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03 June 2024

ORDEM, CAOS E OS RUÍDOS DO MUNDO


A 22 do próximo mês de Agosto, celebram-se os 30 anos da publicação de Dummy, álbum de estreia dos Portishead, trio de Bristol constituído por Beth Gibbons (voz), Geoff Barrow (produção e multi-instrumentista) e Adrian Utley (guitarra). Oriundos do que ficaria conhecido como "The Bristol Scene", agregação informal de músicos e artistas do panorama alternativo local - Tricky, Massive Attack, Alpha, o "street artist" Banksy -, seria, essencialmente, a eles que ficaríamos a dever o que veio a designar-se como "trip-hop": uma tapeçaria sonora na qual, em doses infinitesimais, funk, jazz, hip-hop, bandas sonoras (John Barry, Lalo Schifrin, Ennio Morricone), soul, electrónica e experimentalismos vários se articulariam numa descendência contemporânea da "torch song" em registo "neo-noir" e de ressonâncias lynchianas. Beth escrevia textos dilacerantemente íntimos que Geoff não se esforçava por compreender ("Ele não faz a menor ideia do que eu estou a cantar. Não lhe interessa e admite-o sem problemas", confessaria, então, Beth) mas que, na sua missão de "sound designer" e garimpeiro de "beats", com a contribuição de Utley, reconfigurava como estojos sonoros ideais. (daqui; segue)

09 January 2023

Ennio Morricone - Crime And Dissonance



"Trafelato" (daqui; álbum integral aqui)

23 August 2022

 
 
 
(sequência daqui) Descendente oblíqua do retrofuturismo dos Broadcast ou Stereolab e adepta do neopaganismo anarco-feminista de Monica Sjöö, neste novo manifesto (nove canções em "cornish" e uma em galês), Gwenno tanto recorre aos sinos de Santa Maria Della Salute, em Veneza, ou à sonoridade de um vetusto piano de cauda de um hotel de Viena como invoca Morricone, Agnés Varda, Maya Deren, Jodorowsky, Fellini e Sergei Parajanov. Com uma intenção que não poderia ser mais clara: “É como se fosse um livro de recortes, com coisas que vêm de todo o lado. Estou realmente obcecada pela Europa, num desespero por fazer parte dela. Não é porque desejemos ser insulares que exploramos a nossa cultura, fazemo-lo porque queremos fazer parte do mundo!”.

22 December 2021

MÚSICA MOLECULAR
Quando, em Junho de há dois anos, os Vanishing Twin publicaram The Age Of Immunology, estavam muito longe de imaginar que, apenas seis meses depois, esse título poderia vir a ser considerado profético. Desconhecíamos então quase tudo sobre zoonoses, morcegos e pangolins, por isso apenas nos concentrámos nas referências da banda ao livro homónimo de David Napier, professor de Antropologia Médica no University College de Londres, que, em 2003, alertava para a arrepiante ideia – indiscutivelmente pandémica – de que, tal como o organismo humano se defende através da eliminação de corpos estranhos e microorganismos infecciosos, o mesmo deveria ocorrer na sociedade expulsando e eliminando todos os elementos não autóctones. O próprio grupo, composto por elementos provenientes da Bélgica, Japão, Itália, França e EUA que se haviam cruzado no Reino Unido em vésperas do Brexit, era já uma primeira declaração de combate. Que, curiosamente, se manifestava através de um improvável cocktail sonoro de krautrock, Sun Ra, "library music", Martin Denny, Can e Morricone, acondicionado na acolhedora embalagem de uns Stereolab/Broadcast de última geração. (daqui; segue para aqui)

17 February 2021

TESOURO OCULTO
 
Hiperson - Bildungsroman (álbum integral aqui)
 
No Ocidente, nos últimos anos, não se publicou nem um só álbum melhor do que Shanghai Void, dos Stalin Gardens (descrito como “millions of crystal chandeliers crashing over Balinese ricefields at sunset"), Dong2, de 33EMYBW ("samples" distorcidos de cânticos da minoria Dong do sul da China em labirintos de electrónica iridescente), Walking in a Boundless Dream, de Guzz (timbres instrumentais de Myanmar, Índia e Japão digitalmente simulados, num luminoso puzzle sonoro), Idle Archipelago, dos Foster Parents (“math rock” cenograficamente detalhado), ou o imenso Utopian Daymare, de Hai Qing e Li Xing (o confronto entre rudes melodias de inspiração mongol, razias eléctricas de guitarra e "sheng" amplificado, curto-circuitos de trompete radicalmente "free" e cenários de um Morricone asiático).
Esses e outros não menores – Carsick Cars, Snapline, Joyside, SMZB, Chinese Football, Shanren, Gong Gong Gong, P.K. 14, Fazi –, oriundos de Pequim, Xangai, Cantão, ou Wuhan, publicados por editoras como Maybe Mars, SVBKVLT, Modern Sky, Merrie Records e apoiados por clubes, fãzines, distribuidoras de cassetes e uma activíssima rede DIY. Um tesouro que permanece inexplicavelmente oculto apesar de totalmente acessível em publicações online, blogs, no YouTube, Bandcamp e SoundCloud (segue para aqui)

