(segundo David Thomas: "The first Pere Ubu record was meant to be something that would gain us entry into the Brotherhood of the Unknown that was gathering in used record bins everywhere")
Les Rallizes Dénudés
"Takashi Mizutani formed the group as a college student in the ‘60s, when (...) French culture still found devotees among postwar Japanese youth looking for a revolutionary alternative to Uncle Sam. That means: cool for these guys was ice cold. Deadpan as the Velvets or Spacemen 3, Mizutani and his bandmates identified with the loudest, darkest and most destructive aspects of psych-rock. Les Rallizes Dénudés is legendary for good reason, as you can learn in the Bandsplaining video at the top. One thing we do know about them is that a former bassist apparently hijacked an airplane for the Japanese Red Army Faction (then found asylum in North Korea), but 'it’s actually not the most interesting thing about them'" (aqui)
Em Double Trouble: Bill Clinton and Elvis Presley In a Land of No Alternatives (2001), Greil Marcus conta como o plano inicial de David Thomas para os Pere Ubu era “’gravar um artefacto’ que ‘lhes desse acesso à Fraternidade dos Desconhecidos que se ia constituindo por todo o lado, nas lojas de discos em segunda mão’. A ideia era actuar e depois desaparecer, ser esquecido, e, algures no futuro, talvez mesmo depois de morto, ser descoberto e, só então, começar a transformar o mundo”. Praticamente as mesmas palavras poderiam ser aplicadas a um outro “artefacto” gravado em 2001: The Opiates, assinado Anywhen, na realidade, apenas um "nom de plume" para o sueco Thomas Feiner acompanhado pela Orquestra Sinfónica de Varsóvia. Literalmente esmagado e não poupando as palavras, na altura, descrevi-o como “O melhor disco de Jeff Buckley. O melhor disco de David Sylvian. O melhor disco de John Cale. O melhor disco dos Tindersticks. O melhor disco de Scott Walker. O melhor disco dos Blue Nile. O melhor disco dos Divine Comedy”. Não me arrependo de nenhuma dessas comparações (arrependo-me só de não lhes ter acrescentado os Triffids).
Simplesmente, enquanto imaginava que, inevitavelmente, pelo menos uma parcela do mundo civilizado iria ajoelhar perante tanta grandeza... nada aconteceu. Intimidadas pelas implacáveis proclamações (“Here come greetings from the fires of dusk, from all the places you never dared to walk, you never saw the silent battle zones beneath your towers and beneath your gardens") as gentes passaram de lado e Feiner, sem o saber, acabara de ser iniciado na Brotherhood of the Unknown. Em 2008, The Opiates seria remasterizado para a Samadhisound, de David Sylvian (Thomas Feiner & Anywhen: The Opiates – Revised), houve notícias avulsas de publicações em mp3, um website lacónico que, relutantemente, deixava escapar parca informação sobre colaborações com Steve Jansen e vagas bandas sonoras. Na Wikipedia, uma única página. Em português. Até que, de súbito, há semanas, sob a designação Exit North (Feiner, Jansen, Charles Storm e Ulf Jansson), surge Book Of Romance And Dust. Apetece repetir, sílaba por sílaba, tudo o que foi dito sobre The Opiates. Podendo talvez acrescentar-se – errando – que, agora, Ryuichi Sakamoto teria sido convocado para o deslumbre onde um translúcido impressionismo electrónico se infiltra por entre as palavras e as dissolve, “to hear the world, the void, the sound it makes, the wind, the earth, the fire, high water”.
(segundo David Thomas: "The first Pere Ubu record was meant to be something that would gain us entry into the Brotherhood of the Unknown that was gathering in used record bins everywhere")
"In 1985, XTC were a band out of time. Nervous breakdowns and a disgust for prevailing trends had left them at odds with the public and their label. A good time, then, to become another group entirely - the superbly psychedelic Dukes of Stratosphear. (...) They went back to the 60s, 'had the most fun we ever had' and were reborn as shadowy impostors from the golden age of psych. (...)
