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09 June 2017

23 August 2016

AINDA MAIS


Tenha sido o poeta Robert Browning, o pintor Ad Reinhardt, ou o arquitecto Mies Van der Rohe a criar o conceito “less is more”, a verdade é que, por muita selva – estética, política, filosófica – que o minimalismo tenha desbravado, persiste um considerável número de fortalezas que essa ideia nunca conseguiu assaltar. Uma das mais inexpugnáveis praças-fortes é, sem dúvida, a indústria discográfica. Só um exemplo: Jeff Buckley que, em vida, gravou um único álbum (Grace, 1994), entre compilações e registos ao vivo, possui, actualmente, uma discografia póstuma com dez títulos, um box-set de cinco CD e cinco DVD. Mais é sempre mais e nunca é suficiente. Exactamente aquilo que, no "booklet" indesculpavelmente... err... minimal (quinze curtas linhas laconicamente informativas) de .. It’s Too Late To Stop Now... Volumes II, III, IV & DVD, fica absolutamente explícito quando afirma que oferece “even more of Van Morrison and The Caledonia Soul Orchestra”


Para que conste, o volume I (intitulado apenas It’s Too Late To Stop Now e publicado em Fevereiro de 1974) é consensualmente considerado um dos mais memoráveis álbuns "live" de sempre: incluindo gravações de concertos do ano anterior, no Troubadour, de Los Angeles, no Santa Monica Civic Auditorium e no Rainbow, em Londres – nos quais Morrison se fez acompanhar da Caledonia Soul Orchestra, uma sobrenatural máquina de fazer música (rock, jazz, folk, blues, soul) de onze elementos –, apanha-o naquele instante supremo como intérprete de palco que o transformaria numa “religião” para Springsteen e a E-Street Band. Para trás, estavam Astral Weeks (1968), Moondance (1970), His Band and the Street Choir (1970) Tupelo Honey (1971) Saint Dominic's Preview (1972) e Hard Nose the Highway (1973) e seria daí (e do reportório dos mestres Sam Cooke, Willie Dixon, Ray Charles ou Muddy Waters) que extrairia o combustível para esta avassaladora demonstração do “inarticulate speech of the heart”. O “even more” anunciado (à excepção do DVD registado no Rainbow), consiste, então, de um eleborado jogo de tabuleiro em que os temas, todos, alegadamente, “previously unissued”, são, inevitavelmente, os mesmos embora retirados de concertos diferentes. Mas, tratando-se de Van Morrison, quem ousaria queixar-se da pequena trafulhice?

03 October 2014

Sonny Boy Williamson, Muddy Waters, Lonnie Johnson, Big Joe Williams, Lightnin’ Hopkins, Sugar Pie DeSanto, Howlin’ Wolf, Big Joe Turner, and Sister Rosetta Tharpe perform in the UK 
(1963-66)

(daqui)

28 May 2014

THIS COULD BE THE LAST TIME 



Antes de tudo o que, a seguir, virá: nunca esquecer que, quando, em 1961, Mick Jagger e Keith Richards se mudaram de Dartford para Chelsea, em Londres, e aí conheceram Brian Jones, este e Richards começaram imediatamente a planear a formação de uma banda de rhythm’n’blues mas Jagger, pondo a render os seus sete O-levels e três A-levels, tratou de inscrever-se na London School Of Economics que frequentaria até 1963. Sublinhar “Economics”. Louvem-se, então, os benefícios que uma boa educação universitária pode proporcionar, constatando como, na lista das 20 mais lucrativas tournées de sempre, os Stones inscrevem quatro presenças: “A Bigger Bang Tour” (558 milhões de dólares, 2005 / 2007, em 2º lugar – apenas atrás do “U2 360º Tour” –, e a maior digressão norte-americana alguma vez realizada); “Voodoo Lounge Tour” (320 milhões, 1994 / 1995, 10º lugar); “Licks Tour” (311 milhões, 2002 /2003, 11º lugar); e “Bridges To Babylon Tour” (274 milhões, 1997 / 1998, 14º lugar). Destacadamente à frente de Bruce Springsteen, Madonna e U2 que se quedam, cada um, com duas entradas. 


Insistindo nos números astronómicos – vendas de discos, assistências record, dimensões de palco, parafernália de adereços e maquinaria, consumo de fármacos capaz de abastecer um hospital de grande dimensão –, poderia continuar a traçar-se uma biografia estatística paralela dos Rolling Stones. Porém, ficando só por aqui, deverá ser bastante para justificar por que motivos se tornou inevitável ouvir chamar-lhes “a maior banda de rock’n’roll de todos tempos”: aqueles que, em início de carreira, eram publicamente apresentados na qualidade de “pervertidos, ofensivos, violentos, repulsivos, feios, sem gosto, incoerentes, e isso é o que têm de bom” e sobre quem se lançava a insidiosa maldição “deixaria, alguma vez, a sua filha casar com um Rolling Stone?...”, terão excedido gostosa e largamente os traços negativos desse perfil mas isso não os impediu de se transformarem no género de gestores de negócios que poderiam dar "masterclasses" a quem se ocupa de maximizar lucros (não fazendo grande questão de reduzir despesas).



