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03 January 2025

EM LOUVOR DO GATO 

"Quando este trabalho começou, não me apercebi que ele já tinha começado", diz Amélia Muge com a maior naturalidade deste mundo, a propósito de Um Gato É Um Gato, o livro/disco que acaba de publicar. Mas, se lhe oferecermos algum conforto contextual, talvez se entenda melhor o que ela pretende dizer: nos 30 anos entre Múgica (1992) e Amélias (2022) - duas variações sobre o proprio nome -, acham-se cuidadosamente arrumados 10 álbuns de originais. Aos quais poderiam acrescentar-se múltiplas colaborações com tão preciosa gente como José Mário Branco, Camané, Gaiteiros de Lisboa, Michales Loukovikas, Cristina Branco, as vozes búlgaras do Pirin Folk Ensemble, Camerata Meiga e vários outros. O que importa, porém, é aquela, dir-se-ia, matematicamente planeada relação 30anos/10 discos. Tanto assim que ela mesma pareceu acreditar nessa espécie de número de ouro: "Quando acabei o Amélias, disse 'Não faço mais disco nenhum!' e essa era, realmente, a minha intenção". (daqui; segue para aqui)

"Deusa" (H. Correia)

10 April 2024

"Mão Na Mão"
 
(sequência daqui) Do mesmo lado da barricada, Ana Lua Caiano, reconhece a afinidade com intrépidos profanadores da sacrossanta tradição como os já vetustos Gaiteiros de Lisboa e sua contemporânea descendência, em cruzamento de genes com os Deolinda, os bravíssimos Cara de Espelho: "A articulação de vozes e instrumentos dos Gaiteiros que, às vezes, chega a apoximar-se do rap, é extraordinária e os Cara de Espelho são um projecto muito entusiasmante que, de alguma forma acaba por nos inspirar também". Mesmo correndo o risco de, antes de desfrutar plenamente do presente, se pretender enxergar ansiosamente o futuro, é praticamente invevitável perguntar a Ana Lua se faz alguma ideia do horizonte para onde a música que faz se encaminhará ou se se tratará apenas de um muito natural desdobramento do que até aqui chegou. Aguardemos, então: "Como nunca parei de compor diariamente, será necessariamente um desdobramento. Haverá certamente diferenças mas que só deverão decorrer de um processo natural, mas não muito racional - quando componho não consigo ser muito analítica. Mas se, porventura, ensaiasse outro tipo de estratégias, isso nunca poderia ser nada forçado".

09 February 2024

 
(sequência daqui) Se Gaiteiros de Lisboa, Deolinda ou Naifa "foram laboratórios muito importantes, chegámos aqui com a mochila bem carregada" para a construção do álbum, passo a passo, peça a peça, houve, inevitavelmente, que ajustar hábitos e métodos, procurando pontos de equilíbrio entre ditadura sanguinária e democracia radical. "Nos Gaiteiros mando eu, aqui, não mando nada. Limitei-me a entregar as minhas coisas que, depois, foram escolhidas por eles. Há uma confiança artística entre nós", confessa Carlos Guerreiro, detalhando a seguir os mistérios ocultos da composição: "Nos Gaiteiros, eu não faço canções. Na verdade, não sei o que é que faço. Tentei encarar aquilo como canções e não conseguia. De facto, são mais... exercícios sonoro-musicais do que propriamente canções. As únicas canções foram aquelas que o José Manuel David compôs sobre letras da Amélia Muge. É o que mais se assemelha a canções". E, recuando muito até ao lugar das origens, "Começámos por divinizar a música tradicional. O Michel Giacometti era um deus, era todo um universo, um manancial a descobrir, era a minha música. Ouvi aquilo tudo em pescadinha, sabia tudo de cor. Chegávamos a reproduzir as imperfeições da recolha. Foi um processo que acabou por atingir um impasse. Quando chegou a altura dos Gaiteiros, eu já tinha perdido o respeitinho pela música portuguesa mas, ao mesmo tempo, sentia-me mais rico porque aquilo tinha-se ido transformando dentro de mim. A consequência disso foi ter ganhado uma grande liberdade e ter começado a sentir a necessidade de criar sons. E isso passaram a ser os meus instrumentos. Depois de samplados, passei a tê-los num teclado". Se, algures no Big Bang que desencadeou todo este processo, se encontrava presente José Mário Branco tutelando a gestação dos Gaiteiros, é, agora, altura de escutar Sérgio Godinho que sobre os Cara de Espelho lança publicamenteo seu selo de aprovação: "Coloca-se a fasquia alta, sem medos de falhar, de ser apenas uma vírgula no tempo. E se for, não valerá ela por si mesma, pelo prazer comum de criar algo de perene num momento, de partilhar entre si e entre nós o simples prazer da música, o entusiasmo da música, a cadência, a inventividade, outra forma de energia? Como se cumpre então as expectativas? Precisamente cumprindo. Parece uma redundância, mas é apenas o pôr em prática de uma realidade moderna e já antiga. Ver a nossa cara particular no espelho comum. Missão desde logo bem executada, digo eu. E nisso estou de acordo comigo, como por certo muita gente estará".