(Andy Partridge says) 'Lack of success was the best thing that ever happened to us. You put out a record that no bastard buys - so you make the next one even better. Right then, what about this one? Lack of success, for us, was like having a set of Duracell-drumming-bunny-batteries in our backs'" ("Uncut", Junho de 2009)
(segundo David Thomas: "The first Pere Ubu record was meant to be something that would gain us entry into the Brotherhood of the Unknown that was gathering in used record bins everywhere")
(pela calada da noite, o video aqui colocado - "Speed To My Side" - foi removido do Tubo; fica, agora, a capa de Horsedrawn Wishes, dos Rollerskate Skinny)
(2009)
25 November 2008
TATUAGENS E PIN-UPS
(departamento THE BROTHERHOOD OF THE UNKNOWN (VIII), segundo David Thomas: "The first Pere Ubu record was meant to be something that would gain us entry into the Brotherhood of the Unknown that was gathering in used record bins everywhere")
Gretschen Hofner - Maria Callous
"Once I would make love to the mirror in the hall, till I found my ego wanting and my looks began to pall, I sought solace in my comfort pills, romanced the kitchen knife, with my Frances Farmer smile and my Judy Garland life". Estas são as palavras de abertura do quase épico "My Judy Garland Life", cartão de visita dos Gretschen Hofner. E não se inicia assim uma canção por acaso. Chamam-lhes "camp rockers" de "neo-vaudeville" mas eles garantem que quem apreciam mesmo é gente como Bertolt Brecht, Kurt Weill e Tchaikovski e grupos como os X-Ray Spex e os Birthday Party. Depois, há quem lhes associe imagens de encontros de Elvis Presley, John Barry e os Cramps em sórdidos bares do Soho londrino, por entre surradas cortinas de veludo, tatuagens de marinheiros e cantoras decadentes de cetim vermelho. Aí, eles confessam que têm influências, sim senhor, mas que elas são mais do género iconográfico: figuras trágicas como Judy Garland, a pin-up S & M dos anos 50, Bettie Page, evangelistas televisivos alucinados e outros que tais.
Pelo meio de tudo isto, existe ainda um peculiar fetichismo por sapatos ("Shoes are what you wear that's important and you extend from what you walk in", confessam em "Crow In Heels"), mas aquilo a que convém verdadeiramente prestar atenção é Maria Callous, o seu primeiro álbum, cujo título é um jogo fonético entre o apelido da célebre Maria Callas e a palavra "callous" ("insensível"). O elenco dos Gretschen Hofner é a impossível reunião de Justine Armitage (professora de piano que também toca violino), Paul Hofner (renascentista perverso e executante de "guitarra psicodramática"), Kieron Hunter (baixista e gentleman de cabaret) e Pinball Geoff (ex-assistente social em psiquiatria e actual baterista e reparador de "flippers"). Para trás ficaram ignoradas atribulações em bandas de travestis como a Brendan Duffy Bissexual Adventure e outras ilustres desconhecidas, dando, desta vez, lugar a nova personagem colectiva condenada a habitar aquele universo paralelo também já colonizado por Nick Cave ou pelos Gallon Drunk. Aqui, a coisa traduz-se numa espécie de surf meets-rockabilly operático e em cinemascópio, com enfáticas orquestrações de cordas a condizer e uma pose de dandyismo trágico meticulosamente simulado, em contraponto. Cenograficamente, resulta em pleno sendo que a música, em si mesma, deverá ser considerada apenas como uma componente da encenação total. A derradeira e gloriosa bizarria de 1996.
