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01 April 2024

EXPLORAÇÃO DO(S) MUNDO(S)
Zeca Afonso, Sérgio Godinho, Fausto, José Mário Branco. Mas também Portishead, Björk, Laurie Anderson. E ainda os lendários novaiorquinos Silver Apples, a banda de Simeon Oliver Coxe III que empilhava 9 osciladores audio e comandava 86 controlos com as mãos, pés e cotovelos mas nunca aprendeu a tocar piano. Todos estes figuram no panteão privado de Ana Lua Caiano que não só aprendeu a tocar piano aos 6 anos como frequentou durante 4 anos a escola do Hot Clube de Portugal. E passou por workshops de música concreta e cursos de adufe. Ela fala disto tudo quando lhe digo que, num primeiro contacto, a música que se descobre nos seus dois EP (Cheguei Tarde a Ontem, 2022, e Se Dançar É Só Depois, 2023) e, agora, no primeiro álbum, Vou Ficar Neste Quadrado, faz pensar no que poderia ter sido a estética sonora de pele e osso de uns Young Marble Giants nascidos à beira do Tejo, umas décadas mais tarde. (daqui; segue para aqui)
 
"O Bicho Anda Por Aí"

01 February 2024

TRANSFUSÃO DE SANGUE

Título: Cara de Espelho; Personagens: Pedro da Silva Martins (autor e compositor dos Deolinda, mas também para António Zambujo), Carlos Guerreiro (Gaiteiros de Lisboa, José Afonso, Fausto, GAC), Nuno Prata (baixista dos Ornatos Violeta), Luís J. Martins (Deolinda, António Zambujo, Cristina Branco), Sérgio Nascimento (das bandas de Sérgio Godinho e David Fonseca, antes dos Peste & Sida, um dos membros dos Humanos) e Mitó (voz de A Naifa e Señoritas); Sinopse (feita, de um fôlego, por Carlos Guerreiro): "Um dia, ia a passar à porta dos correios da Av de Roma e encontrei o Sérgio Nascimento que já não via há algum tempo. Estivemos a falar e tal, e adeus. À noite, telefona-me e desafia-me para fazermos alguma coisa em conjunto. Uma daquelas conversas que se tem muitas vezes e depois não dão em nada. Não sei se foi ele que sugeriu que falássemos com o Pedro Martins (o Pedro é, como o Zeca Afonso chamava ao Vitorino, "uma vaca parideira"). A partir daí, a coisa fugiu-nos do controlo e ganhou vida pópria". Neste ponto, é indispensável esclarecer que, em causa, está um álbum - Cara de Espelho, também o nome adoptado pelo sexteto - capaz de, logo no primeiro mês do ano, actuar como poderosa transfusão de sangue destinada a fortalecer a assaz anémica música portuguesa dos últimos tempos. (daqui; segue para aqui)

"Dr. Coisinho" (ver também aqui, aqui e aqui)

19 October 2021

(Mudam-se Os Tempos, Mudam-se As Vontades - álbum integral aqui)
 
(sequência daqui) Numa noite de 1969, em Paris, José Afonso e José Mário Branco haviam-se conhecido quando este, que cantava numa associação popular dos arredores, teve notícia de que Afonso iria actuar no Foyer International des Étudiants, no Boulevard Saint Michel, e não quis perder a oportunidade de se encontrar com ele. Foi o instante zero: Zeca Afonso passaria a actuar como pombo-correio entre Branco e a editora Sassetti (que publicaria Mudam-se Os Tempos, Mudam-se As Vontades em Novembro de !971) e Zé Mário seria responsável pela produção de Cantigas do Maio (saído um mês depois). Ao mesmo tempo, este e Sérgio Godinho colaboravam nos álbuns um do outro e, pelo caminho, iam encontrando respostas para a questão “o que é uma canção e para a descoberta desse “objecto novo” e dessa “linguagem diferente”. Respostas inevitavelmente diferentes também. Embora tendo como pivot natural José Mário Branco (produtor dos três álbuns), se Godinho filigranava os textos e não escondia a francófila contaminação pela "chanson" em simultâneo com a respiração pop/rock/folk anglo-americana, Zé Mário, naquilo a que, mais tarde, chamaria “a luta de fundo contra os limites da forma da canção”, iniciava a ofensiva contra “os ‘clichés’, quase todos subprodutos da harmonia temperada de Bach” e atirava-se a um “conjunto de desafios criativos que partem sempre de uma referência ao mais antigo que há e que nos parece sempre moderníssimo, inventado ontem”. Por diversas vias, tudo isso se derramaria no disco de José Afonso, escancarando-lhe as portas para o período musicalmente mais rico da sua discografia. (segue para aqui)