Razão adicional para vir a constituir-se em "case study", é o facto de a administração bicéfala da empresa – Jagger/Richards – atribuir pouca ou nenhuma importância ao chamado “bom ambiente de trabalho”. Sim, é verdade que tudo começou como vem descrito nos contos de fadas pop (a história dos dois miúdos ex-colegas da primária que se reencontram, anos mais tarde, já adolescentes, numa estação de comboios, com álbuns de Chuck Berry e Muddy Waters debaixo do braço), mas também será útil saber que, desde há cerca de quarenta anos, as relações entre ambos azedaram seriamente e, pelo menos, há vinte, nenhum ousa entrar no camarim do outro. Um dos pontos de não retorno aconteceu a meio da década de 80: Mick Jagger regista o primeiro álbum a solo (She’s The Boss, 1985) enquanto, em Paris, com sessões de gravação cuidadosamente planificadas para que nunca ambos se cruzassem, Keith Richards se ocupa praticamente sozinho do que viria a ser Dirty Work (1986). Sentindo-se traído, chega a colocar a hipótese de convidar Roger Daltrey, dos Who, para substituir Jagger. A usurpação da coroa não teria lugar mas, de entre as 27 canções que Richards leva para estúdio, várias (nenhuma seria publicada) ostentam títulos como “Fight”, “Had It With You” e “Knock Your Teeth Out”.



O pior de tudo: nada disto são intrigas de jornalismo de sarjeta, foi o próprio Keith Richards que o revelou na autobiografia Life, publicada há quatro anos (meses antes, recusara-se a aparecer no festival de Cannes por ocasião da apresentação de Stones In Exile – um documentário de Stephen Kijak sobre a gravação de Exile On Main St. – por entender que este prestava desproporcionada atenção a Jagger), espécie de ajuste de contas com o passado, na qual tece considerações acerca do insuficiente calibre de determinadas zonas anatómicas de Mick Jagger (a quem tratava, amavelmente, por “Brenda”, “Miss Jagger”, “Queen Mother” e “Her Ladyship”), revela detalhes sobre a variabilíssima geometria do quadrilátero formado por ambos, Marianne Faithfull e Anita Pallenberg, e desabafa, confessando que “viver com Jagger era como ser obrigado a cuidar de um periquito irritante”.


Não surpreende, assim, que a digressão “50 & Counting...“, de 2012 / 2013 (87.7 milhões, 18 concertos), destinada a comemorar o 50º aniversário da banda, tenha sido menos uma amistosa confraternização de antigos combatentes do que o resultado de uma frenética coreografia de reuniões entre advogados e managers assoberbados com uma missão de complexidade equiparável à de uma cimeira política no Médio Oriente. O que, naturalmente, coloca também um gigantesco ponto de interrogação sobre o seu prolongamento deste ano (a denominada “14 On Fire”, iniciada a 21 de Fevereiro em Abu Dhabi e com final previsto para 22 de Novembro, em Auckland, na Nova Zelândia): será esta a última vez que os Rolling Stones pisarão um palco?



Nada menos provável. Ao contrário de algumas pérfidas más-línguas que qualificam os actuais concertos dos Rolling Stones como “a noite dos mortos-vivos”, a capacidade para activar a velha máquina mantêm-se intacta e a empresa não perdeu o apetite pelo lucro. Mick Jagger afirma que já só pensa em “sequências de 20 concertos de cada vez” e sabe melhor do que ninguém que, embora a banda, desde há muito, tenha desistido da ambição de publicar música nova à altura dos seus clássicos, por esta altura – mesmo para grupos da dimensão dos Stones –, o pote de ouro já não se encontra no topo das tabelas de vendas. Muito mais valioso é ter sempre à mão um reportório pronto-a-usar, um stock de imagens, memórias, tiques e reflexos condicionados que, com um estalar de dedos, por maior uso que já lhe tenha sido dado, continua a produzir efeito e a encher estádios e arenas. E deixar pairar a dúvida acerca de quando chegará o fim – e a certeza de que ele, irremediavelmente, chegará não é o menor dos trunfos – será, paradoxalmente, o melhor seguro de vida: haverá sempre uma interminável multidão ávida de poder contar que “estava lá” no dia em que, depois de Elvis, depois dos Beatles, Hendrix e Cobain, real ou metaforicamente, uma vez mais, “the music died”.



Até porque a outra omnipresente estatística que nos informa encontrarem-se já todos para lá da fasquia dos 70 anos (à excepção do garoto Ronnie Wood, à beira dos 67) ainda não parece demasiado próximo de vir a ser, verdadeiramente, um obstáculo. Em Setembro passado, no “Financial Times”, Gillian Tett (editora adjunta e analista financeira, uma miudinha de 47 anos), lançando o anzol para outros mares, tomava-os como pretexto, a propósito de um concerto da tournée “50 & Counting...“ a que assistira. Após babar-se perante “o extraordinário atleticismo e magnetismo sexual” do “sobrenatural Jagger, de jeans pretos justos”, Tett interrogava-se: “Ter à frente um grupo de homens nas sétima e oitava décadas de vida, com uma média de idades aparentemente mais elevada do que a dos juízes do Supremo Tribunal norte-americano (...) e, nos EUA e na Europa, tecnicamente, na idade da reforma, a abanar o rabo e rockando furiosamente, dá que pensar: se ‘pensionistas’ são capazes de dançar assim tão freneticamente em palco, durante horas, não será altura para repensar todo o conceito de reforma?” E, vendo bem, se nos recordarmos que eles se forjaram no molde dos velhos bluesmen, basta pormos os olhos em John Lee Hooker que tocou até aos 83, em B.B. King que está a um passo dos 90 mas ainda não levantou os dedos das seis cordas da inseparável Lucille ou em Chuck Berry que, aos 88, continua por aí...

07 May 2014

A SOBREMESA 


Numa das inúmeras efabulações que Tom Waits dispara mal lhe colocam um interlocutor à frente, contava ele que, uma noite, numa loja de donuts, na esquina de Ninth e Hennepin, em Minneapolis, “o Chuck E. Weiss e eu estamos a beber café ao balcão quando somos apanhados no meio de uma guerra entre dois chulos de treze anos. (...) As balas acertam no fogão, numa nota de dólar emoldurada e num cão de porcelana. O Chuck e eu atiramo-nos ao chão no momento em que a 'jukebox' começa a tocar 'Our Day Will Come' da Dinah Washington. Todas as balas que lhe acertam mudam a selecção da 'jukebox' e cada canção é mais comovente que a anterior”. Conhecemos Chuck E. Weiss através de pouco mais do que episódios destes, por Waits o referir em "I Wish I Was In New Orleans" (e haver co-assinado com ele "Spare Parts", em Nighthawks At The Diner) e Rickie Lee Jones ter escrito "Chuck E’s In Love". Fora disso, para o mundo, Weiss é virtualmente inexistente, apenas uma personagem secundária nas biografias de outros.