05 February 2024

 
(sequência daqui) Uma pequena correcção: dos armários não sairam apenas as guitarras mas, principalmente, aquilo a que, carinhosamente, Carlos Guerreiro chama "os meus trecos". A saber, entidades sonoras do Além que dão pelos nomes de caixofone, turuta, carretofone, cadeireta, canarion, cabeçadecompressorofone, tubarões, sanfonocello, serpentalho e túbaros de Orfeu, saídas da sua mente de "luthier" de Belzebu. Como, sem um pingo de modéstia fingida, ele explica, "O que fez aqui a grande diferença foi a introdução dos meus trecos - só de olhar para eles, ninguém dá nada por aquilo, parecem lixo - em música a sério. Isto é um velho sonho: quando comecei a construir os primeiros instrumentos com os Gaiteiros, na altura, lançámo-nos a fazer as primeiras partes dos concertos da Setima Legião. O Ricardo Camacho adorava aqueles instrumentos e passava a vida a dizer-me 'Sampla isso!' Aquela proposta para mim era um ultrage: nunca na vida, porque eu queria... 'a verdade do destempero'! Acabei por deixar-me convencer e fiz imensos 'samples'. A coisa que me deu mais gozo foi perceber que aquilo, timbricamente, muda um bocado a temperatura das coisas e isso condicionou todo o processo". (segue para aqui)

03 February 2024

 
(sequência daqui) O trio chamado a depor (Carlos, Pedro e Luís), exploradores de longo curso dos atalhos, curvas e contracurvas de géneros, eras e blasfémias várias, recorda como, já antes, haviam dado sinais de que uma convergência de energias poderia vir a acontecer: "Em Novembro de 2013, no S. Jorge, os Gaiteiros e os Delinda já tinham tocado em conjunto num concerto do Misty Fest. Foi uma coisa histórica, aconteceu mesmo uma fusão das nossas linguagens: a troca era perfeita, todas as combinações foram possíveis. Poderia, facilmente, ter-se prolongado numa digressão nacional. Mas essa possibilidade acabaria por ser absurdamente abortada". Porém, desta vez, as forças do bem estavam atentas e, conta Pedro Martins, "A partir do momento em que o Carlos me contactou, disse-lhe que escreveria as canções mas queria participar nessa banda. O Luis também desejava participar, e o Serginho lembrou-se logo da voz da Mitó. Já toda a gente tinha mais ou menos arrumado as botas e, de repente, fomos todos buscar as guitarras aos armários e limpar-lhes o pó". (segue para aqui)

01 February 2024

TRANSFUSÃO DE SANGUE

Título: Cara de Espelho; Personagens: Pedro da Silva Martins (autor e compositor dos Deolinda, mas também para António Zambujo), Carlos Guerreiro (Gaiteiros de Lisboa, José Afonso, Fausto, GAC), Nuno Prata (baixista dos Ornatos Violeta), Luís J. Martins (Deolinda, António Zambujo, Cristina Branco), Sérgio Nascimento (das bandas de Sérgio Godinho e David Fonseca, antes dos Peste & Sida, um dos membros dos Humanos) e Mitó (voz de A Naifa e Señoritas); Sinopse (feita, de um fôlego, por Carlos Guerreiro): "Um dia, ia a passar à porta dos correios da Av de Roma e encontrei o Sérgio Nascimento que já não via há algum tempo. Estivemos a falar e tal, e adeus. À noite, telefona-me e desafia-me para fazermos alguma coisa em conjunto. Uma daquelas conversas que se tem muitas vezes e depois não dão em nada. Não sei se foi ele que sugeriu que falássemos com o Pedro Martins (o Pedro é, como o Zeca Afonso chamava ao Vitorino, "uma vaca parideira"). A partir daí, a coisa fugiu-nos do controlo e ganhou vida pópria". Neste ponto, é indispensável esclarecer que, em causa, está um álbum - Cara de Espelho, também o nome adoptado pelo sexteto - capaz de, logo no primeiro mês do ano, actuar como poderosa transfusão de sangue destinada a fortalecer a assaz anémica música portuguesa dos últimos tempos. (daqui; segue para aqui)

"Dr. Coisinho" (ver também aqui, aqui e aqui)

11 November 2016




De Viva Voz: quarenta mulheres divididas desigualmente por quatro grupos: Cramol, Maria Monda, Segue-me à Capela e Sopa de Pedra. O plano, nascido de um desafio de Amélia Muge, consistirá de “uma viagem musical aos confins do tempo, antecipando o futuro hoje”, assente na sábia concepção que deveria sempre servir de bússola para tal tipo de explorações: “A tradição já não era o que é nem será o que foi e nunca foi o que pensávamos que era”. A matéria-prima: o canto de mulheres e, em particular, as polifonias tradicionais oriundas das Beiras, Entre Douro e Minho, Douro Litoral e Minho, transportadas por vozes chegadas de Oeiras (Cramol), Lisboa (Maria Monda), Coimbra (Segue-me à Capela) e Porto (Sopa de Pedra). 




Nas palavras de Amélia, “são cantos que trazem a sabedoria dos tempos, que encontram sempre um modo de repor continuamente o que de essencial permanece, como característica do humano, cantos despojados que contam apenas com a voz e o corpo de quem os canta. Mas vão buscar a sua riqueza a esse despojamento - prolongam os sons das vozes de origem, das vozes rituais, encomendam cantos aos deuses e aos santos, celebram colheitas, espantam medos nos embalos, apoiam gestos de trabalho, dão mote aos tempos de luto ou de folia, celebrando os amores, a casa e o mundo”. Cruzando a maior experiência do Cramol – desde 1979, apresentou-se em Portugal, Inglaterra, Alemanha, França, Áustria e Malawi e colaborou com a Comuna, Bando, José Mário Branco, Urban Sax, Uxia, Chullage, Danças Ocultas, Camané ou Gaiteiros de Lisboa – com os embalos, encomendações de almas e folias galaico-portuguesas, árabes e judaicas das sete Segue-me à Capela, as mais recentes “sedas suaves e mantas rudes” do trio Maria Monda, e as dez vozes da Sopa de Pedra, cozinhada desde 2012 a partir de uma receita do Bando dos Gambozinos. (Teatro Tivoli, 12 de Novembro, 21.30)

01 May 2014

A TRANSPARÊNCIA DAS FORMIGAS 


Gravado em Londres no final de 1974 mas só publicado em 1975, Coro dos Tribunais foi o primeiro álbum de José Afonso surgido após o 25 de Abril. A última estrofe da canção-título era profética – “Se o criminoso se escondeu, nada de novo aconteceu, a recompensa ao punho que matou, uma fortuna a quem roubou, guarda o teu roubo guarda-o bem, dentro de um papel a lei” – mas, para o que, agora, importa, foi ao tema que o encerra, "A Presença das Formigas", que um grupo de gente dada às músicas tradicionais e muito mais coisas à volta pediu de empréstimo o nome. Assenta-lhes bem não só pela declaração de princípios final do texto (“Liberdade, liberdade, quem disse que era mentira, quero-te mais do que à morte, quero-te mais do que à vida”) como pela surreal passagem secreta que a ela conduz: “A presença das formigas nesta oficina caseira, a regra de três composta às tantas da madrugada, Maria que eu tanto prezo e por modéstia me ama, a longa noite de insónia, às voltas na mesma cama.”.



