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27 October 2024

 
(sequência daqui) JL - Na sua video-participação nas Norton Lectures - Spending The War Without You: Virtual Backgrounds, 2020), a certo ponto, faz questão de, mais uma vez nos deixar o sangue gelado ao mostrar-nos de modo muito caricaturalmente aterrador a aproximação do perigo: “Nos meus piores pesadelos que podem ser muito gráficos, a iCloud desfaz-se e toda a informação precipita-se sobre nós. Nas noites mais difíceis, vejo Trump, os filhos e todos os seus amigos como Noé e a família, prestes a embarcar na nova Arca, um imenso navio de cruzeiros chamado Princess Ivanka. No último minuto, aparece Mark Zuckerberg na sua prancha de surf eléctrica, mesmo a tempo de iniciar o novo emprego dirigindo, organizando e personalizando todas as experiências no caminho para nenhures”. O que contém a sua Arca? 

    LA - The Ark aborda a questão da sobrevivência - o modo como nós, enquanto cultura, lidamos com as crises e o que significa sobreviver num mundo tecnológico. Não apenas a sobrevivência física mas também cultural e emocional. Usamos muita tecnologia para contar essa história. Mas a tecnologia nunca foi o ponto essencial. Importante é o modo como a usamos para reflectir a experiência humana, para observar como ela transforma as nossas relações e a forma como olhamos para o mundo. A arca é um símbolo poderoso de preservação, um veículo que transporta tudo quanto é importante para um futuro incerto. Jogámos com aquela ideia: o que devemos salvar e o que deveremos deixar para trás? Trata-se de criar uma experiência viva e imersiva. Não era apenas uma performance mas uma forma de convidar as pessoas para este mundo que construimos no qual elas poderão reflectir sobre as suas ideias de sobrevivência e que significado poderá isso ter. É, afinal, tudo uma consequência do modo como nos movemos através do tempo. Há quem pense que, no prazo de 4 anos, será já demasiado tarde para sobrevivermos ao desastre climático. A outra metade das pessoas nos EUA acha que é indispensável tornarmos a América grande outra vez. Como no passado. Mas em que ficção do passado estarão a pensar? É muito diferente pensar no passado quando se tem 77 anos ou quando se tem 17. 

    JL - Conhece, por acaso, Uma História do Mundo em Dez Capítulos e Meio, do escritor inglês, Julian Barnes, cujo primeiro capítulo conta a história da arca de Noé mas apenas na última linha ficamos a saber quem é o narrador? 

    LA - A sério? Sempre as dúvidas, sempre as perguntas... Vou ter de investigar.

23 July 2021

 
(sequência daqui) O jogo de máscaras e enganos transportar-se-ia para a Rolling Thunder Revue que, no Verão de 1975, na companhia de amigos vários – Roger McGuinn, Joan Baez, Joni Mitchell, Scarlet Rivera, Sam Shepard, Ramblin’ Jack Elliot, Mick Ronson, Ronee Blakley, Allen Ginsberg, T-Bone Burnett –, qual trupe de saltimbancos, se faria à estrada, e muito especialmente, no pseudo-documentário que, a partir daí, Martin Scorsese realizaria, repleto de falsas personagens e incidentes inventados que levariam Sam Shepard a interrogar-se: “Que estranho mundo assombrado é este que ele cria em palco, nos discos, nos filmes, em tudo aquilo que toca? Quem, afinal, é esta personagem?” Em I’m Not There, o realizador Todd Haynes responderia “Não é uma, são seis” e, em jeito de síntese, coloca na boca da última, Billy The Kid, duas afirmações que poderiam pôr fim a todas as dúvidas: “Aqui sou invisível, sou eu mesmo” e “Posso mudar durante o espaço de um dia. Quando acordo, sou uma pessoa, quando adormeço, tenho a certeza que sou já outra”.
O futuro confirmaria tudo: o Dylan que, no início, se moldara em torno da lenda militante de Woody Guthrie, a partir de 2015, durante dois álbuns simples e um triplo, deslocaria a reverência para o universo de Frank Sinatra e diversos outros "crooners" coevos; nos cerca de 100 programas da XM Radio, “Theme Time Radio Hour”, estruturado em torno de temas como o riso, a Lua, a sorte, o dinheiro, o sangue, a guerra, com intervenções de ouvintes maioritariamente "fake", ministraria um curso avançado de história da música popular; nas canções (em particular, no último álbum, Rough And Rowdy Ways), na autobiografia e mesmo no discurso de aceitação do Prémio Nobel de Literatura, não cessaria de se divertir disseminando, quais ovos de Páscoa, citações e apropriações de textos clássicos e contemporâneos, à espera de caçar quem mordesse o isco. Julian Barnes, concorrente de Bob Dylan na lista de candidatos ao Nobel no ano (2017) em que este o ganhou, muito dylanianamente, afirmou: “Se algum biógrafo me quiser biografar eu terei o poder de deixar pistas falsas”. Ao longo da vida inteira, Bob Dylan não tem feito outra coisa senão lançar-nos iscos envenenados. Mas, acerca de um ponto não deveremos nunca mais enganar-nos: a 24 de Maio, comemorou-se o 80º aniversário de Robert Allen Zimmerman. No próximo 2 de Agosto, celebram-se os 59 anos de Bob Dylan, nesse dia de 1962 registado numa conservatória de Nova Iorque. Só faltava que, na inauguração do Bob Dylan Center, em Tulsa, Dylan comparecesse à porta apenas para segredar ao ouvido dos visitantes “I’m not there”.