18 December 2019

FÁBULA MENTIROSA

  
Ouvir Bid explicar pormenorizadamente a génese de Fabula Mendax é um divertido exercício de humor e perplexidade. No qual, ao contrário do que é hábito, o humor reside na imensidade de informação histórica – supostamente séria e inédita – que nos oferece e a perplexidade resulta do facto de, a rematar cada jacto de erudição, o fundador e motor criativo dos Monochrome Set não ser capaz de evitar uma gargalhada escarninha. Por outras palavras, embora ninguém consiga arrancar-lhe a confissão de que este episódio medieval apenas existiu na sua fertilíssima imaginação, toda a narrativa é desmontada pela forma como a apresenta. Queiram, então, travar conhecimento com a nobre donzela Armande de Pange, pseudónimo conveniente de uma jovem guerreira de Metz, na Lorena, cuja fuga – por motivos ainda não decifrados – da casa paterna a leva a cruzar-se com Joana D’Arc em cujo exército de apoio à causa anti-inglesa de Carlos VII se alistaria. Adicionalmente, deverá saber-se também que tal relato foi descoberto em preciosos e secretos manuscritos do século XV, à guarda da antiquíssima família da mulher de Bid (originária de Metz), que jamais nos autorizará a consultá-los. 



É sabido que os Smiths nunca esconderam a sua admiração pelos Monochrome Set mas é pouco provável que estes, em troca, tenham ido, agora, inspirar-se naquela estrofe de "Bigmouth Strikes Again" em que Morrissey, referindo-se âs alucinações auditivas da "pucelle d’Orléans" (que não a levaram a ser internada mas canonizada), cantava “And now I know how Joan of Arc felt, now I know how Joan of Arc felt, as the flames rose to her Roman nose and her hearing aid started to melt”. Não é, igualmente, de supor que tenham lá chegado através do fogo de Leonard Cohen lançado sobre o gelo de Nico em "Joan of Arc", e muito menos por efeito do pastelão sonoro de Madonna, na canção homónima. Aceite-se, pois, a versão-manuscrito de Metz levedada pela neuroescrita automática de Bid pós-aneurisma de 2010 – que já lhe rendeu 6 álbuns em 7 anos – e imprima-se a lenda: a “fábula mentirosa” é um sobreexcelente álbum de pop em estado de graça, coisa de supremo requinte de confecção, onde medievalismos ibéricos se cruzam com a sombra de um Morricone inesperadamente gótico, Jacques Brel e David Bowie partilham as mesmas cordas vocais e, por entre o desfile de um elenco de figuras de Bruegel, se escuta uma "Chanson de la Pucelle" de recorte vagamente mariachi talhada à medida para um filme de Disney. "

14 August 2019

CRIAR UM MUNDO SONORO


Os filmes da assombrosa experimentalista ucraniano-americana Maya Deren (1917-1961) e a explosiva guitarra eléctrica de Thurston Moore (Sonic Youth) encontraram-se num palco, durante o Festival de Curtas de Vila do Conde. Horas antes, Thurston falou sobre as várias etapas desse processo, as suas dúvidas e intenções. 

    Como foi o princípio desta aventura? 
Tudo começou há dois anos, em Paris, quando o Museu do Louvre me convidou para uma série de colaborações com outros músicos. Numa das noites, foram exibidos filmes da Maya Deren enquanto eu tocava com Stephen O’Malley, dos Sunn O))). Depois, alguém teve conhecimento disso e repeti a experiência já sem o Stephen. Desta vez, não estou, realmente, a improvisar, interpreto uma peça musical previamente composta. 

    Pareceu-lhe necessário algo mais estruturado? 
A abordagem improvisada parece sempre mais interessante devido aos elementos de acaso e surpresa. Na verdade, enquanto improviso não estou a ver o filme, deixo-me levar pelos sons, e apenas paro quando me apercebo de que o filme chegou ao fim. Por vezes, perguntam-me “Quando tocou daquela forma, tinha a noção exacta de que ia acontecer aquilo? Parecia mesmo perfeitamente sincronizado...” Sim e não... 

    ... portanto, há sempre uma possibilidade de intersecção significativa entre a narrativa visual e a sonora? 
Há anos, com os Sonic Youth, criámos música para a companhia de dança de Merce Cunningham, peças baseadas em operações aleatórias nas quais não reagíamos verdadeiramente à dança mas nos guiávamos por uma partitura de John Cage. 

    E a dança reagia à música? 
A dança assentava na sua própria lógica coreográfica. 

    Podiam estar, então, em salas diferentes? 
Podíamos, claro! Foi uma experiência de que gostei imenso e me permitiu compreender como John Cage e Merce Cunningham colaboravam. Mas, aqui, em Vila do Conde, não gostaria que as pessoas imaginassem que estou a improvisar, é uma composição de uma hora para guitarra eléctrica de 12 cordas que não concebi em função das imagens mas que tocarei durante a projecção. No "soundcheck", procurei ir estando atento à forma como algumas sequências de acordes correspondiam ao que se passava no ecrâ. E correspondiam, de facto! Isso incomoda-me: não desejo que o filme me influencie! Por outro lado, tratando-se de 4 filmes, preciso de saber quando termina um e começa o seguinte. No fundo, não interessa: poderia perfeitamente tocar de olhos vendados! (risos) 

Meshes of the Afternoon

    Numa das “bíblias” da film music – Unheard Melodies, de Claudia Gorbman – uma das ideias fundamentais é a de que qualquer sequência musical aplicada a qualquer sequência de imagens faz sempre um sentido. E conta como Jean Cocteau encomendava a George Auric música para as cenas A, B ou C de um filme e, depois – apostando na “sincronização acidental” – usava a música “errada” nas cenas “erradas”...  
É realmente fascinante como todo esse processo afecta a nossa sensibilidade e a leitura que fazemos de um filme, por vezes, reforçando e sublinhando literalmente ambientes mais melancólicos ou eufóricos... 

