(sequência daqui) Do mesmo lado da barricada, Ana Lua Caiano, reconhece a afinidade com intrépidos profanadores da sacrossanta tradição como os já vetustos Gaiteiros de Lisboa e sua contemporânea descendência, em cruzamento de genes com os Deolinda, os bravíssimos Cara de Espelho: "A articulação de vozes e instrumentos dos Gaiteiros que, às vezes, chega a apoximar-se do rap, é extraordinária e os Cara de Espelho são um projecto muito entusiasmante que, de alguma forma acaba por nos inspirar também". Mesmo correndo o risco de, antes de desfrutar plenamente do presente, se pretender enxergar ansiosamente o futuro, é praticamente invevitável perguntar a Ana Lua se faz alguma ideia do horizonte para onde a música que faz se encaminhará ou se se tratará apenas de um muito natural desdobramento do que até aqui chegou. Aguardemos, então: "Como nunca parei de compor diariamente, será necessariamente um desdobramento. Haverá certamente diferenças mas que só deverão decorrer de um processo natural, mas não muito racional - quando componho não consigo ser muito analítica. Mas se, porventura, ensaiasse outro tipo de estratégias, isso nunca poderia ser nada forçado".
06 April 2024
"Se Dançar É Só Depois"
(sequência daqui) Foi durante os dois anos de isolamento pandémico que, com todo o imenso tempo disponível, Ana Lua se empenhou integralmente "na exploração desses dois mundos que me interessavam". Se, num primeiro instante, a intenção era que o que acabou por serem dois EP tivesse sido publicado como um único álbum, o risco de "engarrafamento" dos muitos temas impôs a divisão, cabendo agora a Vou Ficar Neste Quadrado o papel de longa duração de estreia oficial e cartão de visita do projecto de "folktronica" lusa. Mais a exploração de uma ideia do que será a realidde - tímbrica, melódica, rítmica e harmónica (vocal e instrumental) - da música tradicional do que uma expedição etno-respeitosa de recuperação do património popular, neste edifício electro-acústico de vários andares coabitam "loop stations", sintetizadores, memórias de polifonias beirãs e assombrações de Meredith Monk, bombos e "drum machines". A sublinhar o estatuto de butleriana Erewhon do território em que tudo decorre, é obrigatório conhecer os videos - fruto da colaboração com a irmã Joana, realizadora de cinema e video em Inglaterra - que decorrem de cada canção: um mundo fantástico onde micro ranchos folclóricos afro-nortenhos se cruzam com jogos de espelhos, quadros de gótico oitocentista e evocações chaplinianas deixam-se rectificar por Wes Anderson e ser coloridos por Almodovar. "O mundo visual dela, neste projeto, foi também o meu. Se eu experimentava uma articulação da música tradicional com a electrónica, os dois universos acabaram por sobrepor-se. Pegávamos em motivos visuais mais ou menos tradicionais e dávamos-lhes a volta, virávamo-los de pernas para o ar. Esse processo de exploração com ela acabou por tornar-se a minha linguagem visual". (segue para aqui)
03 April 2024
"Vou Ficar Neste Quadrado"
(sequência daqui) Na verdade, o percurso apontava, desde o início, para uma ideia de articulação entre música popular tradicional portuguesa e música electrónica, com paragens de reabastecimento pelo meio: "Quando estudei piano, no convívio com a música clássica dei-me conta da preponderância dos dois modos - maior e menor. No estudo do jazz tive logo contacto com outros modos, dórico, frígio, mixolidio... que deixaram um rasto em mim. Estão presentes na minha música o que, antes, por não os ter conhecido nem estudado não afectava a minha forma de compor. Foram ferramentas que adquiri através do jazz embora este, em si, não esteja realmente presente", diz Ana Lua que, relativamente à música popular tradicional, confessa que - via dieta musical familiar - a descobriu através dos cantautores referidos acima, como igualmente por via de Michel Giacometti e descendência posterior. Muito em particular, em "A Música Portuguesa a Gostar Dela Própria", o arquivo online de vídeos de Tiago Pereira: "Todas essas recolhas foram, evidentemente, importantes para mim como são hoje também as do Tiago que serão uma versão moderna do trabalho do Giacometti: uma forma de registar a evolução que todas essas praticas vocais e instrumentais foram assumindo". (segue para aqui)
01 April 2024
EXPLORAÇÃO DO(S) MUNDO(S)
Zeca Afonso, Sérgio Godinho, Fausto, José Mário Branco. Mas também Portishead, Björk, Laurie Anderson. E ainda os lendários novaiorquinos Silver Apples, a banda de Simeon Oliver Coxe III que empilhava 9 osciladores audio e comandava 86 controlos com as mãos, pés e cotovelos mas nunca aprendeu a tocar piano. Todos estes figuram no panteão privado de Ana Lua Caiano que não só aprendeu a tocar piano aos 6 anos como frequentou durante 4 anos a escola do Hot Clube de Portugal. E passou por workshops de música concreta e cursos de adufe. Ela fala disto tudo quando lhe digo que, num primeiro contacto, a música que se descobre nos seus dois EP (Cheguei Tarde a Ontem, 2022, e Se Dançar É Só Depois, 2023) e, agora, no primeiro álbum, Vou Ficar Neste Quadrado, faz pensar no que poderia ter sido a estética sonora de pele e osso de uns Young Marble Giants nascidos à beira do Tejo, umas décadas mais tarde. (daqui; segue para aqui)