02 October 2016

27 September 2016

DIABOLUS


Na Idade Média e início do Renascimento, a igreja condenava severamente a utilização, na música sacra, do modus lascivus – o modo grego jónico, aliás, a banal escala de Dó maior – que, por ser vulgar na música popular profana, era inevitavelmente associado a abomináveis comportamentos licenciosos e imorais. Também particularmente mal visto era o trítono – o intervalo de 4ª aumentada –, excomungado na qualidade de diabolus in musica. Uma severa tradição de crítica musical divinamente inspirada que, embora bastantes séculos depois, tornou quase previsível a imprecação contra o rock, de Joseph Ratzinger (futuro papa Bento XVI, então prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, sucessora directa do Tribunal da Santa Inquisição), em 2001, classificando-o como “expressão de paixões elementares que (...) assumiu carácter de culto, ou melhor de contra-culto que se opõe ao culto cristão” e acusando-o de “querer falsamente libertar o homem por um fenómeno de massa, perturbando os espíritos pelo ritmo, o barulho e os efeitos luminosos”

Dmitri Shostakovich: Symphony No.10 - Valery Gergiev dir. Orquestra do Teatro Mariinsky, 2013

Um pouco mais surpreendente (mas não demasiado) é que surgisse enquanto eco simétrico da feroz invectiva que, apenas meio século antes, Andrei Zhdanov, oficiante da igreja do realismo-socialista soviético, dirigira contra os compositores “formalistas” (Shostakovitch, Prokofiev, Khatchaturian...), apontados como responsáveis pelo pecado de “substituirem uma música natural e formosamente humana por uma música falsa, vulgar e com frequência, simplesmente patológica” através da qual “começamos a trespassar os limites do racional, a passar para lá do limite não só das emoções humanas, mas também da razão humana normal (...) Não é certo, não é justo que o som dos pratos e tambores deveria constituir a excepção e não a regra na composição musical? (...) Deixemos que esses criadores de música inacessível fiquem isolados das grandes massas do povo. Ninguém necessita da música incompreensível (...) Exijamos que os nossos compositores nos dêem música humana normal!” Em O Ruído do Tempo, de Julian Barnes (2016), a arrepiante história de génio e auto-humilhação de Dmitri Shostakovich perante a ditadura estética e política do estalinismo é uma tela sobre a qual se projectam as imagens de uma época em que para ser declarado “inimigo do povo” – e sofrer as terríveis consequências – bastava que o grande líder e supremo crítico, em dia não, declarasse que o que ouvira não era música mas “chinfrim”. O diabolus in musica continuava teimosamente vivo.

17 September 2016

The War Symphonies | Shostakovich Against Stalin

(acompanhar com a leitura de O Ruído do Tempo de Julian Barnes)

11 August 2015

"The 200-year-old painting that puts Europe's fear of migrants to shame"

Théodore Géricault - Le Radeau de la Méduse (1818/1819)

"All that straining - to what end? There is no formal response to the painting's main surge, just as there is no response to most human feelings. Not merely hope, but any burdensome yearning: ambition, hatred, love (especially love) - how rarely do our emotions meet the object they seem to deserve? How hopelessly we signal; how dark the sky; how big the waves. We are all lost at sea, washed between hope and despair, hailing something that may never come to rescue us" (Julian Barnes, A History of the World in 10½ Chapters)

15 March 2014

Como uma ficção baseada noutra ficção (embora dispondo de adereços prontinhos a usar) continua a ser capaz de amofinar as gentes que actuam na indústria da superstição - mas há versões mais interessantes:


Leitura de apoio recomendada (1º capítulo):

15 June 2011

MAS QUE MAL TE FIZ EU, LEOPARDO?