    .... ou funcionando exactamente ao contrário como na sequência de abertura de The Shining em que a música nos “mostra” o oposto do que estamos a ver... 
É verdade. Gostaria muito de ter mais oportunidades de compor música para filmes. Os Sonic Youth colaboraram com o Olivier Assayas (Demonlover), também no primeiro filme do James Mangold (Heavy)... mas é algo de que tenho saudades e vontade de continuar a fazer. 

    Mas não se preocupa demasiado com a história da "film music"... 
Não passo o tempo a ler acerca disso, desconhecia, por exemplo, esse livro de que falou. Mas tenho alguma noção da história do cinema e sempre tive muita curiosidade por aqueles realizadores que recorrem sempre aos mesmos compositores... 

A Study in Coreogrphy for Camera (experimental Soundtrack: Remo De Vico)

    Como os Coen com Carter Burwell... 
Conheci-o em Nova Iorque, no início dos anos 80... 

    Ou David Lynch com Badalamenti, ou Hitchcock com Herrmann... 
Estava a pensar também em Claire Denis que, em todos os filmes, seja qual for a natureza deles, tem banda sonora dos Tindersticks. Vejo muitos filmes e a minha percepção do modo como a música neles actua é muito aguda. Conheço a forma como tudo se estrutura numa banda sonora. Não me interessa é trabalhar desse modo. Foi muito interessante quando trabalhámos com o Olivier Assayas: pedia-nos que lhe enviássemos música e, ao escutá-la, isso determinava a forma como iria filmar uma determinada cena, contribuía para lhe definir melhor as ideias. 

    Exactamente como aconteceu com a banda sonora de Morricone para Once Upon a Time in the West que o Sergio Leone fazia ouvir no "set" durante as filmagens. 
Há tempos, vi no British Film Institute um filme mudo francês dos anos 20 com um pianista que o acompanhava ao vivo. Tinha interiorizado por completo as mudanças de atmosfera e de intensidade do filme, reagia instantaneamente às deixas visuais. Foi óptimo mas, no fim, fiquei com a sensação de não terem, realmente, acontecido surpresas. Gosto mais, por exemplo, quando o Gus Van Sant, em filmes acerca de adolescentes americanos, usa música electrónica e "musique concrète" e, através dela, cria uma sensação de alienação, de não saber onde nos encontramos exactamente. 

The Witch’s Cradle (música: Enric Chalaux)

    Nos casos em que improvisa o acompanhamento musical para um filme que já conhece, mesmo não estando a olhar para o ecrã, as imagens que recorda determinam aquilo que vai tocar? 
Se estou a improvisar, posso perfeitamente estar a ver o filme e ir tocando ao mesmo tempo. Mas isso tende a tornar-se um pouco óbvio, será sempre apenas um resultado da minha reacção ao que acontece no ecrã. 

    E sempre um segundo em atraso... 
Exacto.

    Já conhecia estes filmes da Maya Deren?
Dos que vão ser apresentados aqui (Meshes of the Afternoon, 1943, At Land, 1944, Ritual in Transfigured Time, 1946, A Study in Choreography for Camera, 1945, e The Witch’s Cradle, 1943), já conhecia Meshes of The Afternoon e At Land. Este é o tipo de desafio que adoro, podem convidar-me sempre. Vou repetir este programa em Melbourne e não estou ainda certo se vou voltar a esta peça ou se vou improvisar. Ou ambas. E não sei se isso importa muito: estou a criar um mundo sonoro, mas não faço a menor ideia se a Maya Deren apreciaria as liberdades que tomo durante a exibição dos filmes... quem sabe se não o sentiria como uma agressão à sua obra... Os Sonic Youth, em 2003, realizaram um concerto de música improvisada nos Anthology Film Archives de Nova York, sobre imagens de filmes de Stan Brakhage. A maioria das pessoas gostou do concerto mas houve alguns puristas que argumentaram que o Brakhage nunca desejou que os filmes fossem sonorizados. Claro que estávamos a alterar a natureza dos filmes e, se calhar, a ir contra as intenções dele. Poderá dizer-se que levamos essa ideia longe de mais. Mas o que é longe demais? O objectivo nunca será roubar o primeiro plano aos filmes mas, sim, complementá-los.

16 May 2019

XENOFILIA

  
David Napier, professor de Antropologia Médica no University College de Londres, publicou, em 2003, The Age Of Immunology no qual explorava e denunciava a aterradora ideia – contrabandeada do âmbito médico para as “ciências” sociais – de que, tal como o organismo se defende e sobrevive através da eliminação de corpos estranhos e microorganismos invasivos, o mesmo deveria ocorrer na sociedade expulsando e combatendo tudo o que, há quase 40 anos, Peter Gabriel designava por “not one of us”. Não é preciso estar excessivamente atento ao mundo para nos apercebermos de que, em década e meia, esse horror ideológico – ele, sim, verdadeiramente infecto-contagioso – se converteu em venenosa pandemia com consequências inquietantemente práticas e que exige resposta rápida e intensamente xenófila. Prontos a usar, os Vanishing Twin e o álbum que cita/homageia David Napier, The Age of Immunology, não poderiam constituir melhor e mais concreta terapêutica: oriundos da Bélgica, Japão, Itália, França e EUA, Phil MFU, Susumu Mukai, Valentina Magaletti, Elliott Arndt e Cathy Lucas convergiram para Inglaterra justamente na altura em que se aproximava o referendo do Brexit. 



