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22 September 2020

A NOITE E A CHUVA

 

No poema “Old Marx”, o polaco Adam Zagajewski escreveu: “He couldn’t concentrate, rewrote old work, reread young Marx for days on end, and secretly admired that ambitious author. He still had faith in his fantastic vision, but in moments of doubt, he worried that he’d given the world only a new version of despair; then he’d close his eyes and see nothing but the scarlet darkness of his lids”. Foi a frase “in moments of doubt, he worried that he’d given the world only a new version of despair” que, há cinco anos, por pouco não impediu Peter Milton Walsh de publicar No Song, No Spell, No Madrigal, o sublime álbum de regresso dos Apartments, após quase duas décadas de ausência. “Esse poema assombrou-me durante imenso tempo. As canções são como janelas – às vezes, alçapões –, as memórias entram a galope e temos de ser capazes de lidar com elas”, disse ele, na altura, a propósito dessa gravação consagrada ao luto pelo filho, Riley.

 

As “new versions of despair” de Peter Milton Walsh não eram coisa nova. Robert Forster descrevia-o como “um homem que deixa suspiros e queixas no seu rasto” e Grant McLennan (o outro Go-Between, banda da qual, fugazmente, Walsh também fez parte) comparava: “Ele é a noite, nós somos o dia. Nós somos o sol, ele é a chuva”. Poucos soldados do escasso exército de sombras que é a sua rede de seguidores dispersos pelo planeta esperariam já esse ressurgimento. E menos ainda apostariam que fossem necessários apenas cinco anos para que Peter Milton Walsh – ele que assegura dedicar grande esforço ao desenvolvimento dos seus “sitting still and keeping quiet talents”, algo que lhe parece “demasiado menosprezado neste mundo” – voltasse a reanimar o tresmalhado ensemble de câmara que lhe serve de alter ego. E, no entanto, com epicentro em Sydney e ramificações em Paris e Londres, eis In And Out Of The Light, belíssimos oito quadros de impressionismo "noir", ensaio de fuga (“Write your way out of town, write your way out of sorrow”) e exercício de aproximação audeniana (“Oh you were so unlike the rest, my North, my South, my East and West, you were so unlike the rest”), que, se, confessadamente, se abeira daqueles “sobre quem toda a vida desabou”, não resiste a cuspir o veneno que tanto intoxica quem o expele como aqueles que atinge: “I like living without you, can’t you see I’m getting by? Except when I’m dreaming or drinking, breathing or sleeping, walking or talking, I don’t give a fuck about you anymore”.

27 March 2019

ZÉNITE 


“Esquecemos muitas coisas mas há outras que não nos saem da memória. Recordo-me de quando, há 40 anos, eu e o Grant íamos a atravessar uma ponte, de carro, ele ter-me perguntado se já tinha um nome para a banda e eu ter respondido ‘The Go-Betweens’. Aquela conversa entre dois tipos de 20 anos, está agora em sinais espalhados por toda a cidade de Brisbane, e, provavelmente, vai lá ficar centenas de anos. Poderia ser o ponto de partida para um filme... Quando começamos uma banda, sonhamos com discos de ouro, tocar no Madison Square Garden, nunca pensamos que o nome dela há-de vir a ser atribuído a uma ponte da nossa cidade”, diz-me Robert Forster, a propósito de, desde 2009, Brisbane – por votação popular "online" – ter passado a incluir na sua toponímia o nome do grupo que, em 1977, ele, Grant McLennan e Lindy Morrison fundaram. Sim, os Beatles poderão ter cantado a Penny Lane, de Liverpool, Tom Waits a Kentucky Avenue, de Whittier, na Califórnia, e Van Morrison a Cyprus Avenue, de Belfast, mas, a eles, foi a cidade que lhes chamou seus. 