E, aparentemente, dá-se bem com isso: se, pelo fim da década de 60, já tinha acompanhado lendas como Lightnin’ Hopkins, Muddy Waters ou Willie Dixon, durante os anos 70, deambulou pela cena do Tropicana Motel, de Los Angeles, em 1981, apercebeu-se que, lhe tinham publicado um álbum de demos que, imediatamente, excomungou e, durante os 18 anos seguintes, confessa candidamente, “andou distraído”. Talvez alarmado pela proximidade do fim do milénio, em 1999, gravou a estreia oficial, Extremely Cool (era mesmo) e, vertiginosamente, 2 anos depois, Old Souls & Wolf Tickets. Descansou 6 anos antes de 23rd & Stout e precisou de 7 para o actual Red Beans And Weiss. Não é, definitivamente, desta massa que se constroem os grandes impérios mas Weiss nunca jurou fidelidade a Max Weber. Basta-lhe – e ninguém reclama – ir apurando infinitamente o tempero da grande caçarola de blues, cajun, rockabilly, boogie, jazz e mariachi, cuidar dos três gatos domésticos e de mais meia dúzia de vadios, exibir as afinidades, à moda de Sgt.Pepper, na capa do álbum (de Rimsky-Korsakov a Lester Young, Hank Williams, Bessie Smith ou... os gatos) e, como respondeu a Waits quando este lhe perguntou que parte de uma refeição era ele, imaginar-se como “uma sobremesa: depois, a seguir, ainda há o café e, se calhar, a repetição”

18 November 2012

COWBOY QUEEN MARGO



A uma semana das eleições presidenciais norte-americanas, a canadiana Margo Timmins confessava um enorme alívio pelo facto de a sua nacionalidade não lhe permitir escolher entre Barack Obama e Mitt Romney (“embora nesse nunca votasse, mete-me medo!”). Porque se, noutros países, podem existir dilemas eleitorais igualmente problemáticos, “pelo menos, temos o conforto de saber que as decisões do primeiro-ministro do Canadá não irão afectar o mundo inteiro. Nos Estados Unidos, a responsabilidade é imensa!” E, contudo, como ela explica pormenorizadamente, foi, justamente, às músicas e à tradição do vizinho do Sul que os Cowboy Junkies, pelo meio dos anos 80 do século passado, foram colher a matéria que, sem sequer se darem muito conta disso, transfiguraram completamente, convertendo-a naquela entidade fugidia a que só se pode chamar “uma canção dos Cowboy Junkies”. 

Há um aspecto da história dos Cowboy Junkies que me parece nunca ter sido verdadeiramente investigado e que são as vossas discretíssimas metamorfoses: começaram com Whites Off Earth Now!!, um álbum de blues eléctricos; a seguir, apareceu a assombração de The Trinity Session, totalmente fora de quaisquer categorias; e, depois, converteram-se numa espécie de padrinhos (e madrinha) de toda a "alternative country" posterior. E tudo isso sem grande burburinho, como se fosse algo de absolutamente natural. Houve alguma espécie de planeamento nesse percurso? 
Não, nunca planeámos coisa nenhuma. Tocámos sempre a música que nos apetecia e aquilo que a indústria ou os críticos possam dizer é, exclusivamente da sua responsabilidade. Nunca perdemos tempo a discutir sobre isso no interior da banda. Podem classificar-nos como desejarem que isso não nos incomoda.


Mas alguma coisa de importante deve ter-se passado para saltar de um álbum como Whites Off Earth Now!! para The Trinity Session...
Eu conto-lhe: no início, por volta do final dos anos 70, início de 80, éramos todos fãs de punk-rock, era uma coisa muito importante para nós. Como, para além do punk, não sabíamos o que haveríamos de escutar, começámos a ouvir imensos blues... velhos blues do Delta, coisa inteiramente nova para nós, ainda muito jovens. Foi daí que surgiu Whites Off Earth Now!! 

Mas estabeleciam uma ligação entre o punk e os blues? 
Quando éramos adolescentes ouvíamos as grandes bandas como os Rolling Stones ou David Bowie. Com o aparecimento do punk, não podíamos voltar atrás, para esse rock clássico, não porque tivéssemos deixado de gostar dele mas porque já o conhecíamos demasiado bem. E, como estávamos um pouco perdidos, sem saber por que caminho seguir, depois do punk – que era tão forte, tão intenso, tão cheio de fúria e coisas para dizer –, os bluesmen pareceram-nos semelhantes, eram os punk rockers da sua época. Foi assim que nos lançámos à descoberta de Robert Johnson, Muddy Waters, Howlin’ Wolf. Fazia bastante sentido: eram igualmente verdadeiros e autênticos. Em Whites Off Earth Now!!, não há, praticamente, originais, são quase todas velhos blues... enfiávamo-nos na garagem, começávamos a tocar e, muitas vezes, eu cantava aquilo que tinha estado a ouvir à tarde. (risos) Durante a digressão desse álbum, andámos pelos EUA, numa carrinha, e, nessa altura, a meio dos anos 80, gente como o Dwight Yoakam, Lyle Lovett e Steve Earle, estavam a aparecer. Ouvíamo-los, líamos o que diziam nas entrevistas onde falavam dos Louvin Brothers e da mais antiga country de que desconhecíamos tudo. No Canadá, a folk é importante mas a country nem por isso. Claro que conhecia o Johnny Cash ou o Willie Nelson mas não os escutava assim tanto. Como andávamos pelo Sul, a maioria das estações de rádio passava country. Decidimos ir a Nashville, ao Country Music Hall Of Fame. Foi uma enorme revelação. E o mais impressionante eram as letras. Quando regressámos a casa, a Toronto, para gravar The Trinity Session, estávamos encharcados em country, o que passou para o álbum. E é curioso porque essas não eram as nossas raízes. Porque antes de sermos músicos, somos fãs. 



