidade de refeição completa". Daí que a alma de Leadbelly, "essa fonte inesgotável de música", tenha pairado sobre o aviário convertido em estúdio onde o álbum foi registado ("Lowside Of The Road" inspira-se mesmo no detalhe biográfico da sua morte à beira de uma estrada perdida), que "Get Behind The Mule" tenha sido sugerido por Robert Johnson ou que "Picture In A Frame" evoque Blind Lemon Jefferson.
Digamos que esse foi o tecido orgânico onde toda a gloriosa quinquilharia sonora de Tom Waits se foi enxertar e que através dos próprios músicos que com ele colaboraram (para além dos fidelíssimos Ralph Carney, Marc Ribot, Greg Cohen e Joe Gore) se enxerga bem o ponto onde ele pretendia chegar : Smokey Hormel tocou com Beck (o qual venera Waits que lhe paga na mesma moeda), Les Claypool integra os super-waitsianos Primus e John Hammond e Charlie Musselwhite expiram nas palhetas da harmónica o hálito primordial dos blues. O resto são baladas assombradas de imprecação perante um deus ausente ("Georgia Lee"), encenações declamadas do horror da América profunda em relação a tudo o que não compreende ou é só ligeiramente diferente dela ("What's He Building In There?"), deliciosas heresias surreais a propósito do paladar pouco apetitoso das hóstias consagradas ("Chocolate Jesus"), ferozes refregas musicais num perímetro de arame farpado ("Big In Japan", "Eyeball Kid" ou "Filipino Box Spring Hog") ou a fantástica fanfarra final de "Come On Up To The House" onde a voz de sacerdote do último círculo do Inferno de Tom Waits se dirige pouco cerimoniosamente ao "Salvador" para lhe exigir "Come on down from the cross, we can use the wood".
Todas naquele género de "coisas que nos caem no quintal como meteoritos" como o próprio Waits uma vez descreveu as suas canções, acrescentando logo a seguir: "Dizem-me que algumas já salvaram vidas. São, por isso, pequenos paramédicos. Outras, esborracham-se no para-brisas. E, outras, nunca nos saem de casa. Batemos-lhes mas não se vão embora. Outras pelo contrário, não descansam enquanto não dão à sola e nunca mais escrevem. São umas sacaninhas ingratas". (1999)