 
Não virá a ser, talvez, o ponto de partida para um filme – pelo menos, um filme dele: no novo álbum, Inferno, o que diz, metaforicamente ou não, em "No Fame", é “I’m going to write a novel that is set a hundred years ago” – mas, de certo modo, haverá de servir como compensação para aqueles tempos em que alguma da mais perfeita joalharia pop foi pouco menos do que ignorada e de que ele, agora, fala, sem um pingo de modéstia, em "Remain": “I know what’s like to be ignored and forgotten when yours is the name that doesn’t come up too often, big city screens, big city dreams remain, I did my great work while knowing it wasn’t my time”. E, no entanto, nestas bem-aventuradas nove canções gravadas no estúdio de Victor Van Vugt, em Berlim (onde, como Forster relata no ”Berlin Diary”, “todas as mulheres parece terem visto um fantasma”), que, no total, não vão além dos 35 minutos e se iniciam com um poema de W. B. Yeats ("Crazy Jane on the Day of Judgement"), não existe uma sombra de ressentimento. Pergunto-lhe se “Eat only what I eat, breathe only what I breathe, well that’s me”, as últimas linhas da última canção ("One Bird in The Sky"), não contém algo daquele conceito do budismo zen que aconselha a “comer quando se tem fome, beber quando se tem sede e dormir quando se tem sono” e ele responde que apenas é “adepto de dizer coisas simples mas com significado”. Seja, então, budismo zénite, o ponto mais alto do céu.

26 March 2019

DUAS VEZES POR ANO


“Os Go-Betweens nunca foram aquele tipo de banda que, quando se anda de táxi, de repente, no rádio, depois de Madonna, Bon Jovi ou Michael Jackson, se escuta uma canção nossa. Pode dizer-se que fomos preservados em relação a tudo isso, nunca tocámos para multidões. Mas a nossa música perdurou. Há dois anos, Kriv Stenders, um fã dos Go-Betweens, realizou um documentário sobre nós (Right Here). Há bandas australianas muito mais populares sobre as quais nunca foi feito um documentário”, diz Robert Forster, músico, escritor, jornalista, aspirante a actor e co-fundador com Grant McLennan de uma das maiores preciosidades da Austrália. Com o sétimo (e óptimo) álbum a solo, na mala, para apresentar. 

    Numa entrevista recente, disse uma coisa belíssima mas que, ao mesmo tempo, poderia tornar-se um constrangimento: “O Grant McLennan estabeleceu um padrão que eu não posso nem quero apagar”. Esse desejo de lealdade não acabará por limitá-lo? 

Não, escrevo como entendo dever fazê-lo. Trabalhámos juntos durante tanto tempo que sei perfeitamente o que as minhas canções e as dele tinham de bom. Exigíamo-nos mutuamente um nível elevado. Mas isso nunca constituiu nenhuma limitação: posso escrever sobre o que quero, gravar em Berlim ou Lisboa. É apenas um alerta para não deixar de continuar a escrever boas canções. 


    Uma outra afirmação sua fez-me pensar em algo que o Leonard Cohen costumava dizer... 

Que início de pergunta tão bonito... 

    Por ter referido Leonard Cohen? 

Não, por tê-lo colocado a ele e a mim na mesma frase!... (risos)

    Ele dizia que demorava eternidades a concluir uma canção e que invejava quem era capaz de as escrever durante uma viagem de táxi. O Robert confessava que precisava de 4 ou 5 anos para escrever 10 canções... 

Se fosse possível comparar-me com Leonard Cohen, a semelhança seria que, tanto ele como eu, escrevemos muito, muitas palavras, posso escrever durante um dia inteiro. O Leonard Cohen não era um músico fantástico mas tinha um estilo de tocar particular. O mais difícil, para mim, são as melodias, é por isso que escrevo pouco mais de duas canções por ano: desejo que sejam fortes, originais, preciso de gostar delas. 

    Deita fora muitos esboços de canções? 

Sim, muitos. Se não são suficientemente boas, se sinto que são semelhantes a outras que ouvi antes, se não me parece que apontem uma direcção para o que farei a seguir. Pessoas como o Grant ou o Paul MacCartney são capazes de criar, continuamente, melodias. Comigo só acontece duas vezes por ano. (risos)


    Não é uma coisa de agora mas, acerca deste seu último álbum, tenho visto muito mais referências do que o habitual relativamente à influência de Lou Reed e dos Velvet Underground... Concorda? 

No que diz respeito à produção do disco, talvez. Já me disseram que soa como um álbum do Lou dos anos 70. Para mim, isso é um elogio. Uma coisa que o Lou Reed e eu temos em comum é que as nossas vozes têm uma tessitura muito limitada. 

    Daí, terem uma expressão quase mais falada do que cantada, aquilo a que, em alemão, se chama "sprechgesang"... 

Exactamente, "sprechgesang". Aliás, tal como o Leonard Cohen. O que tem como consequência que os textos se tornem muito mais importantes.