Mas lembro-me bem que, quando escutei The Trinity Session pela primeira vez, com toda aquela rarefacção sonora, os enormes espaços vazios e a Margo pairando sobre tudo aquilo como uma Vénus de Botticelli... aquilo não era country!

(risos) Porque nós não éramos uma banda country nem pretendíamos sê-lo. Pegámos em canções da Patsy Cline ou do Hank Williams mas sabíamos que não éramos uma banda de country. Aliás, também nunca fomos uma banda punk ou de blues. Queríamos apenas fazer música, sem reflectir demasiado sobre isso. O que nos interessava era o espírito das canções e se gostávamos ou não delas. E, ainda hoje, continua a ser assim. Nunca paramos para pensar se ‘isto soa a uma canção dos Cowboy Junkies’. Uma ‘canção dos Cowboy Junkies’ é apenas uma canção que nós tocamos. 

Nesse álbum, no entanto, definiram uma sonoridade e uma atmosfera totalmente pessoais em que parecia que, no lugar de tocarem notas musicais, as subtraíam, deixando um rasto mínimo que era, afinal, o vosso rasto... 
É curioso como isso aconteceu de uma forma completamente natural. Éramos músicos muito jovens, para ser honesta, não sabíamos ainda muito bem o que fazíamos, eu nem tinha, realmente, a certeza se cantava bem... com toda a nossa inexperiência, optámos por, em caso de não saber o que fazer, não tocar! (risos) Gostava de poder de dizer que éramos génios e que foi tudo planeado, mas não foi. Se existiu alguma genialidade foi no facto de não termos tido medo dos espaços em branco, de não sentirmos necessidade de os preencher de qualquer maneira. Mas também não pensávamos que alguém fosse escutar o álbum.

O sucesso dele surpreendeu-vos?
Totalmente. E, todos estes anos depois, ainda nos surpreende que as pessoas escutem The Trinity Session e continuem a reagir de uma forma tão apaixonada.



Uma característica também muito vossa é o facto de terem sempre gostado de realizar versões de canções de outros autores. Como seleccionam essas canções de que decidem apropriar-se? 
Muitas acontecem por acaso, Como dizia há pouco, antes de sermos músicos somos fãs e, quando escuto uma canção de que gosto, penso logo em como seria bom poder cantá-la. E, por vezes, se estamos a trabalhar para um disco, uma ou outra delas, parece poder integrar-se bem. Experimentamos e o critério de aceitação é saber se conseguimos transformá-la em coisa nossa. Se isso não acontece, não vale a pena. A canção já existe por si mesma e não precisa de nós para nada. Fazemos isso frequentemente e há uma boa quantidade delas que nunca irão sair do estúdio. Mas aprendemos muito com isso, é como uma espécie de escola. Até como ouvinte de música penso que oferecemos alguma coisa de nós às músicas, interpretamo-las... 

A mesma canção nunca é igual para ouvintes diferentes e, por vezes, o ouvido de quem a escuta é mais talentoso do que o cantor ou o próprio autor... 
Adoro essa ideia! Acaba por ser tudo uma questão de interpretação: uma boa canção faz-nos sempre pensar ou, pelo menos, levantarmo-nos e dançar. 

Sendo vocês uma banda canadiana, por que motivo nunca vos apeteceu pegar numa canção de Leonard Cohen? 
Essa é uma boa pergunta. E sabe porquê? Tem tudo a ver com o que lhe contei antes. No nosso estúdio já gravámos muitas canções do Leonard Cohen. Mas nunca autorizámos nenhuma a sair cá para fora! (risos) Para nós, ele é enorme e as canções são perfeitas. Mas acabo sempre a cantá-las como ele as cantaria, sinto que não lhes acrescentei nada de importante, só a minha voz é diferente. Há-de acontecer, um dia. Há meses, numa cerimónia em que lhe foi atribuído o Glenn Gould Prize, convidou-nos para cantarmos, em palco, algumas canções dele... e ele estava lá! (risos) Foi uma sensação terrível: ele, ali mesmo ao pé, nós a querermos fazer o melhor possível e a ter consciência de que nunca iríamos conseguir chegar lá!...

19 September 2012


INVENTÁRIO DO HORROR


Bob Dylan - Tempest

Houve um pequeno momento de pânico quando, há meses, Bob Dylan confidenciou à “Rolling Stone” estar a considerar a possibilidade de o seu próximo álbum incluir predominantemente “temas religiosos”. Tratar-se-ia de uma assustadora recaída? Iria ele entrar em vertiginosa marcha atrás até à sua idade das trevas privada enquanto "born-again christian" - os anos dos terríveis Slow Train Coming (1979), Saved (1980) e Shot Of Love (1981) – e colocar um triste ponto final na magnífica série iniciada em 2001 com Love & Theft? Falso alarme, afinal. Aqui e ali, haverá uma ou outra afloração do que poderia ter acontecido (um “there is no understanding for the judgement of god’s hand”, por exemplo, mas devidamente legitimado pelo contexto), no entanto, em Tempest, o Dylan que reencontramos é, como escreveu Greg Kot no “Chicago Tribune”, a reencarnação do xerife Ed Tom Bell, de No Country For Old Men, dos irmãos Coen: pelo mundo, o mal e a devastação triunfam mas o que deve ser feito tem de fazer-se. E, sem a menor sombra de sentimentalismo e um grau de virulência digno dos seus mais gloriosos instantes, ele mete mãos ao trabalho de inventariar os horrores e os facínoras e de os expor em toda a sua ignomínia.