Porque, logo desde o óptimo disco de estreia, Ciclorama (2011), a matriz da música do grupo era também um pouco essa via de entrada e saída constantes de lugares reconhecíveis para outros menos prováveis, algures entre raízes aprumadas locais e rizomas transnacionais, duas ou três vénias aos cantautores clássicos e várias outras a gente menos facilmente detectável, dos Gaiteiros aos Gentle Giant e Jethro Tull. Pé de Vento, por acaso ou não, editado no 40º aniversário do momento – mais mês, menos mês – em que "A Presença das Formigas", possivelmente, estaria a ser escrita, mantém a banda no mesmo perímetro estético mas, de modo algo inesperado, parece aproximá-la mais das suas fontes do que antes: a circulação das correntes atmosféricas entre Europa do Oeste e Mediterrâneo permanece intensa, os vestígios da proximidade do Norte de África são residuais mas não irrelevantes e o fado não desapareceu do radar. Porém, à transparência, com muito maior nitidez do que em Ciclorama, aparecem claramente recortadas as figuras de Sérgio Godinho e Fausto Bordalo Dias (particularmente este, também produtor do álbum de Afonso) ou, sejamos justos, Fausto Godinho e Sérgio Bordalo Dias. É bonito e correcto saudar os mestres mas, à primeira tentativa, a homenagem era desejavelmente mais implícita.

05 December 2013

DESALINHADOS, SIM



Enquanto a pátria ardia, violentamente dividida entre direita e esquerda, algures pela linha do Estoril, a Banda do Casaco, um colectivo de geometria desvairadamente variável e alimentado a música medieval, folk bretã, tradicional portuguesa, improvisação de raiz jazzística e outros experimentalismos (musicais e poéticos) mais além, iniciava um percurso absolutamente singular: politicamente agnósticos – logo, suspeitos – mas nem por isso menos ávidos de opinar (“aprendizes da política, só na tactica do ‘empocha’, vem a tempestade mítica e a cabeça dá na rocha, mal a gente vem ao mundo, logo a gente vai ao fundo”, em "Natação Obrigatória", tanto cronicava o final da década de 70 como profetizava o futuro) e musicalmente desalinhados da predominante “intervenção”, António Avelar de Pinho (ex-Filarmónica Fraude e autor dos textos) e Nuno Rodrigues (ex-Música Novarum, compositor de todas as músicas “excepto a primeira do primeiro álbum” e, posteriormente, editor e "publisher"), foram o núcleo agregador. Em torno deles, durante nove anos (de 1975 a 1984) e sete álbuns, gravitaram quase seis dezenas de músicos, de Carlos Zíngaro a Helena Afonso, Celso de Carvalho, José Eduardo, Jerry Marotta, António Emiliano ou Né Ladeiras. Agora que a discografia integral é reeditada em duas luxuosas caixas com todas as mordomias acessórias habituais (DVD, raridades, extensos livretes contextualizadores) é o momento ideal para dar a palavra a Nuno Rodrigues e deixá-lo narrar a história.

A Banda do Casaco não vivia, evidentemente, fechada numa bolha mas tinha uma quase alergia ao espírito da sua época – anos 70 pós-25 de Abril e primeira metade de 80 – em que, particularmente na música, era praticamente obrigatório “ser de esquerda” e estar “ao serviço do povo”. Nas entrevistas da altura que surgem no DVD essa hostilidade é evidente. Isso era mesmo uma marca identitária do grupo?
Eu não via aquelas imagens há anos e, quando fui ao arquivo da RTP, fiquei um bocado aflito ao ouvir-me dizer “Nós somos burgueses!” Na altura, nunca o tinha perguntado a ninguém e achei aquele plural um pouco abusivo. Mas havia, de facto, um desalinhamento muito grande. E, quarenta anos depois, eu continuo bastante desalinhado. Olho a democracia com bastante timidez. Não me quero definir como um não-democrata mas tenho grandes reticências. O que há é um “por cima” e um “por baixo”. Quem está em cima sabe que irá estar por baixo e quem está em baixo, sabe que passará a estar em cima. E, depois, há quem esteja nas laterais.
Mas a Banda do Casaco parecia fazer gala desse desalinhamento o que, à época, se tornava, instantaneamente, suspeito...
Parece-me que era verdadeiramente sincero, não foi procurado. O António era também um desalinhado (muitas vezes, até andávamos desalinhados um com o outro e isso foi-se sentindo à medida que os anos iam passando).
A vossa reputação era tão duvidosa que, durante um concerto na Aula Magna, em 1976, em que tocaram vocês, a Brigada Vítor Jara e os Trovante, chegou a circular o boato de que a Banda tinha acabado de chegar de Londres onde teria gravado o hino do MIRN [fugaz partido de extrema-direita fundado por Kaúlza de Arriaga]...
O MIRN era a coisa mais reaccionária que havia. Só soube disso através da Né Ladeiras. Nesse concerto da Aula Magna, ela ainda estava com a Brigada Vítor Jara. Só quando, mais tarde, se juntou a nós é que nos contou essa história. Claro que houve uma provocação da nossa parte: entrámos de casaca justamente para provocar. Só que não estávamos à espera que aquilo estivesse tão escaldante. Tivemos de dizer ao Carlos Barreto para entrar em palco e ir improvisando até ver em que paravam as modas. Começámos a imaginar que íamos ser comidos vivos! A verdade é que eu nunca me vi como um tipo de direita. Tínhamos uma enorme curiosidade por uma grande quantidade de coisas mas essa curiosidade não estava virada para a direita. Parece-me que a Banda, agora, é muito mais consensual do que era na altura.
O que é interessante é que, tanto nessa altura como, em certa medida, ainda agora, existia uma relação muito idêntica em gente de esquerda e de direita com a cultura tradicional: naquela defesa dos valores culturais nacionais, das marcas antigas e “autênticas” que-nos-definem-como-povo... e, apesar de a Banda do Casaco ser muito mais experimental e anarquista, esse apego à música tradicional e às recolhas era exactamente igual ao que fazia ferver o GAC (menos a agenda política e as palavras de ordem)...
Tens noção de que estás a falar do outro grupo contemporâneo mais importante, não tens? Claro que esses nacionalismos e separatismos, hoje, em plena globalização, já não fazem muito sentido. Mas que outras coisas poderíamos nós ouvir? Lembro-me, já noutra fase, do Megalopolis, do Herbert Pagani: “Citoyens, citoyennes!...” e, depois, a pasta dentífrica governamental e os spots publicitários... fiquei doido com aquilo. E não tinha uma grande preocupação de catalogar à esquerda ou à direita. Houve uma altura em que pensei que era anarquista ou que era bombista. Mas sem bomba porque também se a tivesse não sabia onde a ia pôr. O António Pinho, no manifesto, dizia que “gostamos de achar bem quando se trata de achar bem e gostamos de achar mal quando se trata de achar mal”.

