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10 December 2020

DEPURAÇÃO

Quando Jarvis Whitehead e John Campbell, aliás, It’s Immaterial, intitularam o álbum de estreia Life’s Hard and Then You Die (1986) não podiam adivinhar que tinham encontrado a síntese tristemente exata para (quase) tudo o que o futuro lhes reservava. Co-produzido (não sem conflitos) por Jerry Harrison, dos Talking Heads, desse peculiar lugar de encontro entre pop, jazz, "spoken word", eletrónica, os vários minimalismos e a folk resultaria um sucesso totalmente inesperado, "Driving Away from Home", que, no momento em que trepava pelas tabelas de vendas britânicas e as rádios lhe estendiam passadeiras vermelhas, a editora deixou, indesculpavelmente, esgotar. Quatro anos depois, nos Castlesound Studios do mágico Calum Malcolm — que em A Walk Across the Rooftops (1984) e Hats (1989) já elevara os Blue Nile aos céus —, os dois ex-colegas de universidade atingiriam, subitamente, a perfeição: Song era um milagre de levitação de melodias e imagens impressionistas suspensas no tempo (“Yesterday I saw you, Main Street way, looking at the empty boarding houses and closed arcades. Well it’s funny, just to think, the tides now out and there is very little story to be found in the shops and buildings here”), instantâneos translúcidos simultaneamente frios e pungentes, “uma espécie de emoção controlada que nunca se liberta. A sensação de que está sempre algo à beira de acontecer na narrativa mas nunca acontece”, diria Campbell, à época.  (daqui; segue aqui)


 

14 November 2013

LADRÃO DE JÓIAS


Oscar Wilde não podia ter mais razão quando decretou que “só as pessoas superficiais não julgam pelas aparências”. Mas, apesar de sábia, tal regra de avaliação não deve ser aplicada de modo demasiado literal. Olhando, sem preparação prévia, para uma fotografia recente de Paddy MacAloon – algo como um candidato ao lugar de Pai Natal de centro comercial, todo de branco vestido e calçado – imaginamos, de imediato, que ele nos poderia assediar implacavelmente, de Bíblia na mão, oferecendo promessas de salvação e um convitezinho para comparecer, logo que possível, no templo da seita religiosa da sua preferência. Tranquilizemo-nos, porém: apesar das diversas referências ao Além que mobilavam o último Let’s Change The World With Music (2009) – mas não começava "God Watch OverYou" com as palavras “I’ve no time for religion, maybe doubt’s a modern disease”? –, é oficial (confirmou-o em entrevista recente ao “The Scotsman”): não, não teve nenhum encontro imediato com o Grande Fantasma Cósmico.



Já o mesmo não poderá dizer-se das aparentemente excelentes relações que manteve com o Príncipe das Trevas que, no pacto faustiano relatado em "The Devil Came A Calling", descreve como um tipo “charming, articulate, urbane, charisma all the way (...) no brimstone fire or rain”, capaz de propor um óptimo negócio que lhe proporcionaria “power, wealth, and a mansion on Fellatio Drive”. Acerca do qual não está muito seguro de como terá reagido: “My memory is hazy, I thought that I declined”. Mas, ainda que, quando interrogado como consegue, aos 56 anos, manter intacto o timbre vocal de há duas décadas, responda que “gargarejar com sangue de virgens ajuda bastante”, não é muito provável que o acordo tenha sido consumado: a edição do novo Crimson/Red (sob o já só "nom de plume", Prefab Sprout) resultou dos mesmos sarilhos económico-contratuais que tinham estado na origem de   Let’s Change..., coisa pouco habitual em gente de “power and wealth”.