(1996)
20 November 2008
O ELOGIO DA PREGUIÇA
(departamento THE BROTHERHOOD OF THE UNKNOWN (VII), segundo David Thomas: "The first Pere Ubu record was meant to be something that would gain us entry into the Brotherhood of the Unknown that was gathering in used record bins everywhere")
It's Immaterial - Song
Vão-se preparando para sofrer mais um ou dois sérios abanões com epicentro no mesmo ponto que, no final de 1989, nos trouxe de volta os Blue Nile. A causa da coisa saiu no passado dia 25 de Junho, em Londres, tem o conciso título de Song e os agradecimentos pela sua criação devem ser endereçados para Liverpool, ao cuidado de John Campbell e Jarvis Whitehead, aliás, It's Immaterial. Não esqueçam já os Blue Nile pois o paralelismo não é fortuito. Tal como com eles, também sobre Campbell e Whitehead (igualmente ex-colegas de universidade que se descobriram mutuamente compositores) se poderia falar de um caso de invisibilidade deliberada, de uma estratégia de captação das atenções pela fuga à banalização da presença sob os focos dos media e assente na valorização da raridade da discografia. Nuns e noutros, a produção reduzida ao mínimo indispensável para poder constituir prova legal de existência, traduzida em dez anos para dois álbuns e meia dúzia de singles. Encaremo-los como a expressão de um derradeiro elogio da preguiça ou uma apologia da virtude dos metabolismos lentos: A Walk Across The Rooftops (1984) e Hats (1989), dos Blue Nile, e Life's Hard And Then You Die (1986) e, agora, Song, dos It's Immaterial, pertencem todos por legítimo direito à selecção restrita dos indispensáveis da música britânica dos anos recentes. Último traço de união: em ambos os casos, o regresso fez-se pela porta dos Castlesound Studios de East Lothian, sob a orientação do produtor Calum Malcolm.
A separação das águas pode iniciar-se, sem prejuízo, pela via das aparências. Onde os escoceses não sentem a obrigatoriedade de imprimir os textos das canções, o duo de Manchester "exilado" em Liverpool responsável por Song sabe bem como é imprescindível fazê-lo para possibilitar um entendimento sem equívocos do seu universo. Têm todos razão. Ainda que habitantes de territórios sonoros parcialmente coincidentes, a função das palavras que, nuns, é mero adereço na definição dos ambientes, para os outros, assume um papel central enquanto elemento de estruturação dos temas. Legíveis como trechos autónomos dedicados ao registo impressionista de paisagens de desolado despovoamento ("From the shore to the station, the blinds are down, people say the place is slowly dying, there's not a sound, above the rooftops, from the high rise, you can see for miles, a caravan on every plot of land, up and down the coastal plain, in New Brighton when it rains; yesterday I saw you Main Street way, looking at the empty boarding houses and closed arcades, well it's funny just to think the tide's now out and there is very little story to be found in the shops and buildings here") ou à narração de histórias individuais de isolamento e claustrofobia provincial ("When he was tirty five, Mr. Hart met Bernice, the check-out girl, spending all his time hanging around the doors of the junk food store, will they ever speak?"), não limitam nunca, no entanto, a liberdade de acção da música na busca de um espaço próprio.
Acontece, aliás, exactamente o oposto: da perfeita aderência das duas componentes resulta o desdobramento de sentidos de cada uma, num notável exercício de estimulação simultânea que multiplica os ângulos de abordagem. Aquando da edição de Life's Hard And Then You Die, era praticamento impossível não lhe identificar a proliferação de referências musicais que, entre o jazz, a pop, a folk, a "systems music", o electro ou a "contemporânea", se deixavam integrar num tecido vivo e diverso mas livre de problemas de rejeição imunitária. Ecléticos até aquele grau em que o próprio termo se torna redundante, os It's Immaterial recusavam já então a colagem ou o exercício de estilo como método de escrita, preferindo-lhe a fusão quase genética das linguagens sobre que operavam. Song prossegue e intensifica essa lógica, conduzindo-a a um estado de sofisticadíssima cirurgia plástica, incapaz de revelar o menor vestígio de cicatrizes no lugar dos implantes. "Atmosféricas" mas, de modo algum, carentes de consistência e coerência formal, às dez "songs" de Song seria dramático que estivesse reservado o mesmo destino do álbum anterior: coleccionar um invejável dossier de recortes de imprensa com a crítica unanimente ajoelhada e não vender senão o bastante para ocupar fugazmente um modesto lugar no top-75 britânico.
