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16 February 2010

A TUNE BEYOND US, YET OURSELVES



The man bent over his guitar,
A shearsman of sorts. The day was green.

They said, 'You have a blue guitar,
You do not play things as they are'.

The man replied, 'Things as they are
Are changed upon the blue guitar'.

And they said then, 'But play, you must,
A tune beyond us, yet ourselves,

A tune upon the blue guitar
Of things exactly as they are'.


(Wallace Stevens, "The Man With The Blue Guitar", 1937, em epígrafe de The Blue Moment: Miles Davis's 'Kind Of Blue' And The Remaking Of Modern Music)



(2010)

07 March 2008

AS MÁQUINAS DO MAL CONTINUAM EM MOVIMENTO



O Hove Club é uma daquelas vetustas e muito tradicionais instituições britânicas de cavalheiros, de amplas salas, cadeirões de veludo e cabedal, paredes cobertas por antigas fotografias (dos membros passados e presentes, respectivas direcções e da inevitável Isabel II e ínclita descendência), bar, biblioteca e placards onde se anunciam actividades ou se afixam pedidos e lembretes. Como aquele, publicado no jornal local de Brighton (Hove é uma extensão – de limites geograficamente pouco definidos – de Brighton), “The Argus”, onde se suplica que quem, certamente, por descuido ou brincadeira, se tenha apropriado do busto do general Montgomery que adornava a mesa do hall de entrada, queira ter a amabilidade de o devolver. Foi justamente aí que Nick Cave, desde há anos habitante do “seaside resort” e, por extensão, elemento da “gentry” local, entre dossiers de correspondência com o Royal Bombay Yacht Club e revistas do Landsdowne Club que especulam sobre “the return of elegance” manifestado através de um renovado interesse pelo “high tea, elegant dressing and increasing public scorn for the mobile phone”, decidiu receber o mundo para conversar sobre o seu último álbum Dig, Lazarus, Dig!!!.

Embora diga que este novo álbum é uma tentativa de concretizar aquilo que acabou por não acontecer em Henry’s Dream – gravar um álbum de rock acústico mas verdadeiramente rude –, quando o escutei, pareceu-me, no entanto, que fazia uma belíssima sequência com dois dos seus trabalhos anteriores: Grinderman e a banda sonora e também o argumento para o filme The Proposition/Escolha Mortal, de John Hillcoat… na verdade, as personagens do filme poderiam muito bem ser as vossas (porque as vejo como personagens) enquanto elementos do colectivo Grinderman…
Pois é, nem uns nem outros arranjavam com quem ir para a cama… (risos) é verdade. Essa alusão a Henry’s Dream foi, de certeza, uma observação qualquer que eu fiz que foi utilizada nos materiais de promoção e que passou a ser encarada como se fossem as sagradas escrituras. Mas, sem dúvida, existe essa lógica sequencial de que fala. Se olhar para a trajectória dos Bad Seeds, pode vê-la como uma espécie de “conga line” enlouquecida. Ainda que sejam todos muito diferentes uns dos outros, existe uma lógica que os atravessa. E são diferentes porque me parece que os discos que gravamos vêm um pouco na tradição do que o Dylan fazia: ele interessava-se por trabalhar no interior dos diversos géneros – rock, folk, country. Nunca poderíamos ter feito Dig, Lazarus, Dig!!! se não tivesse existido antes Grinderman. Isso parece-me muito claro. São as mesmas personagens que os habitam.



Por que razão criou estas duas personas colectivas – Bad Seeds e Grinderman – se, no fundo, uma e outra são compostas, basicamente, pelo mesmo conjunto de músicos?
Essa é uma óptima pergunta… bem, na altura, pareceu-nos uma excelente ideia. Por mais que nos queiramos esquivar a isso, a verdade é que tendemos sempre a cair em padrões de comportamento, em rotinas de funcionamento das bandas. As pessoas acomodam-se com grande facilidade às mesmas tarefas e ao desempenho dos mesmos papéis. A formação dos Grinderman deu um safanão nisso tudo, como se tivesse feito detonar uma explosão nos Bad Seeds.