 A própria ideia de ter um manifesto era coisa muito da época...
Só que era um manifesto que não nos colocava em lado nenhum! Aliás, também comecei pela parte da música medieval e gostava de coisas que tinha aprendido com o maestro Francisco d’Orey. Eu vivia com as janelas todas abertas lá para fora. Cheguei a ir com a Música Novarum a comícios na faculdade de Direito: aparecia com uma menina morena e outra loira a cantar aquelas coisas quando se estava em plena época da música de intervenção. Eu pensava “mas a noção do belo continua”. Depois, cada um terá a sua.
O salto dessa iniciação musical para o que veio a ser a Banda Do Casaco apenas ocorreu quando o António Pinho entrou na equação, não foi?
Sim. Mas é preciso entender o que era a Banda do Casaco. Começou por ser apenas um projecto e acabou por ser um conjunto de projectos. Se calhar, na verdade, nunca existiu um grupo. Eu e o António começávamos por escrever letras e músicas sem músicos. E, conforme as escrevíamos, assim os íamos buscar. Estive a contá-los: passaram por lá 56 músicos. Não era um grupo de estúdio e, muito menos, um grupo ao vivo. Não vou dizer que tenha sido uma escolha sábia mas conseguiu juntar-se um grupo de pessoas predispostas para o experimentalismo. Sempre tive uma certa pancada por experimentar sonoridades diferentes. Ia buscar instrumentos que não sabia tocar e tentava tocá-los: ponteira, bandoneon, ocarina, uma cromo-harp que comprei na Bretanha... Era, primeiro, um desafio para ver se conseguia aprender a tocá-los. Depois, era a questão do som: eu tocava com três cordas da guitarra afinadas em Ré. Mas, até dos tipos que tocavam comigo na banda, só o António Pinheiro da Silva me perguntou, uma vez, como é que eu tocava na guitarra porque ele não conseguia sacar a mesma sonoridade. Musicalmente, o que me interessava mais era aquilo que estava a acontecer na Bretanha, as Soeurs Goadec, Alan Stivell, não falando dos Malicorne. Tudo isso era, para mim, mais interessante do que, propriamente, o folk britânico se bem que também gostasse muito da Maddy Prior, da Sandy Denny, do Richard Thompson...


Sentes que a Banda era um grupo de tal modo singular que nunca poderia deixar descendência ou, apesar disso, consegues identificar alguma?
Não sei, suponho que alguma influência deveremos ter tido. Mas, se me perguntares por casos representativos, não me recordo de mais que um grupo chamado Pássaro que, há tempos, descobri na net a tocar o ‘Despique’, da Banda do Casaco. Houve aqueles grupos de que já falámos como o GAC e mesmo os Gaiteiros de Lisboa ou a Sétima Legião, embora, a Sétima, às vezes, me parecesse que tinha coisas demasiadamente "british". Mas, pelo lado do prazer da recolha também gostei imenso de ter produzido o álbum do Almanaque, do José Alberto Sardinha, que era a antítese do que nós fazíamos, era música tradicional em estado puro.

16 January 2013

SALTOS DE PRANCHA 
















O Experimentar - 2: Sagrado e Profano

Para quem leva religiosamente a sério as proverbiais listas e balanços de fim de ano (que fique assente, de uma vez por todas: nunca são organizadas de ânimo leve mas, se em vez de terem ficado definitivamente estabelecidas numa sexta-feira à tarde, sob temperatura de 14ºC, isso tivesse acontecido noutro dia e a outras horas e temperatura, é assaz provável que não fossem exactamente iguais), convém dizer já que, se 2: Sagrado e Profano não constou da que, no que à música portuguesa diz respeito, poderia, facilmente, tê-lo sido. Tal como – e uma vez que de deambulações pelos trilhos das músicas tradicionais se trata – os volumes 2 e 3 das “diversões” das Unthanks, The Unthanks With Brighouse And Rastrick Brass Band e Songs From The Shipyards (desgraçadamente não distribuídos por cá), não precisariam de qualquer tipo de lobbying para assegurar lugar na lista internacional. Não porque qualquer deles necessitasse, verdadeiramente, de tal legitimação.