    Talvez mais do que em qualquer altura anterior, os Go-Betweens são nomeados como referência para novas bandas e, em algumas – como os Rolling Blackouts Coastal Fever ou os Goon Sax, do seu filho, Louis –, isso é bastante evidente. Chegou o momento de deixarem uma linhagem? 

É verdade que, nos últimos 10 ou 15 anos, tenho reparado que há cada vez mais gente a apreciar os Go-Betweens e a dizer que esta ou aquela banda tem algo de nós. Claro que é agradável ler isso. É um pouco como acontecia no final dos anos 70 quando alguém dizia que um grupo fazia lembrar os Byrds e nós íamos a correr tentar descobrir de que estavam a falar. Recordo-me bem de como isso era importante para mim quando era jovem. 

    Quando escrevi sobre o álbum dos Rolling Blackouts, tinha acabado de ler as suas memórias, Grant & I onde caracteriza os Go-Betweens como “um ovo de Fabergé”. Pensei que seria apropriado chamar-lhes “um ovo de Fabergé gigante” uma vez que me pareceu tratar-se de uma enorme ampliação do modelo e da sonoridade dos Go-Betweens... (risos) 

Gosto imenso deles, vi-os no ano passado em Berlim. 

    E, com os Goon Sax, essa sensação de paternidade estética é duplamente notória, apesar de o Louis garantir que nunca escutou nenhuma canção dos Go-Betweens... 

Ele disse-me que foi incorrectamente citado. É verdade que não ouvíamos muito os nossos discos em casa mas ele estava presente quando eu escrevia as canções. O processo de constituição dos Goon Sax foi muito natural. Por volta dos 14 ou 15 anos, o Louis tinha estado noutra banda com o James Harrison. Eles os dois começaram os Goon Sax e uma amiga, a Riley, disse-lhes que estava a aprender bateria e perguntou se podia tocar com eles. Foi apenas isso. Claro que faz pensar nos Go-Betweens mas foi apenas uma coincidência. Houve uma altura em que o Louis dizia que, embora a banda soasse muito bem, queria tocar com quatro músicos em vez de apenas com aqueles dois para que não lhe viessem dizer que estava a imitar a banda do pai. Mas desistiu dessa ideia. Seja como for, eles têm apenas 20 anos e, de certeza, vão ainda mudar muito. 


    
    Porquê colocar como primeira faixa de Inferno um poema de Yeats, "Crazy Jane on the Day of Judgement"? Fazer parte de uma colecção de poemas chamada Words For Music Perhaps, teve alguma importância? 

É muito, muito difícil musicar a poesia do Yeats. Não tem absolutamente nada a ver com a canção pop ou o rock. Mas, há quatro anos, em Dublin, houve uma celebração do 150º aniversário de Yeats. Convidaram-me a participar juntamente com outros autores de canções de todo o mundo e enviaram-me alguns poemas para eu escolher. Semanas antes, tinha escrito uma melodia que combinava perfeitamente com este poema. Quando a cantei em Dublin foi muito bem recebida, por isso, decidi incluí-la no álbum. Pareceu-me uma excelente introdução até porque a minha voz não surge senão cerca de 30 segundos após o início. 

    Uma das coisas que disse à “Uncut” é, para mim, uma verdade absoluta: “Os livros fazem-nos bem à saúde”. Pouco depois, quando estava a pensar nesta entrevista, descobri um vídeo em que uma sobrevivente do Holocausto com cem anos contava como os livros e a leitura a tinham ajudado, literalmente, a salvar vidas no gueto de Varsóvia.  

Exacto. A verdade é que, às vezes, nem sequer preciso de ler os livros. Basta que estejam ali a fazer-me companhia, todas aquelas vozes a falarem comigo. No meio do ruído de uma cidade, se entro numa livraria, sinto imediatamente que algo, ali, está a fazer-me bem. Quanto mais vertiginosa a vida se torna mais penso que ler é um acto subversivo, totalmente contra a velocidade a que vivemos, um gesto radical.


    Em Grant & I, uma das memórias mais divertidas é aquela de, na sua primeira viagem a Londres, quando trabalhava no arquivo de radiologia do St. Mary’s Hospital, ter roubado uma radiografia ao joelho do realizador Nicolas Roeg e isso ter sido o mais perto que alguma vez chegou da indústria cinematográfica britânica...  

(risos) O Grant e eu tínhamos visto os filmes dele na Austrália e estar, de repente, com as radiografias do Nicolas Roeg na mão foi um momento espantoso!... 