Antes ainda de nos ocuparmos de Dig, Lazarus, Dig!!!, deixe-me voltar outra vez a The Proposition: quando o vi, fiquei imediatamente com a ideia de que se tratava da mais brilhante reformulação contemporânea do “western”, transposto para outro contexto e outro cenário geográfico – a Austrália-colónia penal do século XIX – para o que o seu argumento mas, em muito grande medida, também a música (sua e do Warren Ellis) e o próprio “design” sonoro (nunca tinha ouvido uma cena de tiroteio tão claustrofobicamente “surda” como a do início do filme) contribuem decisivamente…
Essa cena de que fala foi, desde o primeiro momento, escrita exactamente assim. Para mim, era essencial que, logo à partida, se tornasse evidente que aquele não iria ser um drama histórico vulgar. De forma muito deliberada, as fotos do genérico inicial apontam para aí mas, mal termina, bang!...salta-se, repentinamente, para um contexto inteiramente diferente. O som foi tremendamente importante. Como, aliás, em qualquer filme: cinquenta por cento da sua energia depende do som. Modifique-se alguma coisa aí e teremos um filme absolutamente diferente.



E, no entanto, continuamos a dizer que “vamos ver” um filme e nunca que também o “vamos ouvir”…
Exactamente. Mas, quando escrevi o argumento, já tinha identificado perfeitamente os pontos onde deveria existir música, posso dizer que, de certo modo, o argumento continha já a música.

A música foi gravada antes do início das filmagens?
Não. Mas sabia exactamente como ela deveria ser. E descobri que o Warren tinha uma biblioteca de “loops” que ia gravando em casa. Explorava as várias possibilidades dos pedais e ia criando aqueles estranhos “loops” orgânicos em instrumentos acústicos como o violino, a viola de arco ou o bandolim, alterava-lhes a altura, transpunha-os para oitavas diferentes… eram incríveis e ele tinha centenas deles guardados no computador. Quando passámos ao visionamento do filme, em cada cena, ele ia sugerindo “talvez isto não ficasse mal aqui…” e raramente falhava. Tinha um catálogo de ideias virtualmente inesgotável, é um tipo incrível. Aliás, muitos desses “loops” foram também utilizados no Grinderman e, agora também, em Dig, Lazarus, Dig!!!.



Falando, então, deste álbum: concebeu-o como uma colecção de canções avulsas ou existe algum tema global que as articule? Aparentemente, eu diria que sim: a turbulência e a confusão interiores, políticas, sociais…
Não duvide: está tudo definitivamente fodido! Em todas as canções, as várias personagens parecem estar no mesmo estado de incapacidade, impossibilitados de exercer qualquer efeito seja sobre o que for, adormecidas, em estado de coma, hipnotizadas, drogadas, num estado de completa apatia em relação a tudo. Ou mortas. É esse o tema que as atravessa a todas. Essa sensação de incapacidade parece-me ser um estado de espírito contemporâneo muito generalizado. O traço definidor destes anos é o facto de sentirmos que não podemos realmente actuar sobre coisa nenhuma. As máquinas do mal continuam em movimento e nada podemos fazer para as deter.

Esse é também o seu estado de espírito?
Sim, sim.

E, no entanto, nestas canções, não desiste de ir lançando as suas imprecações contra tudo isso…
Sou um imprecador!... (risos)

Em “We Call Upon The Author To Explain”…
Aí tem uma imprecação! Em inglês, há uma palavra para esse tipo de canção, chamamos-lhe “a screed” [em português: uma arenga], uma lamentação prolongada, morosa e aborrecida.