15 October 2021

Cantigas do Maio (álbum integral)
 
(sequência daqui) Agora que se assinala meio século sobre o lançamento das três gravações que deslocaram decisivamente o centro de gravidade da música popular portuguesa – Mudam-se Os Tempos, Mudam-se As Vontades, Os Sobreviventes (estreias em álbum de José Mário Branco e Sérgio Godinho) e Cantigas do Maio, de José Afonso e produzido por Mário Branco – não é irrelevante recordar como, na atmosfera da época, esse abalo se produziu. Zeca Afonso era já uma figura decisiva no campo da oposição política e cultural – seria preso em Caxias por duas vezes – ao Estado Novo: tinha já gravado Baladas e Canções (1964), Cantares do Andarilho (1968), Contos Velhos Rumos Novos (1969) e Traz Outro Amigo Também (1970) mas não apenas continuava ainda demasiado preso às coordenadas estéticas das baladas de Coimbra – embora, a partir de Contos Velhos..., começasse a alargar o espectro da sua paleta sonora – como, por outro lado, ele que encarava a escrita enquanto “uma espécie de exorcismos ou evocações de vivências populares, com termos e vocábulos que já não existem e que me reportam a uma certa saudade de aspectos de uma vida comunitária que, agora, me ultrapassa (...), uma espécie de estado de semiconsciência em que as palavras vêm à superfície, desligadas de qualquer necessidade lógica”, ver-se-ia acusado dos gravíssimos desvios de “poetismo”, “hermetismo” e de “não compreender a função da música na vida das massas”. Ou, no outro lado da barricada, de excesso de “panfletarismo”. Era um momento em que, à canção popular, pouco mais se exigia do que ser o equivalente musical de uma palavra de ordem ou de uma pichagem, coisa que incomodava seriamente José Afonso (“A canção de protesto está a transformar-se num bem de consumo e num álibi de consciências”) e lhe alimentava o desejo de “matar definitivamente a choradeira das baladas”. (segue para aqui)

12 October 2021

O QUE É UMA CANÇÃO?


“Acho que é mesmo uma fruta do tempo. Coincidiram ali vários aspectos que talvez ajudem a perceber porque comecei por ir por aí... o Zeca Afonso, o movimento dos ‘baladeiros’... tínhamos discussões de caixão à cova entre nós por causa daquela prótese criativa que existia na altura e que era pegar nos livros dos poetas e fazer canções. O debate – que chegou a levar a cortes de relações – era sobre o que é uma canção. Uma canção não é uma poesia servir de auto-colante para uma música qualquer, é um objecto novo, uma linguagem diferente. É filha, mesmo no sentido genético, da música e da palavra. Não há hipótese de fugir a isso e eu insurgia-me contra essa mania dos livros de poemas (ainda por cima, coisas neo-realistas), e fazer canções a metro com dois, três acordes, primeira-segunda-e-marcha-atrás, uma melodização extremamente pobre e, frequentemente, contraditória com o sentido das palavras. Nem a música nem a poesia precisam de muletas para nada. São duas artes importantíssimas que existem por si. Depois, acontecem esses encontros e isso já é outra coisa. Desde a minha adolescência, existia uma ligação quase tão importante, da minha parte, à música como à poesia. À música enquanto música e à poesia enquanto poesia“, foi a resposta de José Mário Branco – na sua última entrevista ao “Expresso”, há três anos, por ocasião da públicação dos Inéditos 1967–1969 –, a uma pergunta sobre se o seu EP Seis Cantigas de Amigo (1969) tinha algo a ver, nesse tempo, com uma ideia de identidade ou de procura de uma raiz. (daqui; segue para aqui)

"Leda M'and'eu"

29 June 2021

MONSTROS E DEMÓNIOS
 
 
Sem se dar muito por isso, ao longo de 30 e tal anos, sob o nome (verdadeiro) de Will Oldham - aliás, Joseph Will Oldham -, mas também enquanto Palace, Palace Brothers, Palace Songs, Palace Music ou Bonnie ‘Prince’ Billy, a solo ou em colaborações com Dawn McCarthy, The Cairo Gang, Bill Callahan, Meg Baird, Jim O’Rourke e inúmeros outros, em álbuns, EP, singles, e compilações, o belo príncipe exibe no CV bem para lá de uma centena de títulos. Entre os quais, desde 25 de Abril do ano passado, também uma versão de "Grândola Vila Morena", de José Afonso, cantada "a capella", em português, na sua conta do Instagram. Pelo meio dessa densa e riquíssima floresta de música feita de folk, country e punk que lhe valeria o cognome de “Appalachian post-punk solipsist”, em Master And Everyone (2003), descobria-se "Wolf Among Wolves", uma dulcíssima e tremenda confissão de alienação e renúncia (“Why can’t I be loved as what I am, a wolf among wolves, and not as a man among men”) que, bastaria, por si só, para justificar o título da sua recolha de textos – Songs Of Love And Horror – de há 3 anos. Em 2005, na companhia de Matt Sweeney (Skunk, Chavez e pistoleiro contratado de estúdio de primeira linha), o lobo ganharia super-poderes e transformar-se-ia em possante Superwolf, criatura mítica que, só 16 anos depois, reemerge das trevas. (daqui; segue para aqui)