(1990)
30 July 2008
FANTASMAS E DEMÓNIOS
(departamento THE BROTHERHOOD OF THE UNKNOWN (VI) *, no caso especial dos Halloween, Alaska - * segundo David Thomas: "The first Pere Ubu record was meant to be something that would gain us entry into the Brotherhood of the Unknown that was gathering in used record bins everywhere")
Anja Garbarek - Briefly Shaking
Halloween, Alaska - Halloween, Alaska
Logo no início de 2001, Smiling & Waving, de Anja Garbarek, formulou algo de muito próximo de uma perfeitíssima síntese das diversas vias para a canção-pop "pós-clássica": aluna confessadamente atenta de Rickie Lee Jones, Kate Bush, Billie Holiday, Laurie Anderson e Meredith Monk e rodeada de adeptos da aguarela electro-acústica como Mark Hollis (dos Talk Talk) Steve Jensen e Richard Barbieri (dos Japan) ou Robert Wyatt, o terceiro álbum da filha de Jan Garbarek — após uma estreia apenas distribuída na Noruega e Balloon Mood, de 1996 — parecia ser o lugar de convergência de tudo o que, antes, havia sido esboçado e/ou estabelecido por David Sylvian, Björk, Portishead, Laub, Stina Nordenstam, Leila ou Alpha.
Podemos dizê-lo agora também, um antepassado quase directo da sublime poética electrocardiográfica de Little Things, de Hanne Hukkelberg, publicado no ano passado. Briefly Shaking não altera nada de fundamental no funcionamento do engenho da caixa de música mas, na filigrana sonora em que todas as canções são urdidas, é claramente perceptível que alguns dos fios de oiro e prata utilizados nas anteriores foram, agora, substituídos por arame farpado. Há, em diversos temas (inspirados pelo assombro e os rigores da maternidade), uma aspereza metálica, quase "industrial", as combinações tímbricas puxam, frequentemente, pela acidez dos contrastes (cordas e sopros líricos lado a lado com "wurlitzer", duras programações rítmicas, theremin, "bruitage" electrónica e até um "sample" da banda sonora de The Forbidden Planet, de Bebe e Louis Barron) e, de um modo geral, um espírito de "lullabies" assombradas, surdamente claustrofóbicas ("I breathe in and out while I try to focus, when I feel ok I twist my mouth to save what little air is left").
Halloween, Alaska - versão de "I Can't Live Without My Radio" de LL Cool J.
Há fantasmas e demónios idênticos a pairar sobre o segundo álbum dos Halloween, Alaska. O de Sylvian, certamente, mas, sobretudo, a sombra azul-cobalto dos Blue Nile, a cenografia de veludo-pop dos Prefab Sprout, a imponderável transparência de alguns momentos de Up, de Peter Gabriel. James Diers canta como um Mark Eitzel capturado pelas imagens de um filme de Atom Egoyan, as canções (incluíndo uma versão espectral de "State Trooper", de Springsteen), entre sintetizadores em movimentos de maré, linhas de baixo circulares e um ou outro estilhaço de luz da guitarra, dissolvem-se como neblina, e todo o disco desce como um requiem noturno ("A boy with such sad wings should stay off tall buildings and keep away from high wires, no circus left to join, nobody, just Des Moines") sobre a "skyline" paralisada das cidades.
(* segundo David Thomas: "The first Pere Ubu record was meant to be something that would gain us entry into the Brotherhood of the Unknown that was gathering in used record bins everywhere")
O ESPÍRITO DO LUGAR
Buddy & The Huddle - Music For A Still Undone Movie Maybe Called "Suttree"
Na terminologia do espiritismo, a isto, chama-se "channelling": a abertura de um canal através do qual se torna possível a passagem e incorporação de um espírito noutro corpo físico. Foi exactamente isso que aconteceu com Roland Kopp e Michael Ströll, aliás, Buddy & The Huddle, em Music For A Still Undone Movie Maybe Called "Sutree". Mas, neste caso, numa dimensão que excede claramente a superfície de uma mesa de pé de galo. O espírito que eles incorporaram foi o de uma cultura, de um lugar e de uma música inteiros. Music For A Still Undone Movie Maybe Called "Suttree" é a banda sonora imaginária para um filme imaginário realizado a partir de um potencial argumento real, o romance Suttree, do escritor sulista norte-americano Cormac McCarthy.
