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26 December 2024

 LIMPEZA, RESTAURO E RECONSTRUÇÃO


Não há forma de lhes fugir. Pode atribuir-se-lhes muita, pouca ou nenhuma importância mas, a partir do momento em que, mais ou menos espontaneamente, surgem, é garantido que - para além do que de valioso produzam - a indústria rapidamente fará tudo o que estiver ao seu alcance para as esterilizar, normalizar, infinitamente replicar e converter em marcas registadas. Falo, naturalmente, das inúmeras "scenes" que, numa interminável corrida de estafetas, recebem o testemunho da anterior e logo o passam à seguinte. Breve revisão: o “eixo-Liverpool/Manchester” (Joy Division, Echo & The Bunnymen, The Teardrop Explodes, Smiths); a breve mas intensa "no wave" novaiorquina; o lerdo grunge de Seattle; a coreografia química de Madchester; o "british jazz revival" de Sade, Weekend/Working Week ou Everything But The Girl; a languidez de Bristol; enfim, a cintilante polivalência da "Brooklyn scene" (Dirty Projectors, Vampire Weekend, The National, My Brightest Diamond). (daqui; segue para aqui)

Lone Justice - "Teenage Kicks"

21 May 2023


(sequência daqui) Com apoio externo das duas primeiras páginas do Frankenstein, de Mary Shelley, tirado ao acaso de uma prateleira (“O livro começa com a narrativa de um viajante próximo do Círculo Polar Ártico e essa imagem de alguém à deriva ajudou-me a escrever sobre a sensação de estar isolado, perdido e sem objectivos”, justifica-se Matt) e dos convidados Taylor Swift, Phoebe Bridgers e Sufjan Stevens, tratar-se-á, então, como assegura Aaron Dessner, de “uma obra maior, à altura de Alligator (2005), Boxer (2007) ou Sleep Well Beast (2017) dos quais se escutam referências aqui”? Relativamente a este último, é possível que tenha razão: foi exactamente aí que teve início o processo de lenta implosão da banda, um exercício, deliberado ou não, de poupança energética, no qual o som e a fúria de Alligator e – mais que perfeitamente controlados – de Boxer, sem se acharem extintos, actuavam essencialmente como memória em segundo plano.
 
 
Mas o mais exacto paralelismo que deve estabelecer-se é com I Am Easy To Find: tal como nesse álbum, o desenvolvimento das canções é quase processionalmente moroso, os arranjos orquestrais limitam-se a simular crescendos e a procurar acolchoar o muito espaço deixado vago por melodias preguiçosamente monossilábicas, e a tonalidade geral é de queixosa resignação. Naturalmente, poderemos sempre contar com os textos de Berninger para nos obrigar a parar tudo e voltar a escutar (“I get myself twisted in threads to meet you at The Alcott, I go to the corner in the back where you'd always be, and there you are sitting as usual with your golden notebook writing something about someone who used to be me”, de "The Alcott", um dueto com Taylor Swift que é, inesperadamente, a melhor canção do disco) ou fazer-nos ver um momento como se lá tivéssemos estado presentes (“I keep what I can of you, split second glimpses and snapshots and sounds, you in my New Order t-shirt, holding a cat and a glass of beer, I flicker through, I carry them with me like drugs in a pocket, you in a Kentucky aquarium talking to a shark in a corner”, de "New Order T-Shirt"). Mas já vimos lâminas bem mais afiadas acercando-se da artéria radial.

16 May 2023

The National - "Tropic Morning News"
 