    Ainda sonha realizar um filme? 

Isso era mais o sonho do Grant. Eu adorava participar num filme como actor. 

    Mas já existe um velho actor com o seu nome que o Tarantino ressuscitou em Jackie Brown... 

Eu sei!... 

    E quem seria o realizador? 

Se pudesse viajar no tempo, seria o Billy Wilder. Actualmente, gosto muito de Paweł Pawlikowski, o realizador polaco de Cold War. Mas teria de ser um filme europeu. Provavelmente, alemão. Como falo um bocadinho de alemão poderia representar uma personagem que falasse alemão... e inglês.

22 March 2019

Entrevista com Robert Forster (2017)


Right Here trailer (real. Kriv Stenders, 2017)

03 July 2018

UM OVO GIGANTE

  
Começaram por chamar-se Aurora, porque, enquanto banda de liceu, Fran Keaney, Joe White, Marcel Tussie e Tom e Joe Russo, eram de opinião que deviam adoptar um nome “que ficasse bem no estojo das canetas ou nas costas dos cadernos”. Depois, vá lá saber-se porquê, optaram por World Of Sport. Assentaram, por fim, em Rolling Blackouts Coastal Fever (não perguntem, mas, entre outras histórias, parece haver um maligno virus do Camboja envolvido). Se nos recordarmos como Robert Forster, em Grant & I: Inside and Outside The Go-Betweens, descrevia a banda (“Os Go-Betweens eram uma coisa rara, um ovo de Fabergé, e como tal deviam ser tratados”), talvez uma outra designação se lhes ajustasse melhor: The Huge Fabergé Egg. Porque – e os RBCF nem sequer tentam esquivar-se à comparação – a dívida do quinteto de Melbourne para com o grupo de Forster e Grant McLennan é imensa. Mas, e é isso que justificaria o “huge”, sem se limitarem a replicar a sonoridade deste: assente no trio de guitarras Keaney/Joe White/Joe Russo, em Hope Downs, álbum de estreia, dir-se-ia que, na sombra, Tom Verlaine dirige as operações. 



E, ao fazê-lo, amplia desmedidamente a jóia de Fabergé sobre a qual se projectam reflexos dos R.E.M., Feelies, dos primeiros Echo & The Bunnymen, ou até das magníficas insolações dos Triffids. Se "How Long?", "Time In Common", "Exclusive Grave", "Cappuccino City" (um rascunho de "Streets Of Your Town") ou "The Hammer" (Forster com entoação dylaniana) contêm um mais elevado índice-GB, "Mainland" é um exercício sobre a teoria da cor, de Klee (“And all I saw was burning blue fading into blinding white, wade out past the rotting pier, out to the open water, son of a red roof city, (…) and back on the mainland cool change was rolling over, black sky was getting lower on golden sand”) com tragédia migratória em fundo (“And we talked about the land of our fore-mothers, now that we've shut the gate, it would be funny if it didn't make you want to cry”), "An Air Conditioned Man" evoca o Air Conditioned Nightmare, de Henry Miller (“You walk past the wall you first kissed her against, how could you forget? (…) Did it ever matter in the first place? Does she still think about it now and then? In her air conditioned home, on her air conditioned street, in an air conditioned city”), e todo o resto, por entre vertiginosas espirais de guitarras, desenha “uma colecção de postais de um mundo cada vez mais estranho em que sentimos que a areia nos foge sob os pés”.

12 April 2018

UM OVO DE FABERGÉ

  
Seria a música ou o cinema. “Grant falava-me da Nouvelle Vague e do ‘film noir’. Eu falava-lhe da grandeza dos Velvet Underground. Ele falava-me acerca da teoria dos autores e do génio de Preston Sturges. Eu falava-lhe de Dylan, a meio dos anos sessenta. Ele referia Godard e Truffaut. Tornámo-nos Godard e Truffaut. Brisbane não fazia a menor ideia disso mas havia dois miúdos de dezanove anos ao volante de um automóvel que pensavam ser realizadores de cinema franceses”. E, com um single – lado A, "Lee Remick", dedicado à actriz de Days Of Wine And Roses; lado B, "Karen", exercício de luxúria juvenil sobre as bibliotecárias da universidade de Queensland – e quase nenhum dinheiro no bolso, Robert Forster e Grant McLennan, em 1979, voaram da Austrália para Londres. Não conheciam ninguém e não tinham um único número de telefone útil. Com pernas demasiado curtas para andar, o plano de internacionalização-relâmpago dos Go-Betweens, naturalmente, teve de ficar entre parêntesis. Obrigado a aceitar emprego no arquivo de radiologia do St. Mary’s Hospital, Forster descobriu, por acaso, uma radiografia ao joelho do realizador de cinema, Nicolas Roeg. No último dia em que ali trabalhou, escondeu-a no sobretudo e, qual fetiche, levou-a. Como, agora, conta em Grant & I: Inside And Outside The Go-Betweens, “Foi o mais perto que alguma vez chegámos da indústria cinematográfica britânica”