Cormac McCarthy
E foi justamente a paisagem geográfica, espiritual e humana desse mesmo Sul mítico de Faulkner ou Flannery O'Connor reencenada pela história e pelas personagens de McCarthy (em Knoxville, no Tenessee) que serviu de ponto de partida e de inspiração para o projecto de Kopp e Ströll. O detalhe mais desconcertante é que — como os seus apelidos deixam adivinhar — ambos são alemães, tendo-se deslocado propositadamente ao Tenessee para absorver a atmosfera local. Foi, decerto, aí que o "channelling" teve lugar. Kopp e Ströll deixaram-se literalmente possuir pelo espírito do lugar que já antes se entranhara em McCarthy (embora sulista pelo estilo, nasceu em Rhode Island) e criaram aquele que é, indiscutivelmente, um dos mais assombrosos álbuns genuinamente norte-americanos. Porque a verdade é que este Sul "fake" e virtual (tal como o de Paris, Texas do também alemão Wim Wenders) é mil vezes mais real do que a realidade.
Utilizando uma variedade de cordas, sopros e percussões tanto "locais" como "universais" (banjo, bandolim, lap-steel guitar, resophonic guitar, vibrafone, marimbafone, glockenspiel, acordeão, didgeridoo, sampling, guimbarda, sax, tuba, trompete, quartetos de cordas), a orientação nunca foi, contudo, a do documentarismo etno-antropológico. O mergulho na América profunda e no ambiente da narrativa de McCarthy é que determinou o rumo da criação musical e das diversas escolhas que se sucederam nesta sequência de vinte e cinco instantâneos musicais que obedecem exclusivamente a um ordenamento do tipo "stream of consciousness". Do country desolado e metafísico às trompetes mariachi, ao rockabilly e ao jazz/cabaret de fim de noite passando por paisagens sonoras que poderiam ter sido assinadas por Ry Cooder, Jon Hassell ou Tom Waits ou pelos "separadores" cirurgicamente extraidos do idioma minimalista, Music For A Still Undone Movie Maybe Called "Suttree" é uma permanente alucinação que paira sobre uma geografia paralela. Tanto mais perturbadora quanto se descobre como ela coincide ponto por ponto com a imagem que os verdadeiros mapas revelam. (1998)
(* segundo David Thomas: "The first Pere Ubu record was meant to be something that would gain us entry into the Brotherhood of the Unknown that was gathering in used record bins everywhere")
Lullaby Baxter Trio - Capable Egg
Pode não se gostar de um disco que contém uma canção com o supremo refrão zen "ding a ling morning, ding a ling night, just stay stupid, that's all right"? É difícil, muito difícil, mas pode-se. Mas ainda não é o caso de Capable Egg, possivelmente o mais apetecível cocktail de Primavera inventado por uma ex-call-girl e pelos veteranos de guerra de Tom Waits agrupados sob o nome de Oranj Symphonette que, reunidos, respondem, agora, pelo nome de Lullaby Baxter Trio. Antes de ter sido influenciada por Billy Wilder para o novo baptismo, a menina ítalo-canadiana "com um passado" dava pelo nome de Angelina Teresa Iapaolo e começou por travar conhecimento com Marc Ribot, o guitarrista de toda a Nova Iorque "downtown", que a convenceu a desaprender o muito pouco que sabia acerca de tocar guitarra.