(sequência daqui) Depressão ou “burnout”, procurou uma terapia de despoluição fisiológica – zero álcool, zero cannabis – acompanhada por tratamento com antidepressivos. Acima de tudo, receava ter “incorporado a personagem misantropica que, em palco, me habita” e que sempre canalizara para a música. “Escrevi música triste e deprimente durante tanto tempo que, quando ela chocou comigo, quando me apanhou, já não queria escrever mais naquele registo. Não era capaz de me orientar pelo meio do nevoeiro. Não queria pô-lo em palavras. Tudo me parecia feio e grosseiro e todos os pensamentos na minha cabeça eram pequenos, amargos e assustadores”. Foi o momento no qual todos os elementos da banda se concentraram numa espécie de terapia colectiva (“Em vez de nos zangarmos, apoiámo-nos uns aos outros e ao trabalho que íamos realizando em torno das canções, como se estivéssemos a cuidar da nossa família. Conseguimos recuperar os laços que nos têm unido e ver as coisas sob um outro ângulo. É como se tivéssemos entrado numa nova era”, diz Bryce) à qual Matt – de modo arriscadamente pouco científico – atribui todos os méritos da reabillitação: “Conseguir voltar a escrever uma canção foi o medicamento que me curou. Os antidepressivos comigo não resultam”. (segue para aqui)

13 May 2023

"Your Mind Is Not Your Friend" (feat. Phoebe Bridgers)

(sequência daqui) Na realidade, porém, não foi tudo assim tão fácil. Agora que (quatro anos após I Am Easy To Find), First Two Pages Of Frankenstein, o novo álbum da banda, é publicado, Matt confessa que, mais do que em qualquer outro momento anterior, o fim dos National esteve prestes a acontecer: “Mesmo que, sempre que estamos a trabalhar num álbum haja discussões e muita ansiedade, esta foi a primeira vez que sentimos que as coisas poderiam ter chegado irremediavelmente ao fim. Estava num buraco muito negro, não era capaz de escrever uma letra nem de criar uma melodia. Foi assim durante um ano”. E, à “Uncut”, em modo cirurgia de coração aberto, contaria tudo sobre aquele momento “em que o comboio descarrilou”: "Habitualmente, quando atravesso períodos conturbados, consigo lidar com isso, escrevo uma canção sobre o que me perturba o que contribui muito para resolver o problema. Mas, desta vez, eu não queria fazê-lo. Tinha perdido o interesse pela minha própria dor e pelos meus problemas. Sentia-me até, se calhar, envergonhado por causa deles. E quanto mais tempo passava sem exercitar aquela parte de mim responsável pela escrita, mais difícil se tornava reestabelecer a ligação com ela”. (segue para aqui)

10 May 2023

QUANDO O COMBOIO DESCARRILOU 

Há dois anos e meio, ninguém o adivinharia. Falando a partir da Califórnia por ocasião do lançamento do seu álbum a solo, Serpentine Prison, Matt Berninger referia-se à paralização geral a que o confinamento resultante da emergência pandémica obrigara (“Toda a gente tem de repensar a forma como lida com a vida. Foi tudo virado de pernas para o ar. Não parou apenas a indústria musical, parou praticamente tudo. Tem sido uma situação dramática. Não é possível planear coisa nenhuma”), expelia fel sobre a tenebrosa era-Trump (“Custa a acreditar como uma nação se deixou dominar por um criminoso patético e transparentemente maligno e dói ver a aceitação de tal brutalidade. Teremos de reconstruir a América praticamente a partir de zero mas acredito que o ideal americano mantém a força suficiente para, optando por Biden e Kamala Harris, reinventar o país”), mas, quando lhe perguntei qual o critério para distinguir o que viria a ser uma canção dos National de outra para o seu reportório pessoal, respondeu: “Tenho escrito bastante. Estou sempre a escrever, nunca paro. Há muitos músicos e autores de canções amigos que me enviam esboços de ideias. Quando o Aaron, o Bryce, o Brian ou o Scott me enviam alguma coisa, será uma canção dos National”. (daqui; segue)

"The Alcott" (feat. Taylor Swift)

10 March 2023

"February" (álbum integral aqui)

(sequência daqui) “Foi-me fácil usar a estrutura do ano porque é também dessa forma que se encara o tratamento do cancro – esta sensação de lidar com o tempo, um ano de cada vez”, diria Dessner. As últimas peças do "puzzle" foram acrescentadas quando, no Natal de 2018, esta desafiou os irmãos Aaron e Bryce (os gémeos Dessner, de The National) a ocupar-se das orquestrações que haveriam de ser executados pela Malmö Symphony Orchestra, repto imediatamente aceite. Gravados os esboços vocais/instrumentais nos estúdios St. Germain, de Paris, pela frente surgiria ainda o obstáculo do confinamento pandémico que, uma vez ultrapassado, possibilitaria a conclusão do projecto. Sem ser, realmente, mais uma variação sobre o tema das 4 estações mas antes uma busca da sintonia entre o individual e o universal, Complete Mountain Almanac é um ponto de encontro perfeito entre música de câmara e joalharia folk, tal como Virginia Astley, as Unthanks ou Nick Drake imediatemente as apadrinhariam.