2: Sagrado e Profano, em particular, segunda encarnação do que, antes, se designava por O Experimentar Na M'Incomoda, é uma magnífica descendência do que a Banda do Casaco, Chuchurumel, Gaiteiros de Lisboa, Amélia Muge, Campanula Herminii e, muito em especial, a Sétima Legião de O Sexto Sentido (para referências exteriores, procurar em Hedningarna, Transglobal Underground ou Loop Guru), foram inventando tomando a tradição popular como potente prancha de salto. No caso, a da música dos Açores, partindo de matéria-prima sonora previamente recolhida e, entre Copenhaga, Lisboa e o Faial, transfigurada por Pedro Lucas e cúmplices (Carlos Medeiros, Zeca Medeiros, Pedro Gaspar, Miguel Machete, Nicolaj Høj) em algo de, simultaneamente, arcaico e contemporâneo, local e fulgurantemente global. 

01 January 2013

2012 - EM FRENTE, PARA O PASSADO 



Em Regresso Ao Futuro, Marty McFly/Michael J. Fox, a bordo de um DeLorean DMC-12 convertido em máquina de viajar no tempo, recua até Novembro de 1955 e, pelo meio de mil peripécias, alterando o rumo dos acontecimentos e a relação entre diversas personagens, não só procura evitar desastres futuros, como, de caminho, realiza o seu sonho de ser músico de rock’n’roll, criando "Johnny B. Goode" e o "duckwalk" e oferecendo, de bandeja, a Chuck Berry “that new sound you’re looking for”. A 10 de Dezembro último, o Google Doodle do dia (variações gráficas sobre o logo do Google com o objectivo de celebrar efemérides, eventos políticos, desportivos ou culturais, e aniversários de figuras marcantes) evocava Lady Ada Lovelace (1815 – 1852): filha de Lord Byron, e pioneira da computação (sonhava com a construção de um modelo matemático capaz de explicar como os pensamentos se formam no cérebro), a “máquina analítica”, precursora dos computadores, que o seu amigo Charles Babbage inventara e para a qual ela conceberia o primeiro algoritmo destinado a ser processado mecanicamente, fascinava-a a tal ponto que, em 1842, assegurava que ela “poderia compor músicas elaboradas e científicas em qualquer grau de complexidade e extensão". Mas, sensatamente, sublinhava que "a máquina analítica não tem quaisquer pretensões de originar coisa alguma. Pode apenas executar seja o que for que saibamos mandá-la fazer".


Dir-se-ia que, em 2012 (prosseguindo, teimosamente, o rumo por que a década anterior já enveredara), a cultura pop – com as honrosas excepções habituais – optou, em definitivo, por repetir a viagem de Marty Mc Fly. Mas, ao contrário dele, que tirou partido do passo atrás para forçar os acontecimentos a dar vários em frente, preferiu transportar na bagagem o equivalente contemporâneo da máquina do doutor Babbage e, sem “quaisquer pretensões de originar coisa alguma” (ainda que proclamando o oposto), entreteve-se a gerar infindáveis duplos e cópias a partir do catálogo de estilos e géneros passados. Confortavelmente empantufados nas décadas de 60, 70 e 80 (a de 90 já se perfila para entrar em cena também), aos Marty Mc Fly actuais não ocorre sequer a ideia de que é possível alterar as coordenadas em que se alojaram e fazer delas trampolim para um salto no futuro: Ariel Pink, Tame Impala, Lana Del Rey ou Beach House (para referir apenas alguns dos mais proeminentes nomes das numerosas tropas do cerco retromaníaco), conscientemente ou não, o que fizeram foi levar a sério uma entrevista, de 1995, de Brian Eno à “Wired”, na qual ele especulava sobre a hipótese de concepção de sistemas de software capazes de "criar" mais música "original" de Shostakovich, de Brahms, ou dele próprio.

Sharon Van Etten - "Magic Chords"

A consequência foi uma colheita musical em que, fora do perímetro cercado, apenas é possível identificar pouco mais de duas dezenas de gravações sem cheiro a mofo nem enjoativa sensação de "déjà vu" (para além da lista de 10, é importante referir, igualmente, Mr. M, dos Lambchop, Tramp, de Sharon Van Etten, Life Is People, de Bill Fay, Shields, dos Grizzly Bear, Wrecking Ball, de Bruce Springsteen, Who’s Feeling Young Now?, dos Punch Brothers, Long Black Cars, dos Wave Pictures, Tempest, de Bob Dylan, e mais três ou quatro) e, inclusivamente, no que à música portuguesa diz respeito, para além do fado à boleia da UNESCO, espírito verdadeiramente aventureiro só foi possível detectar na improbabilíssima aliança luso-grega de Amélia Muge e Michales Loukovikas, na continuação da saga dos Gaiteiros e na geometria em movimento dos Abztraqt Sir Q. O futuro segue (?) dentro de momentos.

01 August 2012

OKAPIS EM SELVA DE ANFIGURIS

















Gaiteiros de Lisboa - Avis Rara

O calendário, cartografia, fusos horários e cronologia são, evidentemente, pessoalíssimos, embora, surpreendentemente, transmissíveis. Por exemplo: “Fez sábado quinta-feira, pra lá de Évora três semanas, estive dez dias num Verão, nas Américas romanas”. Quer, com isto, dizer-se que, apesar de, a propósito dos Gaiteiros de Lisboa, continuar a ser inevitável ouvir-se falar de músicas tradicionais (portuguesa ou do resto do mapa), a verdade é que, mesmo que todas as coordenadas possam apontar para lugares identificáveis, eles habitam, desde há muito, um universo inteiramente privado, uma espécie de reserva de okapis sonoros em selva de anfiguris. Onde, não sendo impossível que os apanhemos a tocar instrumentos convencionais como gaitas-de-foles (há que fazer jus ao nome), bombos, timbalões ou trompas, o mais provável será darmos com eles â volta de caixofones, cadeiretas, canarions, cabeçadecompressorofones, sanfonocellos, serpentalhos e túbaros de Orfeu, espécimes concebidos por aquela região do cérebro de certos "luthiers" permanentemente sintonizada nas emissões de rádio do asteróide de onde alienígenas como Tom Waits são originários.