Não desistiram, porém: já a banda tinha publicado os seis álbuns da primeira metade da carreira, Forster (durante uma tournée com Lloyd Cole com quem, em Lisboa, jogou golf) desafiou McLennan para a escrita do argumento de um filme de gangsters. Na pior altura: “Tarantino tinha aparecido e feito explodir o género – os diálogos dele cantavam”. Nas 350 páginas de Grant & I também cinematograficamente se canta (está dividido em “Reel One” e “Reel Two”) a história pública e privada dos Go-Betweens: a calorosa rivalidade entre Robert e Grant; o desmedido amor pelas canções; a extravagância (e posterior domesticação) de um e o progressivo afundamento na depressão do outro; o permanente nomadismo de editora em editora, na busca das condições ideais – ou apenas aceitáveis – para o merecido reconhecimento da sua música que, fora de um circuito de fidelíssimos fãs, nunca chegaria; a separação, o reencontro e a morte de McLennan. Algures para o final, Forster escreve: “Os Go-Betweens eram uma coisa rara, um ovo de Fabergé, e como tal deviam ser tratados”. Recordo-me de uma vez lhes ter chamado “os Smiths em melhor”.

26 March 2018

LIMPAR O PÓ AOS ARQUIVOS (XLV)

(com a indispensável colaboração do R & R)

(clicar na imagem para ampliar)

... ou mais outro caso em que a avaliação foi parvamente precipitada ("haven't I been a fool?")...



11 May 2016

HERDEIROS 


Brisbane, Queensland, Austrália. Primeiro, dois rapazes (guitarras e baixo) e, mais tarde, uma rapariga (bateria). Um dos rapazes tem como apelido Forster. De que banda se trata? Quem respondeu The Go-Betweens errou. Mas merece, pelo menos, um prémio de consolação por ter andado tão perto que até assusta. A miúda (miúda mesmo, as idades do trio oscilam entre 17 e 18 anos) não é Lindy Morrison mas Riley Jones e entrou para a banda após um mês de aulas de bateria. Um dos moços não responde por Grant McLennan mas por James Harrison e o outro dá pelo nome de Louis Forster. E é aqui que a muito objectiva proximidade entre os Goon Sax e os Go-Betweens se verifica: Louis é filho de Robert, metade da dupla Forster/McLennan que, entre 1977 e 2000 (quando a banda, definitivamente, se dissolveu, após a morte de Grant), criou o formidável reportório do grupo que, há sete anos, viu o seu estatuto de lenda local confirmado com a atribuição do seu nome a uma nova ponte sobre o rio Brisbane


A afinidade estética, essa, por muito subjectiva que seja, é, porém, impossível de negar: não apenas a constituição dos Goon Sax mimetiza a formação inicial dos Go-Betweens como, escutado Up To Anything – álbum de estreia –, os traços “de família” tornam-se indesmentivelmente óbvios. Mas, de uma forma de tal modo ingenuamente adolescente na transposição das marcas do passado para o presente, que nunca obriga a pensar em manhoso trabalho de copistas mas apenas numa naturalíssima – e inevitável – condição de herdeiros. Sim, "Sweaty Hands", "Boyfriend" e "Sometimes, Accidentally" (“No, I don't care about much but one of the things I care about is you, sometimes I think about things and sometimes I accidentally think about you”) tresandam a Forster/McLennan mas, alguma vez eles, os originais, o teriam feito com tal candura? É verdade, verdadinha que "Home Haircuts" poderia ter saído intacta de Before Hollywood mas quem escreveria “I go to the barber to get shorn and I leave feeling empty and forlorn, I show them a picture of Roger McGuinn, Edwyn Collins, John Lennon, David Byrne, it seems I just can't win”?... Pensando melhor, talvez a ilustre ascendência que, no início, não era assim tão mais velha, daria tudo para que o álbum de estreia (Send Me a Lullaby, 1981), por muito promissor que fosse, pudesse ter estado à altura de Up To Anything