Como que em irónica manobra de diversão, tudo começa com a chegada de um "slow train" vindo de Duquesne, cujo “whistle” apita “like the sky is going to blow apart”. O céu não explode mas, fiel ao que, citando o Shakespeare de Júlio César, anuncia em "Pay In Blood"  - “I came to bury not to praise” –, as imprecações e o "body count" nunca mais terão fim. É bem possível que as várias temporadas do programa de rádio semanal  (“Theme Time Radio Hour”) que Bob Dylan, entre 2006 e 2009, manteve na XM Satellite, lhe tenham apurado o gosto pelas formas e géneros musicais anteriores à época em que ele próprio mudou o curso da música popular. Porque, aqui, tudo opera em modo de bar de estrada possuído pelos vetustos espectros dos blues, do rockabilly, da country, do swing, do gospel, do vaudeville ouda folk mais encardida. 



Pegue-se em “Early Roman Kings”: ascendência em "Hoochie Coochie Man", de Willie Dixon, via Bo Diddley ("I’m A Man") ou Muddy Waters ("Mannish Boy"), com o acordeão de David Hidalgo no lugar da previsível harmonica e uma invectiva digna de "Masters Of War": “they’re peddlers and they’re meddlers, they buy and they sell, they destroyed your city, they’ll destroy you as well, they’re lecherous and treacherous, hell bent for leather, each of them bigger than all of them put together (…) I could strip you of life, strip you of breath, ship you down to the house of death”. Ou "Pay In Blood", riff-murro nos cornos e “Night after night, day after day, they strip your useless hopes away, (…) I’ve been through hell what good did it do? You bastard, I’m supposed to respect you? I’ll give you justice, I’ll fatten your purse, show me your moral virtue first, I’ll pay in blood but not my own”. Considerem-se ainda duas "murder ballads" ("Tin Angel" e "Scarlet Town"), uma derivação dos Mississipi Sheiks ("Narrow Way": “We looted and we plundered on distant shores, why is my share not equal to yours, your father left you, your mother too, even death has washed his hands of you”), a imensa canção-título (14 minutos de alucinações sobre o Titanic tomados de empréstimo à Carter Family) e, à excepção da dispensável evocação de John Lennon ("Roll On John"), podemos ficar certos que o álbum publicado 50 anos após o da estreia de Bob Dylan, é coisa tão indispensável como (quase) tudo o que veio depois de 1962.

11 May 2009

OS DIAS DA RÁDIO


Bob Dylan - Together Through Life

Como diria Margaret Atwood, "o contexto é tudo". E isso, no que diz respeito à devida apreciação do último álbum de Bob Dylan, adquire toda uma importância suplementar. Antes de mais, tome-se nota que ele próprio faz questão de nos colocar nas mãos – na edição "deluxe" de Together Through Life – a chave essencial para a descodificação: um CD extra com a edição número 17 ("Friends & Neighbors") do seu programa, "Theme Time Radio Hour", na XM Satellite Radio e, posteriormente, na Sirius Satellite Radio. Os dylanófilos mais militantes não ignorarão, mas haverá, de certeza, quem desconheça que, desde Maio de 2006, Dylan manteve uma emissão de rádio semanal de uma hora, tematicamente estruturada, na qual, assumindo as funções de realizador, narrador, comentador, entrevistador e "radio DJ", articulou, do modo mais livre e eclético, faixas celebérrimas e obscuras de jazz, blues, folk, soul, rockabilly, country, pop, garage e R&B com intervenções de notabilidades da música e das várias artes, histórias e farrapos de informação avulsos, emails e telefonemas de ouvintes, jingles, recitações de poesia, receitas de cocktails, aconselhamento acerca da alimentação de felinos, e os seus próprios pontos de vista e apartes a propósito do transcendente e do trivial.



Ao longo de três temporadas (50 edições, de Maio de 2006 a Abril de 2007, 25 edições de Setembro de 2007 a Abril de 2008, e outras 25, de Outubro de 2008 a Abril deste ano), organizados à volta de conceitos como "Weather", "Mother", "Rich Man, Poor Man", "The Bible", "Cats", "Dogs", "Guns", "Women’s Names", "Hair", "Birds", "Danger", "Blood", "Madness", "Noah’s Ark" e todos os outros 86 que faltam, os programas da sua "Radio Hour" constituíram algo como a banda sonora complementar e ideal para a exploração de profundidade da alma da América tal como Greil Marcus a vem realizando, em boa medida, a partir da obra... de Bob Dylan. Aparentemente terminado de vez a 15 do mês passado (tema: "Goodbye"; canção de fecho: "So Long, It’s Been Good To Know You", de Woody Guthrie - mas o veredicto definitivo acerca de uma futura quarta temporada ainda se encontra suspenso), existe, porém, disponível para "download" na íntegra e pronto a trazer o júbilo a milhões de discípulos de His Bobness, em dois verdadeiros baús do tesouro – e raras vezes esta expressão foi mais apropriada – nos arquivos da Croz.fm e, em matéria de guiões, textos e anotações, nas páginas do "Bob Dylan Fan Club". Detalhe de decifração esotérica adicional: no primeiro programa da última temporada, difundido na semana de Outubro de 2008 em que rebentou a gigantesca bolha financeira da crise global em curso, o tema – previamente definido – era "Money: Part 1".