Mas acontece que, nessa canção, nunca fica claro se esse “autor” ao qual dirige a sua fúria é Deus ou você próprio…
Exacto. Depende. É um jogo precisamente em torno dessa ambiguidade, em mundos reais ou imaginários.

A questão é que, porque aborda muitas vezes tópicos religiosos, quando nessa canção se descobre uma citação de Wallace Stevens – the waves, the waves were soldiers moving” –, recordamo-nos que foi também ele que afirmou “depois de se ter perdido a fé em Deus, a poesia é aquela essência que ocupa o seu lugar como redenção para a vida”… subscreve?
Não consigo estabelecer essa relação entre acreditar na arte, envolvermo-nos com ela e ver isso como algo de mágico em que se cria a partir do nada. Mas, se, por exemplo, escrevemos canções, a probabilidade de se dar esse salto nunca se encontra demasiado longe. Comigo, isso funciona no sentido inverso.

Por outro lado, nessa canção, o texto é muito diferente do habitual: “Oh rampant discrimination, mass poverty, Third World debt, infectious disease, global inequality and deepening socio-economic divisions, it does in your brain, we call upon the author to explain!”… será isto o texto de uma canção-rock?
Na verdade, isso foi extraído directamente de um livro (processem-me!), suponho que se chama Terror… diverti-me bastante com isso. Toda essa canção está recheada de citações roubadas daqui e dali. Há uma outra frase que retirei do livro de um amigo, Sebastian Horsley, onde ele citava diversas coisas minhas; desta vez, decidi ser eu a citá-lo a ele. Por isso, toda esta canção é apenas um exercício bizarro em torno do processo de escrita. E de mais uma enorme quantidade de outras coisas. Ou, então, é “nonsense” puro.

Esclareça-me, por favor, um ou dois enigmas: “Night Of The Lotus Eaters”… “comedores de lótus” era a designação clássica atribuída aos habitantes da Tunísia, mas esse título também era o de um folhetim da BBC e de um conto de Somerset Maugham – a qual das três hipóteses foi buscá-lo?
À mitologia grega clássica na qual – julgo que é o que acontece a Ulisses, na Odisseia –, se se comer do lótus, isso impede-nos de voltar a casa. Tem a ver com aquela tal ideia do estado de apatia.



Numa outra canção, afirma “it must be nice to leave no trace at all”, já não se trata de apatia mas de um desejo de quase extinção, há diversos fios narrativos…
Fio narrativo [thread] é uma boa palavra… é disso mesmo que se trata.

Do ponto de vista propriamente musical, há pouco falava da utilização neste álbum dos “loops” criados pelo Warren. Concebeu o disco em torno deles – e ele é muito mais estruturado do que Grinderman – ou foi apenas mais um elemento de composição?
Várias dessas canções cresceram a partir dos “loops”. “Night Of The Lotus Eaters”, de que falávamos há bocado, é apenas um “loop”. Tinha escrito uma canção e esse “loop” era apenas uma pequena parte dela. Quando a fomos gravar, detestei o resultado final. Decidimos desistir dela, parámos de tocar mas o “loop” continuava. Comecei a cantar a “Night Of The Lotus Eaters” (que também já tinha escrito) sobre ele e o Tommy, o baterista, que não tinha o “loop” nos auscultadores, iniciou um padrão rítmico bastante “jazzy” que, naturalmente, não tinha nada a ver com o “loop”. A forma como tudo aquilo fez sentido foi extraordinária.

O espírito de “jam” livre de Grinderman esteve muito menos presente…
Sobreviveu ainda um pouco dele. Um terço das canções foram escritas por membros dos Grinderman… mas enquanto Bad Seeds (risos), um terço por mim e pelo Warren e o outro terço apenas por mim. As que escrevi com o Warren tiveram a ver com o facto de me recordar que ele tinha todas essas preciosidades escondidas caso, por exemplo, de um outro “loop” que editámos por duas vezes em “We Call Upon The Author”.

(2008)