De resto, a “avis rara” propriamente dita, tal como, na ilustração da capa, Carlos Guerreiro a retrata – pêga mecânica/boneco de pau articulado, entre bicicleta, helicóptero e aspirador, resultado da cópula de uma bola de futebol rebentada com a descendência de Heckle (ou Jeckle) a bordo da passarola de Bartolomeu de Gusmão –, é assaz esclarecedora: aqui, muito pouco ou nada funciona de acordo com as normas com que, habitualmente, a música é lançada à pauta. A qual, só por acaso ou acidente, será constituída pelas proverbiais cinco linhas paralelas, estorvo intolerável para os caminhos deliciosamente tortuosos por que os Gaiteiros preferem deambular. 



Procurando, ingloriamente, traduzir: as polifonias vocais poderão dar-se ares de cante alentejano mas não é impossível que, afinal, tenham sido extraídas das terras altas das Beiras, de Trás os Montes ou da Polinésia; a sátira política, carimbada por Sérgio Godinho ("Avejão"), prefere travestir-se de tratado de ornitologia (atentem na milagrosa actualidade de “No reino das trepadoras, o papagaio é senhor, mesmo até sem saber ler, qualquer papagaio é doutor”) emoldurado por filarmónica cubista; uma (literalmente) esdrúxula gincana linguística em mar bravio de gaitas à solta ("Proparaxitonias") desagua, de bom grado, em bailarico latino-americano com súplica de “Quiero tier fuerça na vierga”; mortos e vivos (Alexandre O’Neil, Ana Bacalhau, Adiafa, Zeca Medeiros, Godinho), sem que sequer se possa imaginar que, alguma vez, possa ter sido diferente, convertem-se, imediatamente, em irmãos activos da herética Ordem Gaiteira; e, como se fosse necessária comprovação de que tão libérrimo desvario assenta sobre o terreno sólido de quem, de há muito, trata por tu – e, se lhe apetecer, insulta – os mil e um idiomas de ainda mais origens e eras, em "Conde Ninho", as vozes de José Manuel David e Rui Vaz, em equilíbrio sobre o arame de um cavo bordão de gaitas, digladiam-se num virtuoso duelo vocal de vetusta linhagem serrana, coisa de imobilizar instantaneamente o tempo e nos pôr a gaguejar os grãos de areia e as eternidades de William Blake num qualquer dialecto transfronteriço. Foram precisos seis anos para achar o sucessor de Sátiro mas o quinto painel da odisseia de estúdio dos Gaiteiros é daquelas oferendas que vale cada segundo de espera.

03 May 2012

QUEM NÃO ESQUECEMOS


Sétima Legião - Memória

Nos idos de 80, quando o pop/rock luso, pareceu, por momentos, ir dispor de um futuro farto e próspero, para além de um pequeno enxame de frenéticas abelhas – umas desabridamente mercenárias, outras ferozmente "independentes" e "alternativas" – que a História apenas estatisticamente registará, os campos dividiram-se de modo razoavelmente claro: de um lado, a frente aventureira-experimental dos Mler Ife Dada e Pop Dell’Arte; do outro, a pop mais ou menos literário-conceptual dos Heróis do Mar e GNR; no centro, a oficina roqueira dos Xutos & Pontapés; por fim, sozinha no seu universo privado, a Sétima Legião. Sim, é simplificação, mas bastante menos abusiva do que possa parecer. E, agora que se celebram os trinta anos da fundação da banda de assombrosa estreia em álbum com A Um Deus Desconhecido (1984), mais óbvio se torna o espaço absolutamente singular (e fértil) que ela ocupou.



Com o ADN da Factory nos genes mas rapidamente mestiçada pelo contágio com as tradições populares portuguesas, galegas, irlandesas (mais pelo eixo-Pogues do que por outros), tão “nacionalista” e “trágico-marítima” quanto os Heróis mas muito menos caricatural, não só deixou uma imaculada discografia de estúdio em seis volumes (obrigatórios: o primeiro e o último, Sexto Sentido, 1999) como dela, em diversas direcções, e com vário sucesso estético, emergiriam os Madredeus, Gaiteiros de Lisboa e, a solo, Rodrigo Leão. Como todas as colectâneas, esta persegue a síntese impossível mas, no caso da Sétima, particularmente dificultada pela uniformemente superior qualidade da obra. Tudo o que aqui está é muito bom, tudo o que ficou de fora também. E o DVD que regista o concerto no Pavilhão Carlos Lopes, de 29 de Dezembro de 1990 (mais 8 videoclips), é o diamante na coroa. (amanhã, no Coliseu de Lisboa, às 21.30)

01 March 2012

SOMOS TODOS GREGOS
(sequência daqui)


Amélia Muge/Michales Loukovikas - Periplus – Deambulações Luso-Gregas

Uma das mais antigas descrições dos povos que habitavam o litoral ocidental da Península Ibérica, a Orla Marítima, de Rufio Festo Avieno, escrita no século IV d.C., é maravilhosa e apropriadamente fantasiosa: sob a forma de poema, transcreve – com diversas interpolações – fragmentos do périplo de um marinheiro grego de Marselha (o “périplo massaliota”) que, mil anos antes, o terá escrito, em boa parte, a partir de informações em segunda e terceira mão. O Periplus que Amélia Muge (portuguesa de Moçambique) e Michales Loukovikas (grego da Trácia) realizaram teve origem em navegações por mares mais modernos e tecnológicos (“Porque falamos de navegar na Net? Os mails que viajaram de mim para o Michales e do Michales para mim, no fundo, não são uma viagem de ideias e de territórios de conhecimento e de criação? Quanto mais se anda para trás, mais percebemos a actualidade de pensar esta ideia da viagem e da cartografia que pode ser aplicada a tudo”, diz Amélia) mas as rotas não foram muito diferentes das primordiais: “Os mapas dessas épocas também são muito interessantes. O Michales reuniu uma colecção de mais de 50. O que ali vemos não é a Terra mas a representação da Terra tal como era imaginada na altura. África, por exemplo, era um vago triângulo para Sul do Mediterrâneo. Para mim, este Periplus é, de certo modo, uma recriação dessa geografia mental e da possibilidade de partilha deste território cultural e musical por Portugal e pela Grécia. Ou, pelo menos, pela Amélia e pelo Michales. Porque é capaz de haver tantos Portugais quantos os portugueses e tantas Grécias quantos os gregos. Se calhar, os nossos mapas mentais, quando começamos a desenhá-los, têm a mesma aparência dos primeiros mapas do mundo”.