03 September 2015

MÁRMORE 


Robert Forster (o da dupla Forster/McLennan, praticamente sinónima de Go-Betweens, não o outro que encarnou Max Cherry, em Jackie Brown, de Tarantino), há seis anos, reuniu em livro – The 10 Rules Of Rock And Roll – os textos de crítica musical que, entre 2005 e 2009, publicou na revista australiana “The Monthly”, revisto e aumentado dois anos mais tarde para incluir os “collected music writings” até 2011. Antes disso, em matéria de escrita, apenas se lhe conhecia uma "review" de Under The Red Sky, de Bob Dylan (1990), na revista alemã, “Spex”, e uma contribuição de 1987, para o fanzine de Manchester, “Debris”, na qual, ocupando-se dos cuidados a ter com o cabelo, recomendava que não se abusasse do champô. Os dez mandamentos do rock and roll, entretanto, estipulavam, por exemplo, que “a penúltima canção de todos os álbuns é a mais fraca”; “nunca prestar atenção a um artista que descreve a sua obra como ‘dark’”; “depois dos primeiros 20 minutos, nenhuma banda faz nada de novo em palco”; “as bandas mais tatuadas são as que têm as piores canções”; e, para o que agora especialmente interessa, “os membros das grandes bandas não gravam álbuns a solo”.



As tábuas da lei serão as tábuas da lei mas há, aqui, claramente, um problema: ou esta última regra é apenas válida durante a existência da banda ou, para falar apenas dos seus mui amados Velvet Underground, as discografias de John Cale e Lou Reed, obrigariam os Velvets a descer do pedestal. E, de modo pelo menos tão desgraçado, os preciosos Go-Betweens ver-se-iam miseravelmente desqualificados pelos quatro álbuns de Grant McLennan e os seis (com o actual Songs To Play) de Forster. O que seria, evidentemente, injustíssimo para todos. Esperemos, pois, por uma terceira edição que repense as revelações no Monte Sinai da pop e digamos que o sucessor de The Evangelist (2008) – gravado um par de anos após a morte de McLennan, em memória de uma ferida nunca fechada: “Quando Grant e eu nos encontrámos, não o sabíamos ainda mas tínhamo-nos descoberto, um era a imagem no espelho do outro” – terá tardado mas não só nada diminui o brilho da banda primordial como, nas dez canções talhadas em mármore, reaviva o segredo dos Go-Betweens: “Please don’t tell me, let me dream and guess”.

10 May 2008

A PROPÓSITO DE GODARD E TRUFFAUT



Greatest ending ever! Jean-Luc Godard's Breathless (À bout de Souffle). Godard's first feature-length film is one of the inaugural and best-known films of the French New Wave. He wrote it with fellow New Wave director, François Truffaut, and released it the year after Truffaut's The 400 Blows and Alain Resnais's Hiroshima, Mon Amour. Together the three films brought international acclaim to the New Wave.

Michel's death scene is one of the most iconic scenes in the film, but the film's final lines of dialogue are the source of some confusion for English-speaking audiences. In some translations, it is unclear whether Michel is condemning Patricia, or alternatively condemning the world in general.

As Patricia and Detective Vital catch up with the dying Michel, there is the following exchange, according to the transcript published in Dudley Andrew's book on the film:

MICHEL: C'est vraiment dégueulasse.
PATRICIA: Qu'est ce qu'il a dit?
VITAL: Il a dit que vous êtes "une dégueulasse".
PATRICIA: Qu'est ce que c'est "dégueulasse"?

In his book, Andrew translates the dialogue thus:

MICHEL: That's really disgusting.
PATRICIA: What did he say?
VITAL: He said, "You are really a bitch."
PATRICIA: What is "dégueulasse" [bitch]?



Andrew's translation obscures the point of the original French, which is that policeman Vital misquotes Michel. This could either be bad intention or due to a mishearing on part of Vital. A mishearing could stem in part from the similarity between Michel's first word, "C'est" ("It is/That is") and the word "T'es" ("You are"), which are hard to distinguish audibly. In this case, it could also stem from the ambiguity of the word "dégueulasse", which can either be an adjective ("disgusting"), or a noun ("disgusting thing", rendered as "bitch" by Andrew); however, even "vous êtes vraiment dégueulasse" ("you are really disgusting") would have had the same meaning, without any change of adjective and noun. By hearing "T'es", Vital may understand Michel's line as a condemnation of Patricia, but if, in fact, Michel says "C'est", he could be referring to his situation in general, and not specifically blaming Patricia.