22 April 2021

SEGREDOS, SONHOS E MEDOS

Quando, em 1980, Ivo Watts-Russell e Peter Kent fundaram a 4AD, o plano era manter-se em actividade durante 10 anos e, no último dia de 1990, fechar as portas. Ainda esse dia estava longe de chegar e já Watts-Russell – o mais novo de oito irmãos de uma linhagem aristocrática arruinada –, na segunda metade dos anos 80, confessava ser incapaz de virar costas às bandas (Cocteau Twins, This Mortal Coil, Dead Can Dance, Clan of Xymox, Bauhaus, Modern English, Birthday Party, Xmal Deutschland, Colourbox, The Wofgang Press, Momus/The Happy Family...) que haviam transformado a editora num dos mais luminosos faróis da cena "indie" britânica. Segundo Martin Aston, autor de Facing The Other Way: The Story Of 4AD (2013), o sucesso da 4AD assentou no desprendimento comercial de Ivo Watts-Russell – que, logo em 1981, ficaria sozinho à frente da editora – e numa inclinação estética que privilegiava “sentimentos e segredos ocultos, sonhos ansiosos e medos sufocados, esperança e raiva, criados por uma trupe de 'beautiful freaks' que não desejavam ser vistos”.

O horizonte alargar-se-ia até à outra margem do Atlântico onde iriam descobrir os Pixies, Throwing Muses e Breeders mas, em 1999, Ivo venderia a sua quota da editora à Beggars Banquet – para a qual, desde o início, a 4AD fora pensada como incubadora de novas bandas – e exilar-se-ia até hoje no deserto do Novo México. A partir de 2007 com Simon Halliday no comando das operações, sem abdicar significativamente do perfil original, o catálogo foi-se diversificando e alargando (Mountain Goats, TV On The Radio, The National, Scott Walker, Beirut, Bon Iver, Tune-Yards, St. Vincent, Efterklang, Grimes, Future Islands, U.S. Girls, Holly Herndon, Aldous Harding, Big Thief), chegando, agora, o momento de celebrar quatro décadas de existência com a publicação de Bills & Aches & Blues (primeiro verso de "Cherry-Coloured Funk", dos Cocteau Twins) uma espécie de recuperação actualizada do conceito This Mortal Coil no qual bandas actuais revisitam temas dos “clássicos” 4AD. (daqui; segue para aqui)

11 March 2021

(álbum integral)

(sequência daqui) A música enquanto cavalo de Tróia dos textos e das ideias dispõe, então, de uma via de acesso milimetricamente pavimentada: para edificar “a big complicated album that was hi-fi, rhythmic, passionate and painful”, foi necessário imaginar o ritmo como uma jaula (“O que colocamos nos espaços entre as barras de ferro? Quanto menos emoção se situasse no ritmo, mais espaço haveria, para o resto da música e da voz”), entregá-la a uma propulsiva dupla – Kieran Adams e Philippe Melanson – com o nó sinusal sintonizado na onda de Bryan Devendorf, dos National, controlar com mão de ferro os momentos de régua e esquadro no estirador e os de absoluta liberdade, apontar sax, flauta, guitarra, piano e sintetizador para um lugar algures entre uns Prefab Sprout e Blue Nile tingidos de jazz. E, aí chegados, encarnar, verdadeiramente, o papel de estação meteorológica dedicada à detecção dos sinais do apocalipse. Se tudo não correr irremediavelmente mal, talvez possa estabelecer-se um acordo acerca do diagnóstico. Aquele que, à “Stereogum”, Tamara propõe, é, sem dúvida, acertado: “O problema não é a ignorância. Uma teoria da conspiração não é ignorância, é conhecimento falso que arrumamos num espaço acerca do qual nada sabemos. Ignorância é quando pensamos não ser ignorantes. E, quando, perante um mistério, não temos a humildade de dizer ‘é possível que eu não compreenda’. No momento em que sabemos que não compreendemos, talvez consigamos começar a ser mais cautelosos e a fazer mais perguntas”. Resta saber se funciona.