10 August 2020

FÁBULAS DO INFERNO

  
Há 11 anos, por altura da publicação de Um Fim de Semana no Pónei Dourado, evocando, muito provavelmente, o camiliano anjo caído, Calisto Elói de Silos e Benevides de Barbuda, nascido na aldeia de Caçarelhos, B Fachada dizia: “Se eu vivesse em Caçarelhos, não era autor e cantava o Romanceiro. Na cidade, tenho esta pressão ocidental, estúpida, para ser original e para criar”. Uma dúzia de EP e álbuns depois, supõe-se que – embora com pausas, por vezes, prolongadas – até não se tenha dado demasiado mal com a “pressão ocidental”. Dir-se-ia mesmo que os esquemas mentais com que triangulava a matéria prima (“Eu divido a música em três: a erudita, a tradicional e a pop. A erudita e a tradicional são artes e a pop é artesanato. A erudita e a pop têm autores individuais e a tradicional tem um autor colectivo. Estou no meio deste triângulo a ser puxado para um lado e para o outro”) deixaram de ser tão inflexíveis: aquele que, então, se via como “o pagão da FlorCaveira”o meteórico conglomerado de gentes que, no início do novo século, por insondáveis designos teológicos e sob o alto patrocínio do papa antipapista, Tiago Guillul, se reuniu para, agarrar pelas tripas a música portuguesa –, sempre abençoado pelos santos tutelares Fausto, Afonso e Godinho, parece ter descoberto o lugar geométrico onde os três eixos se confundem e geram outros sentidos.



Rapazes e Raposas, o sucessor de B Fachada (2014), prossegue o minucioso estudo antroposanfoneiro dos espécimes que povoam o pedaço, observados a partir de Mértola, de Março a Maio de 2020 DC (“Durante o Confinamento”). E, por entre chulas-punk, enlevos pastoris e teclados de feira, desfilam profetas apocalípticos (“A cada mais cem anos que hão de vir, hão de vir mais maldades e agonia, hão de vir mais injustiças e azar, nunca vão faltar o desgosto e abandono”), proclamam-se manifestos anti-tudo (“Sou anti-Freud, sou anti-Marx, não há truque semiótico, eu sou anti-patriótico, faço o direito em cepa torta, sou anti-basta e anti-corta”), glosa-se a “horrorosa Natureza pseudo-mãe” (“A noite é negra, o vento só ajuda os predadores à matança, à luz das estrelas piam todas as corujas, às escuras dormem as crianças”) e, mesmo “sem a graça do Camilo, sem as barbas do Antero” e com engarrafamentos silábicos (“A baleia ainda tem duvidas quanto ao sobrenatural, mas nunca foi mais indiferente às questões de identidade nacional”), o cenário destas fábulas não é de deixar ninguém descansado: “o Inferno está tão cheio que até o Diabo se mudou”.

23 April 2020

É da programação da Telescola 
para o 1º Ciclo?


... mas, se correr mal (isto é, bem), até pode resultar bela coisa Cage/Reichiana como a dos Pais Natal da feira de S. Pedro...

20 June 2018

O MOMENTO ANTES DE DISPARAR A SETA  (II)



    (sequência daqui) Pegando neste disco dos Inéditos, o projecto das cantigas de amigo medievais, tinha também a ver, nos teus primórdios, com uma ideia de identidade, de procura de uma raiz? 