Ares Alexandrou

Mediterrâneo, portanto. Que teve como porto de partida para a sua exploração o interesse pela obra do poeta grego Ares Alexandrou (traduzida por Amélia e musicado por Michales, editado em livro-disco no ano passado sob o título O Ouro do Céu) e se prolongou através de uma busca intuitiva de pontos de contacto e traços de identidade comuns que, segundo Michales Loukovikas – fisionomicamente, a "spitting image" de Luís de Camões, sem a pala –, basta descobrir: “As ligações estão lá. Os mitos - como o de Ulisses, Calipso e Abidis que terão dado origem ao nome de Scalabis (Santarém) – demonstram que, pelo menos, pensamos na possibilidade de existir uma proximidade genética e cultural entre gregos, lusitanos e ibéricos em geral. Não é história antiga, é actual. Criamos coisas novas, hoje, a partir de uma raiz comum”. Daí que o fado se cruze com a rebetika, pentatonismos africanos e epiróticos coexistam pacífica e festivamente, tascas e tavernas acolham navegantes sem exigência de BI, e, onde se esperaria um coro grego, se escute, a Outra Voz, colectivo vimaranense criado por ocasião da capital europeia da cultura, onde Periplus se estreou em palco. “Nada foi premeditado”, assegura Michales, “o Periplus começou realmente quando a Amélia me enviou um mp3 de 'Nota Ilegal' (poema de Alessandrou e música de Michales) traduzida para português e cantada por ela. Ouvi e disse ‘Mas isto é um fado! Eu compus um fado!...’ Mais tarde, enviei-lhe outras canções tradicionais gregas; uma delas, ‘A Folha da Rosa”, depois de traduzida, também ela descobriu que existia uma exactamente igual em Portugal e aconteceu o mesmo com uma canção de Creta, ‘Pesada Como O Ferro’, que era idêntica a uma canção medieval. E, ao enviar-me a primeira parte do ‘Canto Em Periplus’, apercebi-me que a melodia era igual à do ‘Seikilos’ (o mais antigo exemplo de uma composição musical completa, incluindo notação musical e letra, no mundo ocidental, no disco traduzido e cantado por Hélia Correia)!...”


Esta redefinição de familiaridades antigas arrastou, então consigo, um vasto contingente de músicos, gregos e lusos (Filipe Raposo, José Salgueiro, Ricardo Parreira, gente dos Gaiteiros de Lisboa, Eleni Tsaligopoulou...), artistas, poetas. E coloca, inevitavelmente, a interrogação de porquê – justamente agora e no quadro de sarilhos europeus em que Portugal e a Grécia se encontram – uma tal cimeira haveria de ocorrer: “Porquê? A troika proibiu? Nós começámos antes!...”, grita Michales, “Não somos políticos, somos músicos. Mas o sentido político já lá estava desde que apresentámos O Ouro do Céu. Não somos uma troika, somos um duo que gosta de trabalhar sobre coisas boas, coisas que unem”. E Amélia Muge acrescenta: “Obviamente, quando se faz um trabalho destes com o cenário que temos, a realidade esborracha-nos o nariz. Quando nos dizem que nos andámos a portar mal – nós que fomos sempre tão bem comportadinhos e dissemos sim a tudo -, toda a gente se sente um bocado perplexa: vamos para a rua com cartazes, ‘a luta continua’, o quê? Esta viagem não é um cruzeiro mediterrânico: traz a ideia de que muito daquilo que somos também existe do outro lado. A verdadeira união não nasce apenas da simpatia mas, sim, quando criamos sentimentos de afecto através do conhecimento”. Porém, se o espírito, tal como o recorda Michales, foi o da fantasia “de ser marinheiro de um barco grego que entra num porto e se apercebe que está lá fundeado um barco português; à noite, vamos à única taberna do porto e os gregos começam a cantar as suas canções, depois, os portugueses, e, no final, acabamos todos a cantar juntos”, na verdade, diz, com todas as letras, algo francamente mais importante que, isso sim, parece ter-se tornado proibido afirmar: somos todos gregos, somos todos portugueses.

(2012)

26 May 2011

CLUBE GOURMET
 

A Presença das Formigas - Ciclorama

No resto, não se sabe. Mas, em matéria de música, ninguém tenha dúvidas que a dieta de A Presença das Formigas é de requintadíssimos "gourmets". Naquela mesa, só entram os melhores produtos de confecção tradicional e de origem local ou internacional. Isto significa que aquilo que, no álbum de estreia do septeto do centro-norte luso, se escuta foi já bastamente decantado e destilado nos alambiques de Fausto, José Afonso, Sérgio Godinho, Gaiteiros de Lisboa e Amélia Muge e, por isso mesmo, o que de cada um dos ingredientes se identifica são apenas as mais subtis essências combinadas em doses infinitesimalmente exactas com sabedoria de perfumista. O espectro de aromas e paladares, porém, não se fica por aí e não é difícil apercebermo-nos de que, aos anteriores, se acrescentam segredos e procedimentos aprendidos (directa ou indirectamente) junto de luminárias do folk-rock britânico (Fairport Convention e, particularmente, Pentangle), eventualmente gaulês (jurava ter tropeçado em vestígios de material genético de La Bamboche), mas também oriundos de coordenadas menos previsíveis mas, indiscutivelmente identificáveis e melhor digeridas como é, garantidamente, o caso do civilizadíssimo prog-rock de marca Gentle Giant. E arabismos mediterrânicos. E penumbras fadistas. E liberdade de movimentos jazzística em contraponto com disciplina de composição contemporânea. Tudo moldado sob a forma de canções que André Cardoso (guitarras, oud, cavaquinho), Cecília Peçanha (flautas), Filipa Meneses (teclados), Luís Arrigo (percussões), Manuel Maio (violino, bandolim e cavaquinho), Miguel Cardoso (baixo, guimbarda) e Teresa Campos (voz) elevam às mais oxigenadas alturas da música portuguesa de hoje.

