UM POUCO MAIS DE "RELATIVISMO CULTURAL", ENTÃO...
I - Ryuichi Sakamoto é japonês, escreve e executa música para o cinema, grava álbuns de pop híbrida e heterogénea, gosta de Debussy, dos Beatles, Beethoven e João Gilberto. Verdadeiramente interessante é a espontaneidade desse cosmopolitismo musical: "Fundir ou combinar idiomas musicais diferentes não é um problema. Refiro-me a eles simplesmente porque me agradam. Não é um objectivo, um fim em si mesmo. Fechar-me num único género, a longo prazo, deveria ser bastante aborrecido... Não era capaz. Gosto de vários estilos porque gosto da música em geral e ela comporta diversos, da música antiga à contemporânea, da África ao Japão, através do tempo e do espaço".
Curiosamente, foi também ele que, há anos, observou, distanciando-se do lugar comum da música como "linguagem universal": "Se compararmos as escalas e modos ocidentais com os árabes, é inevitável verificarmos que estes últimos são muito mais ricos e complexos. Pelo que é perfeitamente natural que um público árabe possa achar um concerto de Mozart absolutamente banal e desinteressante". Devemos, então, lamber as feridas de um complexo de inferioridade cultural ou considerar essa atitude como uma incompreensível manifestação de etnocentrismo, desta vez, em sentido inverso ao habitual?
II - É virtualmente impossível demonstrar a superioridade da música de Beethoven sobre a de Quim Barreiros ou da de Miles Davis sobre as Spice Girls. Pode afirmar-se, decerto, que uma possui um grau muito superior de complexidade em relação à outra mas, nesse caso, também não seria difícil provar que, do ponto de vista harmónico, a construção de uma peça de Mozart assenta sobre um leque muito mais elevado de possibilidades do que outra do Renascimento ou que a ambiguidade tonal de Wagner, Debussy ou Alban Berg nos fazem olhar para a Flauta Mágica como um mero exercício cromático a preto e branco.
Sob uma perspectiva estritamente técnico-musical, uma canção popular medieval — que, sem dúvida, tem o seu lugar cativo em quaisquer jornadas de música antiga — ou uma jig tradicional irlandesa são em tudo comparáveis (e, se calhar, em alguns casos, até "inferiores"...) a qualquer êxito de Ágata ou Emanuel cujos textos, aliás, estão rigorosamente ao mesmo nível dos dos libretos de 90% das óperas românticas — puro material de telenovela venezuelana — com entrada garantida nos respeitáveis salões do S. Carlos.
E um "canto de aboio" da Beira Alta, religiosamente recolhido e preservado por Michel Giacometti, não será francamente menos "complexo" do que o "Maravilhoso Coração", de Marco Paulo, que, já agora, deu bastante mais trabalho a compôr do que os 4'33" de John Cage? Também aqui, naturalmente, estamos em presença de tribos (culturais, sociais, artísticas) e dos seus gostos e tiques que se excluem e hostilizam em nome de valores que, nenhuma delas, se chamada a defendê-los, seria capaz de o fazer com aquilo a que chamaríamos "rigor científico".
Mas quem conseguirá convencer um devoto de Verdi ou de Puccini que a "Mãe Solteira" de Ágata comunga exactamente do mesmo tipo de emoções que o fazem a ele levitar? Qual o critério, então? Não me ocorre nada de mais profundo ou sofisticado do que o puro gosto individual, inevitavelmente subjectivo e culturalmente condicionado. (2007)