Foi por sua indirecta via que Angelina/Lullaby chegou aos notórios Ralph Carney, Joe Gore, Matt Brubeck, Pat Campbell, Rob Burger e Steve Kirby e que acabou por gravar esta estupenda colecção de magníficas canções preguiçosas com letras escritas pelo excelentíssimo "beau" de serviço, Lutwidge Sedgwick, e música composta entre "vaudevilles" decadentes, golpes de acordeão, chamberlins analógicos, valsas evaporadas, Farfisas e Hammonds jurássicos, bandolins, orgãos de fole e outras peças do museu sonoro mundial. Alimentada a Shirley Horn ou Ella Fitzgerald, fascinada por Annie Lennox e umas quantas outras vozes, Angelina/Lullaby inventou uma personagem de "chanteuse" jazz, folk, swing, "trad", heterodoxa. E que a autoriza a cantar coisas como "infinity's pretty measly after all, like a donkey doing cartwheels down the hall, so hand out straightjackets on sinking ships, just quit calling me Miss Apocalypse". Nunca nos passou pela cabeça chamar-lhe isso mas, francamente, queremos mais. (2000)
(* segundo David Thomas: "The first Pere Ubu record was meant to be something that would gain us entry into the Brotherhood of the Unknown that was gathering in used record bins everywhere")
Anywhen - The Opiates
O melhor disco de Jeff Buckley. O melhor disco de David Sylvian. O melhor disco de John Cale. O melhor disco dos Tindersticks. O melhor disco de Scott Walker. O melhor disco dos Blue Nile. O melhor disco dos Divine Comedy. Sim, esses todos são apenas um só, chama-se The Opiates e a entidade colectiva na qual as outras, individuais, se materializam dá pelo nome apropriadamente vago de Anywhen e provém de Gotemburgo, na Suécia. É, aliás, para música como esta que deveria ter sido expressamente inventado o termo "fusão" mas nunca naquele sentido em que nos habituámos a empregá-lo. Porque o que neste álbum se passa é verdadadeiramente uma assombrosa fusão, dir-se-ia, espiritual, de personalidades musicais que nada tem rigorosamente a ver com o habitual jogo de referências cruzadas, de citações e pequenos furtos estéticos em que se transformou considerável parte da frivolidade "pós-moderna" (muitas vezes paradoxalmente interessante) da música actual. Aqui convém dizer que, na realidade, a "entidade colectiva" é, afinal, ela própria, quase individual. A saber, o sociofóbico Thomas Feiner (esporadicamente acompanhado pelo que resta dos Anywhen originais, músicos dispersos e, essencialmente, a orquestra sinfónica de Varsóvia), polo magnético de atracção para o qual converge uma espécie de campo de forças estético múltiplo que dá origem a uma variedade de esquizofrenia ou "split personality" musical onde, e é isso mesmo o mais impressionante, a psicopatologia adquire uma coerência, lógica e método absolutamente convincentes.
Numa única canção (transportada por avassaladoras orquestrações sinfónicas, assente unicamente sobre dispersos arpejos de piano ou guitarra ou recorrendo a secções de sopros sobre fundo subliminar de "bruitage" indistinto) e em todas elas, de um momento para outro, perplexos, ficamos sem ser capazes de dizer se são Stuart Staples ou Sylvian que cantam, se estamos a escutar Paul Buchanan ou John Cale (o de Music For A New Society ou o de Paris 1919?), se foi a alma de Jeff (ou Tim?) Buckley que, sob o efeito de qualquer "opiate", desceu sobre esta música e, irremediavelmente, se apossou dela, transformando-a num campo de batalha entre sombras e espectros. Pelo meio, segundo Feiner, há algo como um programa de vida retirado da compreensão do sentido de uma linha de diálogo de "Fight Club": "Doing a job we hate to buy things we don't need". Dito apenas assim, parece (parece?) demasiado prosaico para a transcendência de The Opiates. Mas, lá dentro, em pronunciamentos como "Here come greetings from the fires of dusk, from all the places you never dared to walk, you never saw the silent battle zones beneath your towers and beneath your gardens", há muito mais substancial matéria de reflexão. Vivam sem este disco, se forem capazes. (2001)
(* segundo David Thomas: "The first Pere Ubu record was meant to be something that would gain us entry into the Brotherhood of the Unknown that was gathering in used record bins everywhere")
Leila - Like Weather
Leila Arab é irmã de Roya Arab, a excelsa cantora de origem iraniana que conhecemos em Londinium, dos Archive. Além disso, foi ouvida a tocar teclados em Debut, de Björk, e, mais tarde, desempenhou a missão de "live sound engineer" durante a digressão de Post. Como cartão de apresentação, é razoavelmente suficiente. Mas, à parte esse currículo e um curso universitário de "media studies" (que, hoje, no meio de uma entrevista, lhe permite dizer com a arrogância indispensável "You want to get pretentious? I'll tell you about Czech cinema, buddy. I wrote the fucking book on pretentious!"), é agora importante fazer saber que, em completo regime de produção doméstica - isto é, gravando no quarto convertido em estúdio com a colaboração dos amigos mais íntimos -, ela acaba de publicar o que se arrisca a ser um dos mais importante álbuns de 1998. Like Weather, o título, foi sugerido por uma observação casual de Graham Massey (dos 808 State) mas, na verdade, descreve fielmente o que o disco contém: aquela variedade de arquitectura atmosférica contemporânea que Björk mas também Tricky, os Alpha, Attica Blues ou (muito a propósito) os Archive praticam, entre um discreto impressionismo geométrico de raiz electrónica e a memória de uma certa soul mais recordada do que realmente presente.