Cantado nos idiomas de origem de cada um deles e gravado em diversas circunstâncias e com recursos pouco vulgares – num iPhone, em palco, na ilha de Krk, na Croácia, num moinho abandonado em Sudbury –, tanto se reclamam do espírito Dada e da Bauhaus, como vasculham os arquivos de "library music" mas também as esquinas menos frequentadas de Jean-Claude Vannier, Morricone e Piero Umiliani, as tangentes funk à BSO sci-fi de Planète Sauvage, o krautrock, ou o psych-jazz astral de Sun Ra. Não é, seguramente, uma coincidência que, neste labirinto, todas as setas apontem indisfarçavelmente na direcção dos mais recentes Stereolab e Broadcast. Os territórios, de facto, intersectam-se mas, neste ensaio sonoro acerca de “um mundo que, a cada dia, se torna mais irreal na sua estranheza e dissimulação, e que, nos constrange a auto-regular a imaginação ao serviço dos poderes” (Cathy Lucas), ponto de partida para uma banda sonora primitiva e futurista sobre a instável realidade e a ambiguidade identitária, o exercício de permanente e aquático "shapeshifting" musical desenrola-se frente a um cenário de exuberantes reflexos e cintilações, utópico e festivo. Como confessa também Lucas, “É um desejo profundo vir a ser, um dia, cidadã da Federação Planetária Unida”.

25 May 2017

NA MONTANHA, SEM MAPA 


Ryuichi Sakamoto nasceu precisamente no ano – 1952 – em que, com 4’53”, John Cage criou, instantaneamente, um antes e um depois na história da música do século XX. E não há-de ser uma coincidência que, hoje, lhe seja absolutamente natural confessar como acertar e errar são as duas faces da mesma indispensável moeda: “Quando estou a compor, toco, inadvertidamente, notas erradas. Mas isso não é um problema, pelo contrário: os erros são bem-vindos, encara-os como uma dádiva. Descobrir um som inesperado ou uma harmonia em que não tinha pensado que transformam por completo o carácter de uma música é o melhor que me pode acontecer”. E chega a ser até um pouco intrigante que nunca tenha sido comparado com Ennio Morricone: ambos músicos de formação clássica com interesse pelas práticas experimentais e de vanguarda, incursões pela pop e adjacências e contribuição importante para a música no cinema. Não será, por isso, realmente inesperado que Sakamoto – autor das bandas sonoras de Merry Christmas Mr. Lawrence (Nagisa Oshima, 1983), O Último Imperador (Bertolucci, 1987), Saltos Altos (Almodovar, 1991), Olhos de Serpente (Brian de Palma, 1998) ou O Renascido (Iñarritu, 2015) – declare, agora, a propósito do último álbum, async, que o imaginou como banda sonora para um filme inexistente de Andrei Tarkovski: “A experiência ensinou-me que o processo de compor, seja para cinema ou não, é, essencialmente idêntico. Os objectivos é que são diferentes. Se componho para mim, só tenho de me satisfazer a mim mesmo. Se o estou a fazer para um filme, sou obrigado a responder aos desejos e aos prazos – por vezes, pouco razoáveis – do realizador, do produtor, do público... é um trabalho esgotante. Por isso, escrever para um filme imaginário permitiu-me juntar o melhor dos dois mundos, embora também não fosse uma tarefa fácil ser simultaneamente compositor, realizador, produtor e público. Conheço bem o cinema de Tarkovski, gosto de todos os filmes dele mas, para este álbum, inspirei-me, especialmente, em determinadas imagens de Solaris, O Espelho e Sacrifício.



Na origem, havia um programa: “jogar com as ideias de a-sincronismo, caos, física quântica, os números primos, as fronteiras difusas entre natural e artificial, ruído e música”. Mas como traduzir tudo isso musicalmente? “Já não é a primeira vez que experimento aproximar-me desse tipo de música, ‘async music’, já em álbuns anteriores tinha procurado ir por aí. Todos os géneros musicais – world, clássica, jazz, rock – se constroem em torno de uma pulsação central. Queria fazer algo completamente diferente e não existem muitos exemplos disso. Não é fácil imaginar música com múltiplas pulsações. A questão da inspiração recolhida no estudo dos números primos ou da física quântica decorre de serem assuntos que tenho estudado e tentado compreender e que acho extraordinariamente estimulantes. Mas os meus interesses têm vindo a deslocar-se em direcção à utilização simultânea de ‘som e música’ e não apenas de ‘música’. Tenho feito muitas gravações de campo e coleccionado uma grande quantidade de sons estranhos”. async acaba, então, por ser o ponto onde coincidem sonoridades e instrumentos tradicionais – ainda que abordadas sob uma perspectiva não convencional – e fontes sonoras diversas, numa espécie de “musique concrète” requintadamente domesticada? “É esse mesmo o conceito de async. Sempre fiz questão de manter os ouvidos bem abertos, não escutar apenas música mas todo o tipo de ruídos e, neles, tentar identificar o que contêm de música em potência. Já quando andava no liceu e tinha de ir de comboio para a escola, ocupava o tempo da viagem a escutar todos os inúmeros sons no interior do comboio. Tudo isto, claro, aprendi com John Cage”