Recuo, agora, até Julho do ano passado, ao palco do passeio marítimo de Algés e (autocitando-me) exercício de escavação na memória: à nossa frente, Dylan, comandando a banda em que desejaríamos tropeçar "se parássemos num bar de estrada do Minnesota" e que "se diria saída de um cenário de Peckinpah filmado pelo Tarantino de Reservoir Dogs", imprimia às canções "uma espessura que parecia arrancada à noite mais funda da história americana (sim, a tal 'old weird America')" e "acrescentava-lhe a tarimba de muitas milhas de blues/rock denso, duro mas ágil, coisa de 'honky tonk' rodado". Sim, no exacto instante em que a trajectória de ressurgimento das trevas dos anos 90 – iniciada uma década antes com Time Out Of Mind (1997), continuada através de Love And Theft (2001), Modern Times (2006), o oitavo volume das Bootleg Series, Tell Tale Signs (2008), e reforçada pela publicação quase sucessiva das suas Chronicles, de Like a Rolling Stone – Bob Dylan At The Crossroads, de Greil Marcus, e pela exibição de I’m Not There, de Todd Haynes – atingia o ponto mais alto, Bob Dylan dissimulava-se sob o disfarce de vetusta personagem anónima da lenda norte-americana, exclusivamente devotada a autorizar que, através dela, a tradição continuasse a fazer o seu caminho.


É precisamente aqui que Together Through Life acha o espaço e justifica a contextualização: como se, decidido a conceber um último episódio da "Theme Time Radio Hour" disciplinadamente em concordância com o espírito geral das emissões anteriores, Dylan, tivesse, contudo, feito questão de, desta vez, o ocupar inteiramente com temas originais seus. O elo de ligação mais recente com o mito americano ainda é o da capa: uma fotografia de Bruce Davidson, retirada do clássico estudo a preto e branco sobre as tribos juvenis de Nova Iorque, Brooklyn Gang. É de 1959. O resto é muito mais antigo e é o próprio Dylan quem o explica, numa frase de "I Feel a Change Comin'On": "I'm listening to Billy Joe Shaver and I'm reading James Joyce/Some people they tell me I've got the blood of the land in my voice". Tem, sim. E no sangue da terra que lhe circula pela voz não navegam apenas Joyce e Shaver mas igualmente John Lee Hooker, Jimmy Reed, Howlin’Wolf, Django Reinhardt, Otis Rush, George Jones, Muddy Waters ou Willie Dixon, em dez canções habitadas por figuras retiradas das galerias de Chuck Berry e Little Richard, movimentando-se por cenários que oscilam entre a Chicago-negra-de-blues, a Louisiana do bayou e pinceladas de fronteira Tex-Mex (cortesia de David Hidalgo, de Los Lobos), gravadas há meio século, em Memphis, nos estúdios da Sun Records, sob direcção dos manos Chess, e destinadas a ser emitidas para a rua durante os três minutos e trinta e três segundos daquele plano-sequência inicial de Touch Of Evil, de Welles, em que Charlton Heston e Janet Leigh deambulam pela "border-town", imediatamente antes da deflagração da bomba-relógio.


Com excepcional colaboração de Robert Hunter (Grateful Dead) que co-assina todos os textos menos um ("This Dream Of You"), pilhagem discreta de algumas linhas das "Canterbury Tales", de Chaucer, uma ou duas assombrações ("All night long I lay awake and listen to the sound of pain, the door has closed forevermore, if indeed there ever was a door"), e o q.b. indispensável de veneno ("Big politician telling lies, restaurant kitchen all full of flies, don't make a bit of difference"), a "Theme Time Radio Hour" dificilmente poderia ter melhor encerramento de actividade.

(2009)

28 January 2007

NADA EM LUGAR NENHUM


"Foi um acontecimento. Definiu aquele Verão, mas, como as revoltas [dos guetos negros] de Watts, também o interrompeu — do mesmo modo que, daí em diante, essa canção interromperia tudo aquilo que pudesse estar a acontecer no instante em que começasse a ser tocada. Foi um incidente que teve lugar num estúdio de gravação e foi lançado para o mundo com a intenção de não deixar o mundo exactamente igual. Isto não é o mesmo que mudar o mundo, o que implica um modo pelo qual se desejaria que o mundo mudasse. É mais como traçar uma linha para ver o que poderá acontecer: ver quem a canção revelaria de um ou do outro lado da linha e quem a poderia pisar. Dessa forma, a canção enquanto acontecimento transformou os seus ouvintes em testemunhas. Aos ouvintes-enquanto-testemunhas caberia fazer sentido do que viam e escutavam na canção (...); transportar o acontecimento com eles ou tentar deixá-lo para trás, como desejassem ou como pudessem, porque a reacção a um acontecimento não é algo que se seja inteiramente livre de escolher".

É Greil Marcus quem escreve e refere-se àquele momento ocorrido há quarenta anos, entre 15 e 16 de Junho de 1965, no estúdio A da Columbia Records, em Nova Iorque, quando, acompanhado por Mike Bloomfield (guitarra), Bobby Gregg (bateria), Paul Griffin (piano), Al Kooper (orgão), Bruce Langhorne (pandeireta) e Joe Macho Jr (baixo), Bob Dylan gravou os seis minutos e seis segundos de "Like A Rolling Stone" e, ao fazê-lo, inventou o rock'n'roll moderno tal como o conhecemos. Só a 20 de Julho desse ano — data em que o single foi editado, com a canção esquartejada em duas, nos lados A e B — o mundo se daria conta do abanão que acabara de sofrer e, cinco dias depois, no Newport Folk Festival, acompanhado pela Paul Butterfield Blues Band, Dylan consumaria o gesto: as águas ficariam definitivamente divididas entre a velha guarda folk "esquerdista" que nunca realmente entendera o significado de "The Times They Are A Changing" (e que o vaiou em fúria) e todos aqueles que se aperceberam de como, dali em diante, a cultura popular norte-americana (isto é, mundial) abrira irreversivelmente um novo ciclo.