(c/ Donna Paul)
"Something" e "Don't Fall Asleep", os temas iniciais, são o género de manifestos minimalistas que, em meia dúzia de compassos e ainda menos conceitos sonoros, estabelecem as regras do jogo: um desenho rítmico de configuração mais ou menos variável, uma sucinta ideia de encenação do espaço, o fantasma de uma melodia e o absoluto essencial de adereços. "Underwaters" recua ainda mais em puro jogo de equilíbrio entre frentes sonoras de altas e baixas pressões. Depois, "Feeling" e "Blue Grace" propõem o tipo de esboços que se diriam urdidos em torno de uma amostra laboratorial do código genético de Tricky e "Space Love" oferece um fabuloso exercício de relojoaria poética para autómatos em busca do lirismo perdido. A primeira metade define a totalidade do disco e, com as vozes de Luca Santucci, Donna Paul e Roya Arab enquanto protagonistas eventuais de cada tema, ilustra bem a meteorologia de uma alma de que "Misunderstood" (já a meio da segunda metade) é a radiocardiografia exacta e o tema anónimo de "piano-strings" a banda sonora assimétrica.
Obra prima? Deixem-me ouvir mais umas boas vinte vezes e então eu digo. (1998)
(* segundo David Thomas: "The first Pere Ubu record was meant to be something that would gain us entry into the Brotherhood of the Unknown that was gathering in used record bins everywhere")
Minotaur Shock - Chiff-Chaffs & Willow-Warblers
Tudo começou quando David Edwards decidiu apropriar-se do computador Atari de um budista de partida para o Tibete em demanda espiritual. Em lógica sequência, vendeu-o a um hippy e comprou um PC. O resultado foi a transformação de Edwards em Minotaur Shock, dois EP iniciais — Bagatelle e Motoring Britain — e, agora, este primeiro CD de longa duração. Tal como aos igualmente óptimos Manitoba e Boards Of Canada (ou aos bem mais antigos Ultramarine), foi-lhe colado o rótulo de "folk-tinged electronica" ou "futuristic fractured folk-music". A preguiça catalogadora é o que é mas até nem tem mal. Embora Chiff-Chaffs & Willow-Warblers seja consideravelmente mais do que isso.
O quê, então? Talvez a banda sonora para uma narrativa serenamente esquizóide realizada a partir de vertiginosas flutuações de "pitch" como ondulações de maré, interferências de rádio sobre extáticas transcrições sonoras do momento da aura epiléptica, obstinações de micro-melodias justapostas a frenesins de arritmia caótica, aguarelas bucólicas para rebanho, jardim zen e estenografia dadaísta, polaróides do luar nos Alpes de Urano, estilhaços microscópicos de ornamentos barrocos enxertados num monólogo de insectos, exercícios de aquecimento para os primeiros três segundos de uma cerimónia de defuntos, divertimentos para caixa de música e pianola num circo de gnomos, "rêveries" de absinto vertido a conta-gotas sobre uma paisagem de Legos, coreografias mecânicas para um exército liliputiano no palco de um clube de jazz. Provavelmente, a música que se escutará quando ao engenho do universo começar a faltar a corda. (2002)