1 - Existe um livro que lerias e relerias várias vezes?

Existe: leio e releio, incansavelmente, a Bíblia. Em rigor, não é “um livro” mas uma colecção de 66 livros. Prefiro, claramente, o Antigo Testamento – repleto de mais sangue, violência, traição, inveja, pornografia, ficção-científica, estupro, incesto, irracionalidade e ódio do que qualquer um dos seus equivalentes cinematográficos realizados em Hollywood ou no San Fernando Valley – ao Novo, excessivamente "hippie avant la lettre" para o meu gosto (embora também tenha dois ou três belos nacos para ferrar o dente). Mas, aqui, é necessário dizer que a melhor versão da “parte que interessa” do Novo Testamento se descobre em A Vida de Brian. Sempre fui de opinião que uma correcta e massiva divulgação da Bíblia contribuiria de forma decisiva para a diminuição do número de crentes.

2 - Existe algum livro que começaste a ler, paraste, recomeçaste, tentaste e tentaste e nunca conseguiste ler até ao fim?

O cliché do costume: Ulysses, de James Joyce.

3 - Se escolhesses um livro para ler para o resto da tua vida, qual seria ele?

A Vida e Opiniões de Tristram Shandy, de Laurence Sterne. Lido pela primeira vez numa viagem de avião de ida e volta Lisboa-Nova Iorque-Salt-Lake City. A ficção-Mormon pareceu-me encaixar-se de modo assombrosamente perfeito no remoinho narrativo do Shandy. Mil vezes que se lhe pegue, nunca é o mesmo livro.

4 - Que livro gostarias de ter lido mas que, por algum motivo, nunca leste?

A Divina Comédia, Dante. Assustou-me de morte ter compreendido que, para o descodificar integralmente, precisaria de um trabalho prévio de, para aí, uma vida.

5- Que livro leste cuja 'cena final' jamais conseguiste esquecer?

O Passageiro Clandestino, primeiro capítulo de A História do Mundo Em 10 Capítulos e Meio, de Julian Barnes.

6- Tinhas o hábito de ler quando eras criança? Se lias, qual era o tipo de leitura?

Sim. Júlio Verne. Tintim. Asterix. Mark Twain. Blake & Mortimer. Lucky Luke. As biografias de Geronimo, Carzy Horse e Buffalo Bill. Kipling. Robinson Crusoe. A Ilha do Tesouro. Walter Scott. Os Cinco. Jack London. Os Tarzans, do Rice Burroughs. Mas, aos quinze, já lhe estava a dar na Filosofia na Alcova, do Sade.

7. Qual o livro que achaste chato mas ainda assim leste até ao fim? Porquê?

Não nasci para sofrer. Já larguei vários a meio.

8. Indica alguns dos teus livros preferidos.

Não é pergunta que se faça. Mas, reduzindo a coisa ao osso, é mais ou menos isto: Poesias, Rimbaud; Français, Encore Un Éffort Si Vous Voulez Être Républicains (o “miolo” filosofante da Alcova, do Sade); Alberto Caeiro; Nietzsche, retirado, às cegas, da prateleira; os já falados Sterne e Bíblia; Obras Completas, de Oscar Wilde; Poesias, de Rumi; A Ilha do Dia Antes, Umberto Eco.

9. Que livro estás a ler neste momento?

Lentissimamente (está quase a fazer um ano), The Inheritance Of Rome/A History Of Europe From 400 to 1000, de Chris Wickham.

10. Indica dez amigos para o Meme Literário:

Não faças aos outros o que não queres que te façam a ti. Não é coisa “bíblica”, é só bom senso convivial.

(2011)

14 November 2010

UM AMERICANO EM LISBOA















Hamilton Leithauser é o género de personagem com quem apetece conversar. Não porque seja instantaneamente simpático e acolhedor: na verdade, não abusa do palavreado – as respostas telegráficas ocorrem com alguma frequência – nem se entrega a extensas explicações e especulações. Mas rapidamente nos apercebemos de que aquele interlocutor não se deixa facilmente acondicionar na embalagem do rocker prototípico, enclausurado no seu pequeno universo de referências e autoreferências e de frívolas lubrificações do ego. Leithauser e, com ele, a música dos Walkmen, possui aquilo que, com algum rigor, se deve designar como substância. Há coisas que não circulam, necessariamente, na cadeia do ADN mas é bem capaz de não se tratar também de um acaso que, sendo ele sobrinho do poeta e romancista Brad Leithauser, a banda tenha em mãos desde 2004, o "work in progress" de um romance colectivo (programado para 800 páginas!), John’s Journey. E que, quando interrogado acerca das suas leituras em curso, Leithauser responda sem pestanejar Arthur And George, de Julian Barnes (vénia), e God Is Not Great, de Christopher Hitchens (vénia, vénia, vénia). Mas o que começo por lhe perguntar – era inevitável, não era? – é qual o motivo real, verdadeiro, profundo, decisivo, para o último álbum dos Walkmen ter como título Lisbon. E ele responde-me “Porque não?...”