Other translations have made Vital's misquotation more obvious. In the English captioning of the 2001 Fox-Lorber Region One DVD, "dégueulasse" is translated as "scumbag", producing the following dialogue:

MICHEL: It's a real scumbag.
PATRICIA: What did he say?
VITAL: He said, "You're a real scumbag".
PATRICIA: What's a scumbag?

The 2007 Criterion Collection Region One DVD uses a less literal translation that renders the French into a familiar American colloquialism:

MICHEL: Makes me want to puke.
PATRICIA: What did he say?
VITAL: He said you make him want to puke.
PATRICIA: What's that mean, "puke"?

(comentário de OzuKardozi no Youtube)

(2008)

09 May 2008

GODARD E TRUFFAUT



Robert Forster - The Evangelist

Quando, a 6 de Maio de 2006, numa tarde de sábado, Grant McLennan, aos 48 anos, morreu vítima de um ataque cardíaco fulminante, o seu amigo e companheiro de três décadas nos Go-Betweens, Robert Forster, escreveu uma emocionada “remembrance” na qual contava como ambos se haviam conhecido no departamento de teatro da universidade de Queensland. Grant vivia e respirava cinema, Robert estudava literatura inglesa mas tocava já numa banda que respondia alternativamente pelo nome de The Mosquitoes ou The Godots: “Quando Grant e eu nos encontrámos, não o sabíamos ainda mas tínhamo-nos descoberto, um era a imagem no espelho do outro. Ele falava-me sobre a ‘nouvelle vague’ francesa e o ‘film noir’. Eu falava-lhe sobre a grandeza dos Velvet Underground. Ele falava-me acerca da teoria dos autores e o génio de Preston Sturges. Eu falava-lhe acerca de Dylan, a meio dos anos sessenta. Ele referia Godard e Truffaut. Nós tornámo-nos Godard e Truffaut. Na altura, Brisbane não fazia a menor ideia disso mas havia dois miúdos de dezanove anos ao volante de um automóvel que pensavam ser realizadores de cinema franceses”.


Robert Forster ensinou Grant McLennan a tocar guitarra-baixo e apercebeu-se que, de estudante de cinema capaz de tocar baixo, ele se havia convertido em músico e compositor. A primeira canção de ambos chamou-se “Big Sleeping City” e os Go-Betweens, em Janeiro de 1978, acabavam de nascer. Nunca chegaram a concretizar a segunda parte da sua conspiração privada – realizar um filme e escrever um livro, The Death Of Modern America: Dylan 1964-66 – mas a preciosa discografia da banda que (com os Triffids) criou as mais sublimes canções da pop australiana bastou e transbordou. The Evangelist, assinado por Robert Forster, é, então, de facto, o último álbum dos Go-Betweens. Forster bem poderá dizer que apenas meia dúzia de linhas e dois refrões foram herdados de McLennan mas a memória dele (e de ambos e daquilo que aos dois assombrava) está lá, intacta. Por todo o lado: no momento em que “Did She Overtake You”, partindo dos Velvets, reinventa os Go-Betweens; nas duas subtis variantes-Dylan de “Don’t Touch Anything” e “Let Your Light In, Babe”; na frase final de “It Ain’t Easy”, “I write these words to his tune that he wrote on a full moon, and a river ran and a train ran and a dream ran through everything he did”; no “segredo” que, em “From Ghost Town”, aperta um nó na garganta. Agora, sim, os Go-Betweens repousam em paz. (2008)

03 January 2008

MÚSICA 2007 - VI (reedições)



The Triffids – In The Pines e Calenture
Pentangle - The Time Has Come
Ennio Morricone - Morricone In The Brain
Young Marble Giants - Colossal Youth & Collected Works
GNR - Independança
Robert Forster/Grant McLennan - Intermission: the best of the solo recordings 1990-1997
Laurie Anderson – Big Science
Leonard Cohen – The Songs Of Leonard Cohen, Songs From A Room e Songs Of Love And Hate
Joy Division – Unknown Pleasures, Closer e Still
Caetano Veloso – Caetano Veloso (Tropicália), Caetano Veloso, Caetano Veloso (A Little More Blue) e Araçá Azul
Karen Dalton – In My Own Time