 

Já antes, em Invisible Republic (1997), Greil Marcus caracterizara a ebulição criativa de Dylan que daria origem às Basement Tapes gravadas com a Band como "uma das mais intensas irupções do modernismo no século XX", associando-o a Joyce, Eliot ou Yeats. Agora, nas quase trezentas páginas do recém publicado Like A Rolling Stone - Bob Dylan At The Crossroads (ed. PublicAffairs), não hesita em colocar no mesmo plano os dezasseis minutos de "Highlands" (do álbum Time Out Of Mind, 1997) e a trilogia de Philip Roth, Pastoral Americana, Casei Com Um Comunista e A Mancha Humana. Sim, porque Marcus — um dos muito raros "scholars" da cultura pop que não se circunscreve ao "biografismo" mas toma cada assunto como mero pretexto para a mais larga e fascinada especulação — escreve como Altman ou Paul Thomas Anderson filmam: se, em Mystery Train (1975), onde pintava um imenso painel da América a partir das músicas de Presley, Robert Johnson, Randy Newman, The Band e Sly Stone, confessava que "já não era capaz de ruminar sobre Elvis sem pensar em Herman Melville" e, em Lipstick Traces (1989), traçava a genealogia do punk recorrendo aos surrealistas, dadaístas, situacionistas e aos heréticos medievais da Irmandade do Livre Espírito, também, desta vez, o instante fundador de "Like A Rolling Stone" é apenas uma via de acesso, por exemplo, ao Highway 61 — Highway 61 Revisited, o álbum onde "Like A Rolling Stone" figuraria, seria editado pouco depois, a 30 de Agosto de 65 — que percorre os EUA, do Golfo do México à fronteira canadiana, atravessando o delta do Mississipi, local "sagrado" de passagem, vida ou morte de Bessie Smith, Muddy Waters, Charley Patton, Son House, Elvis ou Martin Luther King: "O Highway 61 corporiza uma América tão mítica e real como aquela América construída em Paris a partir de velhos discos de blues e jazz pelos expatriados sul-americanos do romance de Julio Cortazar de 1963, Rayuela —, um romance no qual, como numa autoestrada, podemos entrar onde queremos".

Porta aberta também para a bizarra história de Mrs. Sarah L. Winchester, viúva do inventor da espingarda Winchester que, muito naturalmente, desaguará numa sessão do concurso televisivo "American Idol" onde um patético desfile de imitadores reproduz os estereótipos "dylanianos" tal como a grosseira percepção do "público" os reteve. Ou ainda para a versão de "Go West", dos Village People, pelos Pet Shop Boys (sim, sim, e faz todo o sentido). Todas, afinal, em "Like A Rolling Stone", desencadeadas por aquele coice inicial da bateria de Bobby Gregg ("um disparo que não acontece no terceiro acto mas mal o pano sobe"), pela irada descarga de vómito verbal ("há bombas a rebentar por todo o lado e cada bomba é uma palavra: 'DIDN'T', 'STEAL', 'USED', 'INVISIBLE', fazem parte da história mas, pela forma como são cantadas — declamadas, marteladas, atiradas do cimo da montanha para rebentarem aos pés da multidão —, cada palavra é também a própria história"), pela assombrada atmosfera sonora ("Enquanto som, a canção é uma caverna. Entramos às escuras; a pouca luz que existe desenha sombras incertas nas paredes que, à medida que as observamos, parecem mover-se ritmadamente. Começa a parecer-nos que podemos adivinhar que flash se seguirá ao anterior. Mas, quanto mais olhamos, mais vemos e menos fixo tudo nos parece"). Um ano depois, em conversa com o crítico de jazz, Nat Hentoff, Bob Dylan diria: "As minhas canções antigas, para dizer o mínimo, eram acerca de coisa nenhuma. As novas são sobre o mesmo — apenas observadas no interior de algo maior, chamado, talvez, lugar nenhum". (2005)

UMA COLUNA DE AR, UM XÂMANE


O título, No Direction Home - Bob Dylan (letras brancas sobre fundo negro, encostadas à esquerda), dura cinco rápidos segundos. Logo a seguir, o rosto de um Bob Dylan de 64 anos olha-nos e conta: "Como se se tratasse de uma odisseia onde, algures, regressaria a casa, tinha ambições de partir e, depois, regressar a um lugar que havia abandonado. Não me conseguia recordar exactamente onde ele se situava mas ia a caminho dele". Corte para 21 de Maio de 1966, Newcastle, Inglaterra. No palco, com a Band, Dylan fustiga o público hostil com uma interrogação "How does it feel to be on your own, with no direction home, like a complete unknown, like a rolling stone?".



Novo corte. Imagem quase imobilizada, a preto e branco, de silhuetas de árvores sob um nevoeiro cerrado. A voz de Dylan, outra vez: "O tempo... podemos fazer imensas coisas que parecem paralisar o tempo mas sabemos, evidentemente, que isso é impossível". Flashback para a casa dos pais, em Hibbing, Minnesota. Um aparelho de rádio de mogno com um gira-discos de 78 rotações por cima. "Uma das primeiras músicas que escutei foi uma canção country, 'Drifting Too Far From The Shore'. O som daquele disco fez-me sentir como se fosse outra pessoa, quase como se tivesse nascido dos pais errados". Hibbing, a cidade mineira: "Ficava a caminho de lugar nenhum, provavelmente nem vinha no mapa". E, agora, não é o tempo que Dylan paralisa, mas sim quem o ouve: "Ali, era impossível alguém ser rebelde. Fazia tanto frio que era impossível ser-se mau. O clima equaliza tudo muito rapidamente".