27 January 2021

(sequência daqui) A participação [de Kate Stables] na gravação de I Am Easy To Find (2019), dos National, e, na posterior digressão poderão igualmente ter tido algo a ver com esse processo: “Durante a digressão tive a sensação de estar envolvida num projecto de investigação. Foi um privilégio poder escutar todas as noites a interpretação daquelas canções, ouvir atentamente as palavras e compreender como abordavam a música. Ainda não estou certa de já ter sido capaz de digerir tudo quanto absorvi naqueles concertos. Preciso de ouvir outras opiniões, os meus ouvidos ainda estão demasiado presos a este álbum para o poder apreciar com objectividade”. A “The National connection” é, aliás, antiga: “Conheci o Bryce Dessner quando ele vivia em Paris. Eu tinha 17 anos e ele era amigo da minha irmã. Alguns anos depois, o irmão, Aaron, ouviu a minha música e acabou por produzir o Bashed Out (2015). Temos já uma longa relação de amizade. Recentemente, o Bryce voltou a viver em Paris – a mulher dele, Mina Tindle, é francesa – e foi nessa altura que, em 2019, me convidou para cantar no álbum deles, I Am Easy To Find. Um outro aspecto particularmente evidente em Off Off On é uma vincada aproximação a tonalidades jazz. Estará a ocorrer uma tentativa de diversificar a paleta sonora? Volta a rir-se: “Gostava de lhe poder responder que sim porque isso significaria que tinha reflectido um bocadinho sobre esse assunto. Na verdade, foi apenas um acidente. Há uma série de músicos com quem adoro trabalhar. Um deles é um saxofonista italiano, Lorenzo Prati. Tínhamos um dia para trabalhar em estúdio com sopros e ele apareceu. Se é ao Jesse Vernon que se deve essa especial inclinação nos arranjos, foi o Lorenzo que a aprofundou. No final, também enviámos as gravações para o Adam Schatz que vive em Nova Iorque, um músico de jazz incrível e também explorador de sonoridades electrónicas. Mas, na realidade, nunca houve plano nenhum, tratou-se apenas da contribuição dos diversos músicos”. (para aqui)

23 January 2021


(sequência daqui) Talvez mais acentuadamente que nos anteriores e belíssimos Bashed Out (2015) e Moonshine Freeze (2017), em Off Off On – a começar pelo próprio título – pressente-se uma sensação de ansiedade na forma como os textos se estruturam em frases interrompidas, contraditórias, parecendo, por vezes, falar consigo mesma mas estando, na realidade, a dirigir-se a alguém (ou o oposto). De que origem nasce tudo isto? “A ansiedade, a angústia ou o pânico de que fala estão, sem dúvida, subjacentes mas julgo que alguma esperança também. Por outro lado, do ponto de vista musical, algumas das canções aparentemente mais felizes são aquelas cujos textos não o são e o contrário também acontece. São dois movimentos discordantes que acontecem em simultâneo. Porquê? Se calhar, é por ser Gémeos, tenho uma irmã gémea e tudo!...” O que não impede que, em todo o disco, exista claramente uma coerência muito orgânica, na atmosfera, nos arranjos, na ressonância das canções. John Parish e Aaron Dessner tinham, anteriormente, vestido o uniforme This Is The Kit com superior elegância mas, desta vez, Josh Kaufman (Bonny Light Horseman), parece ter estado na raiz de um salto de qualidade: “Sinto que tenho sempre uma relação muito especial com quem se encarrega da produção e o Josh tem uma forma muito natural e intuitiva de abordar a música e de se relacionar com as pessoas. Não se tratou apenas de fazer uso do seu talento musical, havia também uma óptima energia no estúdio. Toda a gente passou ali uns excelentes momentos e isso, inevitavelmente, reflectiu-se no som. O facto de termos andado em digressão durante tanto tempo, foi também importante. É exactamente o que acabou de dizer: sinto o álbum como um organismo, como uma criatura viva”. (para aqui)