16 September 2007

IN-BETWEENS



Robert Forster/Grant McLennan - Intermission: the best of the solo recordings 1990-1997

Não sei. Não vi. Não ouvi. Não estive lá. Mas seria capaz de jurar que, entre Robert Forster e Grant McLennan – quando juntos nos Go-Betweens – existia uma espécie de pacto tácito de controlo mútuo de qualidade que, provavelmente, funcionaria quase sem necessidade de palavras para que cada um, em cada momento, fosse capaz de se aperceber se aquilo de seu que propunha para o reportório da banda merecia, de facto, o selo de aprovação.



É verdade que, em todos os albums (pré-separação em 1989 e pós-reunião em 2000), não era extraordinariamente difícil identificar quais as canções que pertenciam a um e a outro: McLennan era responsável pelas guitarras em gravidade-zero, pelos ganchos das melodias de vapor-de-água, pela melancolia (mal) disfarçada em tons pastel; Forster era todo ele em ângulos, extravagantemente grave, um sedutor “gauche” que parecia querer, à força, moldar o idioma pop à sua escrita que pedia mais teatralidade e narrativa do que poder de engate instantâneo.



Mas, no grupo, Robert tendia para Grant e Grant tendia para Robert, de uma forma tal que, nos Go-Betweens mais do que, talvez, em qualquer outra alquimia criativa a quatro mãos, se podia dizer com toda a certeza que o todo era definitivamente superior à soma das parcelas. Não que isso (em qualquer das duas encarnações) lhes tenha servido de muito: desde o início até à extinção derradeira – consumada com a morte de McLennan, a 6 de Maio do ano passado –, pareceram ter apenas existido para dar corpo ao conceito de “banda de culto”, vendendo um número de cópias de cada gravação inversamente proporcional à incomensurável devoção que o seu fidelíssimo e reduzido número de fãs lhes devotou.



Intermission é, então, um duplo “best of” dos anos da separação onde, com treze canções em cada disco, as virtudes individuais e as consequências do afastamento resultam perfeitamente nítidas: Watershed (1991), Fireboy (1993), Horsebreaker Star (1994), In Your Bright Ray (1997), de Mc Lennan, e Danger In The Past (1990), Calling From A Country Phone (1993), I Had A New York Girlfriend (1994) e Warm Nights (1996), de Forster, brilhariam intensamente na discografia de muitos outros (e o que, deles, foi agora para aqui filtrado é autênticamente precioso) mas, perante o que herdámos da entidade-maior-Go-Betweens, doeu sempre um pouco pressentir como, submetidas ao “give and take” no interior da banda, em lugar dos oito álbuns individuais, estas canções poderiam ter, afinal, dado origem a outros quatro ou cinco Liberty Belle ou Spring Hill Fair.



Ironia final: muitas vezes qualificado, com Mc Lennan, como “critic’s darlings”, o sobrevivente Forster, entre escrever uma ou duas canções por ano, é, hoje, crítico de música na Austrália. (2007)

11 June 2007

GRANT MCLENNAN (1958-2006)



A (auto)biografia está toda nas vinte e cinco linhas de "Cattle And Cane", de Before Hollywood (1983), o segundo álbum dos Go-Betweens. Começa com "I recall a schoolboy coming home through fields of cane, to a house of tin and timber and, in the sky, a rain of falling cinders". Depois, surge "a boy in bigger pants, like everyone just waiting for a chance, his father's watch he left it in the shower". No final, "a bigger brighter world, a world of books and silent times in thought, and then the railroad, the railroad takes him home, through fields of cattle, through fields of cane". E sempre "the waste, memory wastes - further, longer, higher, older". Grant McLennan, com Robert Forster, era metade dos Go-Betweens, a banda que, nos anos 80, com os Triffids e Nick Cave, deu notícias de uma pop superiormente poética e letrada na Austrália. Gostava de Cormac McCarthy, Raymond Carver, Dylan e Springsteen. Morreu, enquanto dormia, no passado sábado, em Brisbane. Num dos enormes álbuns do século passado — Liberty Belle And The Black Diamond Express (1985) —, escreveu uma das mais belas estrofes da poesia pop: "When the rain hit the roof, with the sound of a finished kiss, like a lip lifted from a lip, I took the wrong road down". A memória não se esvai mas dói. (Maio de 2006)