Na loja de artigos eléctricos do pai Zimmerman, "deveria aprender a disciplina do trabalho duro e o privilégio de ter um emprego". Desfilam os fantasmas da música do passado: Hank Williams, Johnnie Ray, o cowboy Webb Pierce, Muddy Waters, Gene Vincent. Com um meio sorriso docemente severo, Dylan confessa: "Pensei em inscrever-me num colégio militar mas, naquele que desejava — West Point —, nunca conseguiria entrar". Sim, para ele, nada menos que West Point. O liceu, então, onde Mr. Peterson, o reitor, interrompe a actuação de uma das primeiras bandas de Dylan porque a música "was not suitable for the audience". O nome de duas namoradas: Glory Story e Echo. "Foram elas que fizeram surgir o poeta que existia em mim". James Dean, Marlon Brando, The Wild One. "Não foi nada disso que liquidou todo o passado. Não foi como se eles tivessem aparecido e emergisse toda uma nova cena. O tempo, foi o tempo que obliterou o passado que havia à minha volta enquanto crescia. Apenas o tempo e o progresso". Newcastle, de novo, e "Like a Rolling Stone" em brasa.


Ainda só decorreram quinze minutos mas No Direction Home poderia terminar já aqui. Se num documentário se pode falar de "plot" — mas um documentário assinado por Martin Scorsese é, acima de tudo, um filme —, ele está todo ali: a odisseia sem regresso possível nem "direction home", a memória imparável do tempo, o confronto permanente entre o Dylan-artista e a forma como o público, os outros músicos e a crítica o encaram. Faltam, contudo, mais de duas horas para No Direction Home se concluir. E, nelas, cada fio da história será tecido pelos diversos testemunhos até que uma figura contraditória fique suficientemente esboçada. Recorrentemente, pelo próprio Dylan: "Estava numa expedição musical. Não possuía, realmente, um passado, nenhum lugar aonde regressar, nada em que me apoiar".



Que lê On The Road, de Kerouac ("As únicas pessoas autênticas, para mim, são as loucas, as que estão loucas por viver, loucas por falar, loucas por ser salvas, desejosas de tudo ao mesmo tempo, aquelas que nunca bocejam ou dizem um lugar comum, mas ardem, ardem, ardem como fabulosas peças de fogo de artifício amarelo a explodir como aranhas entre as estrtelas"). E recorda Woody Guthrie ("Ouvíamos as suas canções e, através delas, aprendia-se, de facto, a viver"). Mas também através da reminiscência de Liam Clancy, que a propósito da adopção do apelido Dylan, recita Dylan Thomas: "Piety sings, innocence sweetens my last black breath, modesty hides my thighs in her wings and all the deathly virtues plague my death!". Ou daqueles que recordam como o jovem Dylan, ávido de devorar toda a tradição musical que o antecedera, não hesitava em se apropriar de discos que não lhe pertenciam. E passam imagens de Odetta que, literalmente, abocanha um blues/gospel. E Maria Muldaur, Dave Van Ronk, Pete Seeger, os Weavers, Peter La Farge, a namorada Suze Rotolo, Cisco Houston, Joan Baez, mais tarde, as do encontro com Johnny Cash.



Vemos o instante em que "When The Ship Comes In" — Baez contará como Dylan a escreveu, de jacto, enraivecido por lhe ser recusada a entrada num hotel — é transformada em canção militante, no Lincoln Memorial, ao lado de Martin Luther King, em 1963. Kennedy morre em Dallas e o Bob Dylan de "Blowing In The Wind" e "A Hard Rain", que, involuntariamente, está a caminho de se transformar no porta-voz oficial da esquerda-folk e da geração da "contra-cultura", reage com um coice à homenagem que o Emergency Civil Liberties Committee lhe presta: "Para mim, já não existe branco ou negro, esquerda ou direita. Só existe alto e baixo, e baixo é demasiado perto do chão". Não tão violento, no entanto, como a interpretação de "Ballad Of A Thin Man", durante a digressão inglesa de 66 — e o filme regressa obstinadamente a ela, em Newcastle, Londres, na Escócia —, onde Dylan, ao piano, absolutamente possesso com a incompreensão do público que o acusa de traição à "causa", agita os braços no ar e, com desprezo e fúria evidentes, cospe as palavras "Because something is happening here, but you dont't know what it is, do you, Mr. Jones?". E, nem sequer com a imensa indiferença e apatia com que, após sucessivas entrevistas de jornalistas imbecis que — já após o "escândalo" do festival de Newport de 1965 a que assistimos na totalidade — o interrogam acerca do seu empenhamento político, à pergunta de "quantos cantores verdadeiramente de protesto pensa que existem?", ele responde "Cerca de 136. Entre 136 e 142".



Bob Dylan estava farto. Esgotado. Mesmo "with no direction home" só pensava em regressar a casa. "Apenas escrevi aquelas canções porque precisava de as interpretar. Estavam escritas numa linguagem que eu nunca tinha ouvido". Navegara a bordo do "Bateau Ivre" de Rimbaud, lera Verlaine e os clássicos, cruzara-se com Warhol e os Beatles, perdera definitivamente a paciência para aturar as multidões que lhe exigiam o que ele nunca estivera disposto a dar-lhes. Quando, do público, lhe gritavam, "What happened to Woody Guthrie, Bob?", enfadado, limitava-se a responder "These are all protest songs, now, come on..." e atirava-lhes com "Just Like Tom Thumb's Blues". Muito convenientemente, no regresso aos EUA — já o gigantesco Blonde On Blonde fora editado — um acidente de moto, retirá-lo-ia da circulação durante meses. É Allen Ginsberg quem, a meio de No Direction Home, melhor acaba por defini-lo: "Com Dylan, pareceu-me que o testemunho tinha sido passado de uma geração para a seguinte. Dylan tinha-se transformado numa coluna de ar, por momentos, parecia não ser mais do que a respiração que emanava do seu corpo, um xâmane". (2006)