01 November 2020

14 October 2020

HEMORRAGIA LENTA


Na lista das experiências formativas essenciais, Tom Waits inclui ter sido empregado de mesa, em San Diego, na Napoleone's Pizza House: “O que San Diego tinha de bom era haver muitas lojas de tatuagens. Tenho o mapa da Ilha de Páscoa nas costas. E o menu completo da Napoleone's Pizza House na barriga. Quando lá trabalhava, a partir de certa altura, desistiram de imprimir os menus. Eu ia até às mesas e levantava a camisa”. Matt Berninger não anda muito longe disso quando recorda como, nos anos 80, era entregador de pizzas, em Cincinnati: “Fazia pouco mais do que viajar pela cidade, fumando e ouvindo uma estação de rádio, a 97X, Foi o emprego mais musical que tive”. E, à “Uncut”, acrescenta: “Depois, trabalhei num campo de golfe, como cortador de relva, e ouvia os Smiths, enquanto aqueles imbecis ricos tentavam acertar-me com as bolas. Foi a minha educação musical”.
 

Após 20 anos a bordo dos National, publica, agora, o primeiro álbum a solo – Serpentine Prison – e anuncia que se trata de uma nova etapa na aprendizagem de escrita de canções. Tudo terá começado com a adaptação do Cyrano de Bergerac, por Erica Schmidt, para o Daryl Roth Theatre, de Nova Iorque (“Metade escrita de canções e metade paraquedismo”, explicaria Berninger) mas, concluída a experiência de “entrar na cabeça das personagens e exprimir as suas emoções”, pareceu-lhe que era altura de “voltar a chafurdar no meu próprio lixo e isto foi a primeira coisa que daí saiu”. Na verdade, houve uma tentativa anterior de um álbum de versões (Velvet Underground, The Cure, Morphine e Beastie Boys faziam filinha para o abate) que o produtor convidado, Booker T “Green Onions” Jones, desencorajou ao escutar os originais de Berninger co-escritos com Scott Devendorf, Andrew Bird, Walter Martin (Walkmen), Mickey Raphael e Gail Ann Dorsey. E fez muito bem: no mesmo registo acolchoadamente (des)confortável que, desde há dois álbuns, é o dos National, Serpentine Prison é melancolia outonal, hemorragia lenta e quase feliz, um afago resignado antes de encarar o precipício.

12 October 2020

REAPRENDER A ESCREVER


Vai ser necessário “reconstruir a América praticamente a partir de zero” depois dos quatro anos no poder de “um criminoso patético e transparentemente maligno”, diz Matt Berninger, dos National, no momento em que se prepara para publicar o primeiro álbum a solo, Serpentine Prison, produzido pelo lendário Booker T Jones. A partir de Venice, Los Angeles, o presente não é propriamente animador mas Berninger confia que o futuro não há-de ser irremediavelmente negro.  

    Como têm sido estes últimos meses? Tem estado em confinamento? 

Isto, por aqui, está muito mal. A Califórnia é o estado com maior número de casos. E estamos, praticamente, em “lockdown”. Não estamos em quarentena todo o tempo mas usamos sempre máscara. E não há propriamente grande actividade. 

    Para os músicos estes tempos são particularmente estranhos... 

Tenho escrito bastante. Mas tudo muda muito rapidamente. Toda a gente tem de repensar a forma como lida com a vida. Foi tudo virado de pernas para o ar. Não parou apenas a indústria musical, parou praticamente tudo. Tem sido uma situação dramática. Não é possível planear coisa nenhuma. Não faço a mais pequena ideia de quando puderá fazer-se um concerto dos National a sério. Não consigo imaginar um concerto sem 10 000 pessoas que eu possa tocar e sobre quem possa mergulhar, coberto de amor e saliva. (risos) Tenho muito medo de que tenhamos de esperar ainda muito tempo até que isso possa acontecer. Entretanto, toda a gente tenta descobrir formas de sobrevivência enquanto a Natureza não nos oferece uma solução. Estamos a pensar tocar em clubes muito pequenos que correm o risco de fechar. 