O plano, então, era: “Todas as manhãs, assim que acordava, recriar todos sons que me povoavam a cabeça, usando o sintetizador analógico; pegar num coral de Bach e rearranjá-lo como se escutado no meio do nevoeiro, para revelar uma lógica austera no interior de uma núvem informe; recolher os sons de coisas e lugares – ruínas, multidões, mercados, chuva; compor música cujas componentes tenham todas uma pulsação diferente”. Mas surgiram igualmente as vozes de David Sylvian recitando um poema de Arseny Tarkovsky, pai de Andrei (“I dreamed this dream and I still dream of it and I will dream of it sometime again, everything repeats itself and everything will be reincarnated, and my dreams will be your dreams (…) wave after wave breaks on the shore: there's a star on the wave, and a man, and a bird, reality and dreams and death - wave after wave, life is a wonder of wonders, and to wonder, I dedicate myself, on my knees, like an orphan, alone among mirrors, fenced in by reflections: cities and seas, iridescent, intensified”) e a de Paul Bowles gravada há quase trinta anos quando Sakamoto trabalhava na banda sonora de Um Chá no Deserto, de Bertolucci (“Because we don’t know when we will die, we get to think of life as an inexhaustible well. How many more times will you watch the full moon rise? Perhaps 20. And yet it all seems limitless”). 



Mas não apenas essa: “Porque, realmente, adoro o Tarkovski, apeteceu-me ouvir aquele texto de Paul Bowles em russo. Gosto também muito de filmes chineses, porque não também em chinês? No final, acabou por ser lido igualmente em alemão, iraniano, farsi, espanhol, islandês e italiano... pelo próprio Bernardo Bertolucci”. Não ficou, porém, por aí. Chamadas a contribuir foram também as esculturas sonoras dos irmãos Baschet (que, num dia quente de Verão, gravou, por entre corais de cigarras, na universidade de Kioto) bem como as do italo-americano Harry Bertoia que desencantou num pequeno museu de Manhattan. Na verdade, não se trata de uma estratégia omnívora inteiramente inédita na música de Sakamoto. Já em Discord (1998) - num gesto de reacção emocional às tragédias humanitárias que, na altura, tinham lugar no Ruanda e no Zaire – ele recorrera a estilos musicais diversos e diferentes media. Mas, quando o interrogo acerca da existência de alguma afinidade entre essas duas obras, praticamente reafirma aquilo que, há quase vinte anos me respondera (“A música não é um utensílio nem uma máquina capaz de interpretar o mundo real. Tem o seu próprio universo mas contém também uma gramática e uma sintaxe das emoções. De qualquer modo, em geral, não gosto de usar a música como veículo de propaganda política”): “Na altura de Discord, senti a necessidade de reagir a esses acontecimentos mundiais. Não é o tipo de atitude que, habitualmente, pense que deva tomar através da música. Mas é evidente que não posso fugir à influência que aquilo que se vai passando no mundo tem, inevitavelmente, sobre mim. Todos os dias. Não de uma forma clara e explícita mas a um nível mais profundo”



No fundo, na raiz de async, encontrava-se algo de mais intensamente pessoal e dramático: há três anos, foi-lhe diagnosticado um cancro na garganta, actualmente em remissão (embora lhe tenha bloqueado a possibilidade de salivar) mas que, ainda assim, permanece como uma ameaça latente. As palavras do texto de Paul Bowles adquirem toda uma outra ressonância quando ele afirma “Estava convencido de que este álbum poderia ser o último que iria gravar. E não é ainda impossível que o venha a ser. Ninguém sabe quando vai morrer”. Imediatamente a sombra de Blackstar, de David Bowie, paira sobre a conversa. Mas Ryuichi Sakamoto, colocado perante a hipótese de encaramos async como um testamento final, tranquilamente, afasta-a: “Nunca pensaria na minha música como um testamento final. Gravar este álbum foi como trepar a uma montanha sem um mapa na mão. Uma vez atingido um cume, descobrimos logo outro mais à frente e não temos o fim à vista. Mas, na verdade, cada trabalho meu representa sempre a minha última vontade. Claro que o facto de ter tido o problema do cancro na garganta acentuou bastante mais essa ideia. E fez-me tomar consciência de que, na verdade, a atitude de encarar cada álbum como sendo, potencialmente, o último é, de facto, a mais correcta. Não sei se terei um ano ou dez ainda à minha frente mas claro que continuo a ter sonhos, esperanças e planos para o futuro”.

19 November 2016

18 November 2016

LIMPAR O PÓ AOS ARQUIVOS (XXXII)


Pergunte-se a Ennio Morricone o que gostaria de ter sido se não tivesse devotado toda a sua vida à música e, em particular, à música para o cinema e, sem pestanejar, em italiano (apesar de há décadas a trabalhar com Hollywood, ainda não fala inglês), ele responderá: "Campeão mundial de xadrês!". Não se trata apenas de um pormenor anedótico mas é, na verdade, uma forma de entrever o funcionamento interno do espírito do compositor que, desde 1961 (quando escreveu a sua primeira partitura para Il Federale de Luciano Salce), é responsável por mais de 400 bandas sonoras para cinema, para além de peças orquestrais, música de câmara e canções, produzidas a um ritmo que, por exemplo, só no ano de 1972, o conduziu a escrever para 22 filmes. Curiosamente, a despeito de quatro nomeações para os Óscares (Bugsy, Os Intocáveis, A Missão e Days Of Heaven), dois Globos de Oiro (The Legend Of 1900 e A Missão) e inúmeros outros prémios e nomeações, nunca a sua obra foi consagrada com um galardão da Academia de Hollywood.