Isto é, pressionado a publicar um álbum por quem lho teria financiado e porque o seu perfeccionismo patológico o impedia de o fazer, não encontrou outra solução que não garimpar, mais uma vez, os inesgotáveis arquivos e, inteiramente a solo (mas, de novo, acompanhado pelo produtor Calum Malcolm), puxar o lustro a dez canções das quais a mais jovem tem dois anos e a mais idosa, dezasseis. Nada de preocupante, afinal. Os fundos de baú deste fulano que, candidamente, confessa ignorar como se envia um email ou uma SMS e lida mal com computadores, contêm mais preciosidades do que aquilo que a maioria se apressa para tirar do forno. Escutem-se "The Songs Of Danny Galway" (genuflexão perante o mestre Jim Webb – “ I met him in a Dublin bar, a sorcerer from Wichita” ), "Mysterious" (idem face a Dylan – “You roar right out of Nowheresville, to find the beating heart, cryptic, ellusive, smart, mysterious from the start”) ou "The Best Jewel Thief in the World" (ibidem apontado a ele mesmo – “Down below, what do any of those assholes know? Watch your legend grow, you’re the best jewel thief in the world”), gloriosas coreografias de melodia e palavras, e ouse-se não fazer silêncio.

03 November 2009

A BUNCH OF DO-RE-MIS
 

 
Prefab Sprout - Let’s Change The World With Music
 
Procure-se uma fotografia actual de Paddy McAloon e é muito natural que imaginemos que a busca de imagens do Google tenha sofrido um ataque malévolo de "hackers": a figura que nos aparece é a de um daqueles profetas hirsutos do "deep-south", psicoticamente concentrados no anúncio iminente do fim dos tempos por entre duas goladas de bourbon. Ou, como alguém também já o descreveu, um vagabundo Amish candidato ao papel principal num biopic sobre Robert Wyatt. Ele próprio, quase-eremita em Durham, com a mulher e as três filhas, contribui, voluntariamente, para o retrato: “Já viram um daqueles documentários acerca do género de pessoas que vivem no meio de pilhas de jornais, pão e bicicletas? Eu sou um bocado assim”


 
No caso dele, os jornais, pão e bicicletas são os álbuns que compôs e gravou mas nunca chegaram a ser publicados – mais de uma dúzia, desde peças conceptuais acerca do herói imaginário "Zorro The Fox", a um “Atomic Hymn Book” ou a outros com títulos como “20th-Century Magic”, “Jeff & Isolde”, “Doomed Poets Vol. 1” ou “Earth: The Story So Far”. “Sinto-me como uma personagem de Edgar Allan Poe, sepultado debaixo das caixas com os meus álbuns”. Let’s Change The World With Music, por exemplo, está gravado há dezassete anos, deveria ter sido editado a seguir a Jordan: The Comeback (1990) e começou por ser uma canção para Barbra Streisand que partia dos versos “Do you think that we can change the world with music?, If a sane man overheard us he'd shout 'Two straitjackets please', because all we've got is music, it's a wonderful ambition, but our only ammunition is a bunch of do-re-mis.." Da canção restou apenas o título do álbum e, do título de outro – “Earth: The Story So Far” –, ficou uma canção. 
 

 
Aos 52 anos, com a visão severamente diminuída, um ouvido gravemente afectado e uma relação persistentemente problemática com as editoras, entregou as velhas maquetes a Calum Malcolm (Blue Nile, It’s Immaterial) e, das mãos dele, surgiu o sucessor de The Gunman and Other Stories (2001): irremediavelmente marcado pela sonoridade da época de origem, sumptuosamente "orquestral", desesperadamente romântico, declaração de paixão pela música (“Music is a princess, I’m just a boy in rags”) e de amarga decepção (“Meet the new Mozart, he's in the bed where commerce, sleeps with art, who can blame him?”). (2009)

20 November 2008

O ELOGIO DA PREGUIÇA

(departamento THE BROTHERHOOD OF THE UNKNOWN (VII), segundo David Thomas: "The first Pere Ubu record was meant to be something that would gain us entry into the Brotherhood of the Unknown that was gathering in used record bins everywhere")