    Todas as canções de Serpentine Prison foram escritas antes da pandemia? 

Estavam todas escritas antes do ‘lockdown’. Nenhuma delas foi directamente influenciada pela situação actual. Mas, quando as canções resultam de algum tipo de ansiedade, acabam por ser relevantes para qualquer circunstância atribulada. 

    De qualquer modo, existem referências e alusões bastante explícitas ao estado desgraçado da política norte-americana em “Total frustration, deterioration, nationalism, another moon mission, total submission”... 

Claro que sim. Mas, quando falo do nacionalismo, também posso estar a pensar nos National e “moon mission” pode referir-se a "Return To The Moon", da minha outra banda, EL VY. Quando escrevo, gosto de duplos e triplos sentidos, gosto que a mesma coisa posso ser entendida de formas muito diferentes. 

    Qual é o seu critério para distinguir entre o que será uma canção dos National e outra que poderá incluir num álbum a solo? 

Estou sempre a escrever, nunca paro. Há muitos músicos e autores de canções amigos que me enviam esboços de ideias. Quando o Aaron, o Bryce, o Brian ou o Scott me enviam alguma coisa, será uma canção dos National. Mas, entre Sleep Well Beast e I Am Easy To Find, o Aaron e o Bryce escreveram também toda a música para o musical Cyrano. Por isso, nessa altura, já tinha esgotado todos os esboços de canções que eles me iam enviando. A ideia inicial era gravar um álbum de versões, um pouco inspirado no Stardust, do Willie Nelson. Mas, depois, acabei por pegar nas canções meio alinhavadas que outros amigos me tinham proposto. A ideia nunca foi iniciar outra banda mas dar uma sequência bastante orgânica aquilo que se ia desenvolvendo entre mim e essa comunidade de músicos.

    Mas a própria noção do que são os National não se foi transformando ao longo do tempo? Em I Am Easy To Find, a sua voz, por vezes, praticamente desaparece pelo meio daquela brigada de vozes femininas, os irmãos Dessner e Devendorf têm projectos e colaborações paralelas... Não serão os National, hoje, apenas um ponto de encontro onde, ocasionalmente se juntam para criar música para além daquela com que, individualmente, se ocupam? 

Os National existem quando surge uma ideia ou no momento em que há um certo número de canções a borbulhar. Quando o realizador Mike Mills apareceu com a ideia de fazer um filme em torno do qual se estruturou I Am Easy To Find, tudo se orientou no sentido muito claro de conceber um filme musical e o álbum é quase apenas um subproduto do filme, resultante desse processo de vai e vem entre nós e o Mike. Quando se vê o filme, compreende-se por que motivo a minha voz não está sempre presente. Mas gosto que isso possa ter ampliado a noção do que são os National. No caso do Cyrano, estávamos a compor para personagens específicas o que nos fez aprender ainda uma outra forma de escrever canções. O que, de forma indirecta, acabará inevitavelmente por ter consequências na música dos National. 

    Porque lhe ocorreu convidar Booker T Jones para produzir o álbum? 

Conheci-o há cerca de 12 anos e sabia que ele também tinha produzido o Stardust, do Willie Nelson, que tem uma atmosfera incrível, quase se consegue escutar o som das cadeiras a ranger. Conhece tudo sobre música clássica, blues, jazz, disco, country... A minha intenção era trabalhar com alguém que fosse capaz de se aperceber exactamente de como deveria ser a identidade emocional de cada canção. Quando ele diz que aquela "take" é a "take" certa, ninguém discute. 

    Recordo-me de, numa entrevista anterior, ter dito que prestava sempre muito mais atenção aos textos do que às canções enquanto canções. Neste álbum, dir-se-ia que está no polo oposto: todos os pormenores contam... 