Se foi o trabalho nos "western spagghetti" de Sergio Leone, durante os anos 60, que transformou Ennio Morricone num nome conhecido através das suas inovadoras justaposições sonoras de assobios surreais ("o assobio provém do corpo humano, é como uma voz, não é um efeito especial. É um som entre a voz e a flauta ou, talvez, o piccolo. E, uma vez que é humano, é natural. Não penso ter alguma vez usado quaisquer instrumentos extravagantes à excepção do orgão de igreja. Como ninguém o utilizava, era considerado um 'efeito especial'"), guitarras eléctricas distorcidas — ambos por Alessandro Alessandroni — ou a fantasmagórica voz de soprano de Edda Dell'Orso, este acabou por se tornar parte inseparável da febril recriação por Leone do género do "western" em filmes como O Bom, O Mau E O Vilão, Aconteceu No Oeste ou Por Um Punhado De Dólares. Porque Morricone nunca concebeu as suas partituras como algo que apenas se sobrepõe ou sublinha as imagens mas como música que se desenvolve organicamente a partir da narrativa do próprio filme, pegando em sons do quotidiano e carregando-os de simbolismo (o motivo de O Bom, O Mau E O Vilão inspirado no uivo do coiote, o ensurdecedor tique-taque do relógio na contagem descendente para o duelo em Por Um Punhado De Dólares) ou inserindo literalmente a banda sonora no corpo da narrativa quase enquanto uma outra personagem de parte inteira, caso do célebre "leitmotiv" de harmónica obsessivamente tocado por Charles Bronson (na verdade, Franco De Gemini) em Aconteceu No Oeste, de facto, todo rodado sobre a partitura de Morricone completada muito antes do início das filmagens. Porém, como ele próprio invariavelmente recorda, "dizer que apenas escrevi para 'westerns' é um erro crasso. Compus para cerca de 400 filmes e apenas 8% são 'westerns'".


Essa "especialização" começou em 1938 quando, aos dez anos, entrou para o Conservatório de Santa Cecília, em Roma, na classe de trompete de Umberto Semproni. Cinco anos depois, em seis meses, completaria um curso de Harmonia que tinha a duração normal de três anos e, numa fulgurante trajectória académica, estudaria composição, música e direcção coral, instrumentação e direcção de orquestra, acabando por se graduar em Composição na classe de Goffredo Petrassi com a classificação de 9,5/10. Após "fazer a mão" em diversas peças de câmara, ter passado pelo grupo de música experimental improvisada "Nuova Consonanza", pela música para teatro e pela orquestra da RAI, apareceram as primeiras solicitações para o cinema na época do pós-guerra, quando "a indústria cinematográfica era muito forte em Itália e o neo-realismo no cinema italiano era maravilhoso. Mas a música não era muito boa. Eu precisava de dinheiro e pensava que seria optimo escrever partituras para cinema mas nunca pedi trabalho a ninguém na indústria cinematográfica. Aconteceu então que um realizador me convidou e voltou a convidar muitas outras vezes. Por fim, as pessoas compreenderam que eu era bom e a minha carreira começou a desenvolver-se". A verdade é que, ironicamente, apesar de ele e Sergio Leone terem sido colegas na mesma escola aos 8 anos, só 25 anos depois, com Por Um Punhado De Dólares, a sua colaboração se iniciaria pouco depois de Morricone (que ia escrevendo sob pseudónimos como Dan Savio ou Leo Nichols), haver começado o seu percurso articulando o gosto pelo jazz e pela música popular com o rigor da vanguarda bebido nas raizes académicas.


Foi justamente a partir daí que, como confessa, a sua personalidade musical se desenvolveria: "Venho de uma escola de música experimental que combinava sons 'reais' com sons 'musicais'. Por isso, utilizei sons 'reais' para conferir um certo tipo de nostalgia que os filmes deveriam comunicar bem como de um ponto de vista psicológico. Não sei bem de onde me vieram essas ideias. Se calhar, foi só uma questão de aprender com a experiência e estar atento à vanguarda musical. Acabei por consolidar as minhas primeiras convicções acerca da música experimental e de vanguarda numa forma diferente de compor que leva em conta o que aconteceu na música dos últimos cinquenta anos e que procura comunicar com o público. De resto, tenho antigos amores e paixões musicais como Frescobaldi, Bach, Palestrina, o meu mestre Petrassi, Stravinsky, Boulez, Luciano Berio, Luigi Nono, Stockhausen... Comi-os, bebi-os, digeri-os e, evidentemente, entraram para o meu sistema, tornaram-se parte de mim, a minha carne e o meu sangue. Claro que ninguém dirá que a minha música se assemelha à de Stravinsky ou Bach. Mas também, se comermos frango, ninguém se lembra de dizer que nos transformámos em frango, pois não?".