Vai ser, então, necessário exercer um pouco de pressão. Por isso, em vez do jogo sujo das justificações patrioteiro/geográficas óbvias, atiro-lhe com a suave chantagem pessoal de ter achado francamente encantador terem-se lembrado de baptizar o disco com o meu nome de família. E faço charme literário revelando-lhe que sou o primo lisboeta de Jack London. Já não é a primeira vez que o truque resulta. Hamilton ri-se e desenvolve: “Não que estivéssemos sempre a pensar na cidade enquanto escrevíamos as canções. É, na verdade, mais uma memória. Não sei bem por que motivo mas, quando esse título foi sugerido, todos concordámos com ele. Não posso dizer que Lisboa tenha tido uma influência directa sobre o disco. Mas, tendo estado aí duas vezes – e, ao contrário do que, frequentemente, acontece, não nos limitámos a ficar no hotel e a frequentar os bares: fomos ao castelo, conversámos com pessoas locais, experimentámos restaurantes, admirámos a arquitectura da cidade – durante a fase de concepção do álbum, foi, sem dúvida, uma memória motivadora importante”.



A motivação deve ter sido realmente poderosa: as onze canções que figuram no álbum tiveram de ser cesarianamente extraídas de um total de mais de trinta: “Foi um processo que nos ocupou dois anos até seleccionarmos aquilo que nos pareceu ser um passo em frente que valia a pena ser publicado. E isso acabou por ser um som de rock mais cru e despojado como os do Elvis Presley ou do Johnny Cash para a Sun Records. Quando o conseguimos, sentimos que tínhamos chegado onde, realmente, desejávamos. Toda a vida escutámos esse tipo de música. Mas, sempre que iniciamos o processo de um novo álbum, ensaiamos abordagens diferentes. E, muitas vezes, estamos à espera que as coisas sigam por um caminho e elas acabam por ir por outro completamente inesperado. Claro que nós gostamos da sonoridade que a banda tem e não nos passa pela cabeça dizer que, agora, soamos como o Elvis ou o Johnny Cash da Sun. Acho que esse esforço de contenção e de procurar ser mais sucinto não só foi divertido como nos fez muito bem”.



Na página dos Walkmen, no MySpace, a música da banda surge descrita como “melodramatic popular song”. Pergunto a Leithauser se está disposto a dar a sua bênção a essa definição: “Claro que não. Tínhamos que escolher uma opção e, evidentemente, decidimo-nos pela mais estúpida”. Naturalmente, não lhe peço a caracterização oficialmente aceite pelo grupo (essa pergunta deveria ser universalmente proibida, apenas me havia intrigado a que, aparentemente, eles próprios sugeriam) mas ouso pisar terreno mais movediço: será que não existe uma comparação que pode ser feita entre os percursos dos National e dos Walkmen, bandas novaiorquinas da mesma geração e com universos estéticos e temáticos afins, que, num caso (o dos National), extravasou já a mera condição de culto indie e, no outro, parece quase fazer gala de não o abandonar? Hamilton Leithauser não dá sinais de lhe ter tocado em nenhum ponto frágil e responde tranquilamente: “Há já alguns anos, fizemos diversos concertos juntos, conhecemo-nos, sempre nos demos bem, e existe alguma espécie de afinidade e de propósito comum às duas bandas. Se eles estão a ganhar dinheiro, fico muito feliz por isso. Mas também me sinto satisfeito com a nossa situação: penso que os nossos últimos dois álbuns foram os melhores que já gravámos e estamos prontos para gravar outros ainda melhores”. Fechando o círculo, peço-lhe para imaginar como será o momento em que, seguramente, virão tocar Lisbon em Lisboa: “Está a perguntar-me se isso poderá desencadear alguma centelha?...” Reformulo: não receia que o público local possa alimentar demasiadas expectativas relativamente a algum particular efeito mágico devido à suposta influência lisboeta das canções? “Não sei, não faço a mais pequena ideia de como irão reagir. Mas, se calhar, iremos ter de pensar em alguma coisa mais especial...”

(The Walkmen, hoje, em Lisboa, no Coliseu)

(2010)