Enquanto gravava estas canções ia também registando algumas das versões em que tinha, inicialmente, pensado e isso fez-me prestar mais atenção à forma das canções e à estrutura das melodias de um modo que nunca antes tinha feito. E pude reparar, por exemplo, como em "Killing Me Softly", da Roberta Flack (uma das grandes canções de sempre), existe o truque estrutural de apresentar logo o refrão no início, e, quando, finalmente, chega o momento “certo” de o escutar, bate-nos de um modo muito mais forte por já termos tido previamentes uma antevisão dele. Estou, realmente, a reaprender a escrever e este álbum permitiu-me concentrar nas melodias e na emoção. As melodias vão atrás da emoção... quando falamos com alguém, a nossa voz sobe para os agudos e desce para os graves em movimentos melódicos. O Booker T estimulou-me a concentrar-me muito nisso. 

    Vai sobrar alguma América depois de Trump? 

É aterrador. Custa a acreditar como uma nação se deixou dominar por um criminoso patético e transparentemente maligno e dói ver a aceitação de tal brutalidade. Teremos de reconstruir a América praticamente a partir de zero mas acredito que o ideal americano mantém a força suficiente para, optando por Biden e Kamala Harris, reinventar o país.

15 May 2020

The National & Sufjan Stevens - "Memories" (L. Cohen)
"We recorded Leonard Cohen's song 'Memories' from Death of a Ladies' Man as a wedding gift for Bryce and Pauline in August 2016. The process started with Thomas Bartlett establishing a foundation and circulated among all of us. Ragnar made a watercolor of the wedding ceremony in Paris"

04 December 2019

O MÉTODO


Pense-se o que se pensar acerca da actividade dos "bootleggers" – desde os que, no início do século passado, contribuiram de modo decisivo para a documentação da história do jazz até todos os outros que, durante as décadas de 60, 70, 80 e 90, foram desocultando uma fabulosa discografia paralela de milhares de músicos e bandas –, há que reparar como, ao longo dos anos, muitos "bootlegs" vieram a ser “oficializados” (exemplo inevitável: as Basement Tapes, de Bob Dylan, e a subsequente “Bootleg Series”) e até encorajados por notórias “vítimas” da pirataria, caso de Springsteen ou dos Grateful Dead. A história está eloquentemente relatada em Bootleg!: The Rise and Fall of the Secret Recording Industry, de Clinton Heylin (2004), mas ninguém estaria à espera que, em 2019, fosse indispensável acrescentar-lhe um novo capítulo. A verdade é que também poucos seriam capazes de prever que esta seria a data em que, pela primeira vez desde há 33 anos, as vendas de registos sonoros em vinil ultrapassariam os CD e – mais dificilmente imaginável – as vetustas cassetes, se preparam para igualar números de há 15 anos. 80% da receita da indústria discográfica deve-se ainda, evidentemente, ao "streaming", mas os sinais de recuperação dos outros suportes são inegáveis.


Altura ideal, pois, para acrescentar ao catálogo de The National um novo título, ao vivo, em cassete tripla, e, simultaneamente, homenagear o lendário "bootlegger" Mike "The Mike" Millard: se tudo tiver corrido de acordo com o plano, na passada sexta-feira, por ocasião da Record Store Black Friday, terá sido publicado The National: Juicy Sonic Magic, Live in Berkeley, September 24-25, 2018, antecedido de uma semana por Juicy Sonic Magic: The Mike Millard Method, um documentário realizado por David DuBois), no qual se explica o ardiloso “método” – entrar nos recintos dos concertos convenientemente sentado numa cadeira de rodas (de que não tinha necessidade), onde dissimulava um pesado gravador de cassetes Nakamichi 550 e os microfones AKG 451E por meio dos quais registou com enorme qualidade sonora praticamente todos os concertos, em particular dos Rolling Stones, Led Zeppelin e Pink Floyd, que entre 1974 e 1980, tiveram lugar no Los Angeles Forum e noutras salas do Sul da Califórnia. Sem cadeira de rodas mas com o mesmo material, coube ao produtor Erik Flannigan, replicar, agora, o “método” nos dois concertos da banda de Matt Berninger, no Greek Theatre. Com a tal “juicy sonic magic”, espera-se.

22 November 2019