É nesse desejo de comunicação e de procurar ser comprensível que se tem centrado a sua procura de um equilíbrio entre duas componentes "uma que não é banal nem trivial e outra que não procura ser excessivamente refinada", que é ainda uma outra forma de conciliação entre a natural ambição do compositor, os constrangimentos da indústria e as exigências do público: "O público e, muitas vezes, o realizador, exigem uma melodia, especialmente quando existem cenas muito expressivas que a requerem. Isso não significa que não possamos fazer um filme sem essa melodia mas o público parece esperar uma linha melódica sempre que surge uma expressão sentimental. Pessoalmente, passo bem sem um tema melódico. Em muitos casos, tenho tentado disfarçar o tema melódico pelo meio de pausas e silêncios e encorajado o público a identificar essas sensações sentimentais mais com um colorido musical do que com uma melodia. Infelizmente, o público parece insistir na necessidade de uma melodia".


Quarenta anos de experiência a escrever bandas sonoras para o cinema europeu e norte-americano conferem ainda a Ennio Morricone (um dos membros do seleccionadíssimo clube dos raros autores de "film music") a autoridade para dissertar e distribuir conselhos acerca do seu ofício: "Num filme, o trabalho tem de ser preciso e dirigido ao espectador. Demasiada meditação de natureza científica ou matemática na composição pode ser negativa. Com tempo excessivo, o compositor pode-se deixar levar pelo seu gosto e chegar a uma composição talvez a um nível demasiado superior ao de quem vê o filme. Se um realizador concede ao compositor dez segundos, ele não pode ser ouvido e, portanto, não pode colaborar com o realizador. Contudo, se o realizador, lhe concede dez minutos, o compositor pode exprimir-se adequadamente. Se os dez minutos que lhe foram oferecidos puderem ser ouvidos e não forem afogados pelos diálogos ou por efeitos especiais, então a música será apreciada". E, porque — à excepção de Era Uma Vez No Oeste — não é todos os dias que lhe é oferecida a possibilidade de ser a música a condicionar o tempo e o modo da narrativa, é indispensável inverter adequadamente as regras: "Preciso de ver a montagem final de um filme antes de sequer começar a pensar na música e, muito menos, em escrevê-la. Depois de ver o filme, digo ao realizador aquilo que penso e o que gostaria de fazer. Ele aceita o que eu digo, discute-o ou destrói-o. Eventualmente, chegamos a um compromisso. Se o realizador não for musicalmente criativo, imagina sempre alguma coisa que já ouviu e, aí, eu tenho de o convencer a pôr as suas ideias de lado. Preciso de ter confiança no realizador e ele tem de ter confiança em mim".


Naturalmente, esta atitude tem consequências inevitáveis. Tanto de conflito (como quando, em 1975, Pier Paolo Pasolini o convidou para reescrever os arranjos da banda sonora de Saló ou os 120 Dias de Sodoma; Morricone não gostou da música sobre a qual deveria trabalhar e Pasolini não queria mostrar-lhe a totalidade do filme com receio de que ele o detestasse e abandonasse o projecto) como de empatia imediata: "Brian De Palma é extraordinário! Respeita a música e os compositores. Para Os Intocáveis, tudo o que lhe propus estava bem mas, depois, pediu-me uma música com que eu não não concordava de todo. Era algo que não me apetecia escrever — uma peça triunfal para a polícia. Creio ter escrito nove versões diferentes mas disse-lhe 'Por favor, não escolha a sétima' que era a de que eu gostava menos. E foi essa mesma que ele escolheu! Por acaso, até fica muito bem no filme...". (2001) (ver também aqui e aqui)

10 November 2016

Ennio Morricone - "Gli Occhi Freddi Della Paura"

(ver aqui)
“SOU SEMPRE A MESMA PESSOA”


Hoje, Ennio Morricone celebra 88 anos. Amanhã, é publicado Morricone 60, o primeiro “best of” de temas para o cinema do "vecchio maestro", dirigido, gravado (com a Orquestra Sinfónica Nacional da República Checa) e com curadoria do próprio. Festejam-se assim, igualmente, os 60 anos desde que, foi contratado pela RAI como arranjador de canções pop, embora a sua trajectória no âmbito da "film music" apenas tenha tido realmente início em 1961 com a partitura para Il Federale, de Luciano Salce. Uma extensa e imensamente produtiva trajectória – no total, cerca de 600 composições para cinema, teatro, rádio e de musica pura – que, apesar disso, só seria contemplada pela academia de Hollywood com um Oscar de carreira, em 2007, e, por fim, este ano, com outro para The Hateful Eight, de Quentin Tarantino.


Foi numa das alturas em que a sua cotação na bolsa de valores de Hollywood parecia estar mais elevada e se falava num Oscar pela BSO de Malèna, de Giuseppe Tornatore (2000), que Morricone revelou as suas mais profundas origens musicais: "Consolidei as minhas primeiras convicções acerca da música experimental e de vanguarda numa forma diferente de compor que leva em conta o que aconteceu na música dos últimos cinquenta anos e que procura comunicar com o público. De resto, tenho antigos amores e paixões musicais como Frescobaldi, Bach, Palestrina, o meu mestre Gofredo Petrassi, Stravinsky, Boulez, Luciano Berio, Luigi Nono, Stockhausen... Comi-os, bebi-os, digeri-os e, evidentemente, entraram para o meu sistema, tornaram-se parte de mim, a minha carne e o meu sangue. Claro que ninguém dirá que a minha música se assemelha à de Stravinsky ou Bach. Mas também, se comermos frango, ninguém se lembra de dizer que nos transformámos em frango, pois não?" Agora, o mestre que nos deu Once Upon A Time In The West, The Good, The Bad And The Ugly, Once Upon A Time In America e a profusão de assombrosas experimentações sonoras reunidas em Crime And Dissonance (2005) – de que nem quer ouvir falar – é bastante mais lacónico nas respostas, numa entrevista telefónica drasticamente espartilhada pela indispensabilidade de tradução simultânea. Sim, o vetusto cavalheiro, ao fim de todos estes anos, continua a exprimir-se apenas em italiano.