(2011)

16 September 2010

TEMPOS INTERESSANTES


Bandarra - Bandarra

Não é, de certeza, um exagero afirmar que se vivem tempos interessantes na música popular portuguesa. E, coisa que já seria muito menos previsível, tanto na área mais habitualmente bafejada pelas atenções dos media – a do pop-rock e adjacências – como naquela outra, descendente directa ou bastarda dos diversos cantautores clássicos e suas afinidades particulares, mais ou menos pronunciadas, pela tradição popular nacional. Os grandes responsáveis históricos pelo surgimento deste novíssimo filão exigem ser nomeados: por um lado, os Gaiteiros de Lisboa com a sua formidável iconoclastia e festiva erudição; por outro, a Sétima Legião que, com Sexto Sentido, desbravaram o território onde música moderna e arcaísmos remotos conviviam e se articulavam de forma natural e esteticamente consistente.



Com descendência mais ou menos interessante (dos Megafone à Naifa), é hoje que, verdadeiramente, os frutos começam a amadurecer e se pode escolher entre colher do neo-realismo pícaro dos Deolinda, do caldeirão transcultural dos OqueStrada, do folclorismo transviado dos Diabo na Cruz ou, agora também, do cocktail literalmente transatlântico dos açoreanos Bandarra. É obrigatório reconhecer que, para a estreia, dificilmente poderiam ter optado por melhores guias: Carlos Guerreiro (Gaiteiros de Lisboa) e Luís Varatojo (Despe & Siga, Naifa), na qualidade de produtores, e António Pinheiro da Silva como purificador sonoro. O resultado, se não é uniformemente excelente – uma ou outra escorregadela para algum excesso de populismo poderiam ter sido evitadas –, não deixa, no entanto, de prometer feitos de maior relevo nesta entusiasmada conflagração de fado e tango, pop e ska, transpiração cigana e textos de saboroso sarcasmo ilhéu. Ponhamos, então, as coisas nestes termos: com um dois ajustes aqui e ali, poderemos muito bem estar perante um conjunto de gente capaz de vir a pisar o mesmo palco dos Gogol Bordello e não saír de lá envergonhado.

(2010)

05 April 2010

ALMA DANADA



Galandum Galundaina - Senhor Galandum

Muito poucas coisas serão inteiramente más ou inteiramente boas. Em si mesmas e nas consequências que delas possam decorrer. Por exemplo, o nacionalismo, essa encarnação tardia (e, supostamente, sofisticada) do tribalismo. Mais ou menos xenófobo ou "racista", de tonalidades patrioteiro-futebolísticas ou "libertadoras", combustível para massacres, desenhos de fronteiras a sangue e limpezas étnicas, devemos-lhe também, no entanto, algumas das melhores obras chocadas no viveiro dos "nacionalismos musicais" que, do início do século XIX até à actualidade, por via erudita – a dos Glinka, Mussorgsky, Bartók, Dvořák, Kodály, Copland ou Lopes Graça – ou através dos sucessivos "folk-revivals" assentes nas recolhas dos vários Lomax, A.L.Lloyd e Giacometti deste mundo, se aplicaram na busca das míticas “almas nacionais” que, por contaminação ideológica romântica, haveriam, forçosamente de residir na "pureza" dos ritmos, harmonias e melodias das gentes "simples" do campo. A invenção do conceito de "world music", em 1987, trataria, finalmente, de globalizar todos os patrimónios musicais "tradicionais" e de, nesse mesmo processo, os colocar disponíveis para mil outras reconfigurações e desejáveis esquartejamentos.



Às mãos dos Gaiteiros de Lisboa, de Amélia Muge, da Sétima Legião, dos Vai de Roda, dos Oquestrada ou dos Chuchurumel, a "alma nacional" portuguesa já foi objecto de inúmeros safanões e aditamentos nos registos de identidade, a todos tendo ficado eternamente em dívida pelo enriquecimento que daí, invariavelmente, resultou. À lista dos credores haverá de acrescentar-se, agora, o nome dos Galandum Galundaina que, após o anterior Modas i Anzonas (2005), neste Senhor Galandum propõem mais uma magnífica tradução contemporânea e sem demasiadas cerimónias "autenticistas" da música popular tradicional do nordeste raiano. Sim, a matriz é trasmontana e mirandesa, de vozes, gaitas, fraitas e tamboris, mas acolhe sem alergias as charrascas galegas, o kaval húngaro, as rabecas, a dulçaina, as sanfonas, os bendirs, as vozes de Sérgio Godinho e Uxia e a remix do DJ Hugo Correia. E, atentem bem, poderia existir tema mais vibrantemente actual do que a vida sexual do clero, exemplificada pela história do cura que emprenhou a criadita a quem nasceu “un curica com gorro i sotaina”? Ou a do outro santo clérigo, borracho e devasso – talvez compincha do "Fraile Cornudo" –, que exigiu ser enterrado no carreiro do cemitério “para ber las fraldas a las mulhieres!"?... Se isto são velharias "folclóricas", vou ali e já venho.

(2010)