It's Immaterial - Song

Vão-se preparando para sofrer mais um ou dois sérios abanões com epicentro no mesmo ponto que, no final de 1989, nos trouxe de volta os Blue Nile. A causa da coisa saiu no passado dia 25 de Junho, em Londres, tem o conciso título de Song e os agradecimentos pela sua criação devem ser endereçados para Liverpool, ao cuidado de John Campbell e Jarvis Whitehead, aliás, It's Immaterial. Não esqueçam já os Blue Nile pois o paralelismo não é fortuito. Tal como com eles, também sobre Campbell e Whitehead (igualmente ex-colegas de universidade que se descobriram mutuamente compositores) se poderia falar de um caso de invisibilidade deliberada, de uma estratégia de captação das atenções pela fuga à banalização da presença sob os focos dos media e assente na valorização da raridade da discografia. Nuns e noutros, a produção reduzida ao mínimo indispensável para poder constituir prova legal de existência, traduzida em dez anos para dois álbuns e meia dúzia de singles. Encaremo-los como a expressão de um derradeiro elogio da preguiça ou uma apologia da virtude dos metabolismos lentos: A Walk Across The Rooftops (1984) e Hats (1989), dos Blue Nile, e Life's Hard And Then You Die (1986) e, agora, Song, dos It's Immaterial, pertencem todos por legítimo direito à selecção restrita dos indispensáveis da música britânica dos anos recentes. Último traço de união: em ambos os casos, o regresso fez-se pela porta dos Castlesound Studios de East Lothian, sob a orientação do produtor Calum Malcolm.


A separação das águas pode iniciar-se, sem prejuízo, pela via das aparências. Onde os escoceses não sentem a obrigatoriedade de imprimir os textos das canções, o duo de Manchester "exilado" em Liverpool responsável por Song sabe bem como é imprescindível fazê-lo para possibilitar um entendimento sem equívocos do seu universo. Têm todos razão. Ainda que habitantes de territórios sonoros parcialmente coincidentes, a função das palavras que, nuns, é mero adereço na definição dos ambientes, para os outros, assume um papel central enquanto elemento de estruturação dos temas. Legíveis como trechos autónomos dedicados ao registo impressionista de paisagens de desolado despovoamento ("From the shore to the station, the blinds are down, people say the place is slowly dying, there's not a sound, above the rooftops, from the high rise, you can see for miles, a caravan on every plot of land, up and down the coastal plain, in New Brighton when it rains; yesterday I saw you Main Street way, looking at the empty boarding houses and closed arcades, well it's funny just to think the tide's now out and there is very little story to be found in the shops and buildings here") ou à narração de histórias individuais de isolamento e claustrofobia provincial ("When he was tirty five, Mr. Hart met Bernice, the check-out girl, spending all his time hanging around the doors of the junk food store, will they ever speak?"), não limitam nunca, no entanto, a liberdade de acção da música na busca de um espaço próprio.



Acontece, aliás, exactamente o oposto: da perfeita aderência das duas componentes resulta o desdobramento de sentidos de cada uma, num notável exercício de estimulação simultânea que multiplica os ângulos de abordagem. Aquando da edição de Life's Hard And Then You Die, era praticamento impossível não lhe identificar a proliferação de referências musicais que, entre o jazz, a pop, a folk, a "systems music", o electro ou a "contemporânea", se deixavam integrar num tecido vivo e diverso mas livre de problemas de rejeição imunitária. Ecléticos até aquele grau em que o próprio termo se torna redundante, os It's Immaterial recusavam já então a colagem ou o exercício de estilo como método de escrita, preferindo-lhe a fusão quase genética das linguagens sobre que operavam. Song prossegue e intensifica essa lógica, conduzindo-a a um estado de sofisticadíssima cirurgia plástica, incapaz de revelar o menor vestígio de cicatrizes no lugar dos implantes. "Atmosféricas" mas, de modo algum, carentes de consistência e coerência formal, às dez "songs" de Song seria dramático que estivesse reservado o mesmo destino do álbum anterior: coleccionar um invejável dossier de recortes de imprensa com a crítica unanimente ajoelhada e não vender senão o bastante para ocupar fugazmente um modesto lugar no top-75 britânico.

(1990)