     Quando começou a compor para o cinema, existia já uma geração anterior de pioneiros da film music, gente como Max Steiner, Miklos Rosza, Franz Waxman, Bernard Herrmann... Tinha consciência do trabalho deles, no desbravamento dessa linguagem musical muito específica ou procedeu apenas por tentativa e erro?
     Tinha consciência de que existia uma importante geração de compositores para o cinema mas, quando comecei não parei para pensar nisso. Inicialmente era apenas um trompetista que tocava as partituras de outros compositores em orquestras de estúdio. Na maioria, italianos. À época, era muito raro serem autores americanos. Gostava de uns, de outros, nem por isso, mas, quando me iniciei na composição não estava a pensar nessa herança musical.

    
     Embora as suas bandas sonoras para os "western spaghetti" (nomeadamente de Sergio Leone) constituam apenas uma pequena percentagem da totalidade da sua obra para o cinema, a verdade é que, neles, inventou uma sonoridade muito particular e completamente inconfundível que lhes ficou para sempre associada. Como surgiu ela?
     Sempre pensei que a música que escrevi para os filmes do Sergio Leone poderia ser perfeitamente apropriada para um outro qualquer género cinematográfico. Transformou-se em música de "westerns" apenas porque foi utilizada em "westerns". É a minha forma de compor e foi apenas desta forma que criei essas sonoridades.

     A sua formação musical clássica, paralela à música experimental e improvisada que praticou com o “Gruppo di Improvvisazione Nuova Consonanza”, foi, de algum modo, determinante na concepção do que viria a constituir a sua marca de autor de "film music"?
     Dou-lhe uma resposta extraordinariamente simples: eu sou eu, sou sempre a mesma pessoa. Mas, se vou compor musica para um filme, nunca me posso esquecer que o mais importante de tudo é o próprio filme. Claro que isso gera alguns constrangimentos, algumas limitações. Quando escrevo música mais abstracta, música absoluta, tenho um grau de liberdade muito maior. Mas não deixo de continuar a ser eu. E é natural que tudo o que faz parte do meu passado, da minha história, todas as experiências em que estive envolvido, tenham desempenhado um papel no meu processo de composição, qualquer que seja a finalidade da música que crio.

    Seja como for, a história das relações entre autores de bandas sonoras e realizadores foi sempre terreno bastante acidentado em que os interesses e pontos de vista de uns e outros, frequentemente, não coincidiram. Foi também assim consigo?
    É um processo muito pouco racional. Respondo-lhe porque me fez essa pergunta mas, na verdade, não é coisa em que perca muito tempo a pensar. Quando estou a escrever música, não penso em mais nada senão nisso. Tenho apenas de ter presente a ideia de que, se estou a compor para um filme, existem, inevitavelmente restrições áquilo que posso fazer porque a música tem de se adaptar ao filme e nunca o inverso. Se não se trata de música para cinema, tudo se passa de modo, naturalmente, diferente. Mas, como lhe disse, isto sou só eu, agora, a pensar em voz alta sobre esse assunto, não é nada racional nem esquematizado.


      Há onze anos, a editora Ipecac. de Mike Patton, publicou uma compilação de temas de bandas sonoras suas –
Crime And Dissonance – para filmes de terror, "gialli" e diversas outras marginalidades do cinema italiano do final dos anos 60 e início de 70, como Veruschka, Sesso In Confessionale, Una Lucertola Con La Pelle Di Donna, Il Gatto A Nove Code, realizados por Dario Argento, Lucio Fulci e outros. Eram temas e ambientes sonoros francamente mais radicais e sonoramente experimentais do que as suas composições habituais. O que se recorda disso?
    Talvez o surpreenda mas mas nunca tive conhecimento da publicação desse álbum! Talvez o editor o tenha publicado sem me informar e sem ter autorização para o fazer. Não possuo um única cópia desse disco, desconheço tudo sobre ele!

    Desde há muito tempo que Quentin Tarantino utiliza excertos de músicas suas nos filmes dele e, a partir de Inglourious Basterds, começou mesmo a “assediá-lo” para conseguir ter uma partitura sua num filme. O que só acabou, finalmente por acontecer com The Hateful Eight, com o qual, após um Óscar de carreira (2007), conquistou outro para uma banda sonora específica. Como foi esse processo?
    Da primeira vez que o Quentin Tarantino me convidou para compor para um filme dele, eu, embora estivesse interessado e desejasse fazê-lo, estava demasiado ocupado e não foi possível. Mas, depois, em 2015, quando ele veio a Roma para receber o prémio David di Donatello, encontrámo-nos em minha casa. Foi uma conversa muito rápida, e aceitei logo.