Acho que é mesmo uma fruta do tempo. Coincidiram ali vários aspectos que talvez ajudem a perceber porque comecei por ir por aí... Zeca Afonso, movimento dos “baladeiros”... tínhamos discussões de caixão à cova entre nós por causa daquela prótese criativa que existia na altura e que era pegar nos livros dos poetas e fazer canções. O debate – que chegou a levar a cortes de relações – era sobre o que é uma canção. Uma canção não é uma poesia servir de auto-colante para uma música qualquer, é um objecto novo, uma linguagem diferente. É filha, mesmo no sentido genético, da música e da palavra. Não há hipótese de fugir a isso e eu insurgia-me contra essa mania dos livros de poemas (ainda por cima, coisas neo-realistas), e fazer canções a metro com dois, três acordes, primeira-segunda-e-marcha-atrás, uma melodização extremamente pobre e, frequentemente, contraditória com o sentido das palavras. Nem a música nem a poesia precisam de muletas para nada. São duas artes importantíssimas que existem por si. Depois, acontecem esses encontros e isso já é outra coisa. Desde a minha adolescência, existia uma ligação quase tão importante, da minha parte, à música como à poesia. À música enquanto música e à poesia enquanto poesia. 

    Que música ouvias enquanto adolescente? 

Tudo, ouvia tudo. Aliás, o meu primeiro emprego remunerado foi na rádio, aos 16, 17 anos. Só o simples facto de ir às discotecas escolher os discos que teria de passar contribuía para isso. A música erudita anterior ao século XX através do meu pai, quando estudei piano e violino... mas a música contemporanea, do século XX para cá, foi na Parnaso, com o Fernando Correia de Oliveira que era um compositor serial dodecafónico, completamente schoenberguiano, e com o Luís Monteiro que, a par dessa paixão pela etnomusicologia, tinha também uma grande paixão pelas novas músicas do século XX. Foi através dele que eu conheci o Webern, o Boulez, a “música concreta” do Pierre Schaeffer e do Pierre Henry, o Dallapiccola, o Luigi Nono, o Stockhausen, o Penderecki... fiquei com uma grande paixão pelos pós-impressionistas porque fazem um bocado a ponte, o Poulenc, o Fauré, o Satie e um bocado também o Ravel, os pós-Debussy. 

    Mas, voltando ao princípio... 

Voltando ao princípio, estávamos em 65, 66, um período em que os militantes daquele grupo político da primeira dissidência maoísta do PCP (o Francisco Martins Rodrigues, o João Pulido Valente, o Rui d’Espiney, o Manuel José Claro...) a que eu estava ligado em Paris – sempre me liguei a grupos políticos por confiar em pessoas, o Chico Martins, quando foge de Praga, do secretariado do PC, aterra em minha casa, em Paris, e viveu lá uns tempos, foi uma coisa muito orgânica – vêm para Portugal e são presos. E aquilo que havia desagrega-se em grupinhos, grupelhos, com pequenos caciques por todo o lado. E eu desinteressei-me, fiquei metido em casa, entre 65 e 68. Em 68, foi a transfusão de outro género. Talvez tenha havido isso que disseste, uma necessidade de ir às raízes. Foi a conjunção destas coisas todas que fez com que, quando tomei conhecimento destas adaptações linguísticas da Natália Correia dos textos medievais, fiz as sete canções baseadas em cantigas de amigo.


    Do ponto de vista musical, não pretendias soar “medieval”... 

Não. Eu conhecia a música medieval, "die Alte Muzik"... nas interpretações fidedignas da Deutsche Grammophon e, sobretudo, da Archiv. Não queria soar medieval. Mas aquelas palavras puxam um pouco, inevitavelmente, para a época. No entanto, são músicas populares de caracter moderno, e até com influências francesas notórias: Ferré, a canção poética francesa do pós-guerra. 

    Quando, há pouco dizias que, na música popular tradicional, os textos tinham-se deixado uniformizar sem grande evolução, pelo menos, evoluiu o suficiente para ter conduzido à mais extraordinária canção de sempre em língua portuguesa, "A Morte Nunca Existiu", com texto de um poeta popular, o António Joaquim Lança, e música tua... 

Ai é?... Aquilo é um tratado de filosofia de um poeta popular analfabeto. Quando entraste, estava ao telefone com o meu cunhado, o Alexandre Alves Costa, um arquitecto do Porto, que foi quem levou um primeiro grupo de gente de cerca de 16 anos, a Peroguarda, nas férias da Páscoa. Tenho essa imagem viva na minha cabeça do Lança, pastor de cabras, velho, alto, esguio, sentado com o cajado, num calhau à beira da estrada, a dizer os poemas dele. De cor, não lia nem escrevia. Quem acabou por gravar isso tudo foi o António Reis, poeta e cineasta. E estava a falar com o Alexandre para saber quem terá essas transcrições que eu tive em Paris, daí a canção. Esse poema foi uma coisa evidente. Tenho três versões dela: no Margem de Certa Maneira, no Ser Solidário, em que eu já meti as marteladas nos pregos do caixão, e outra ao vivo, em 97. 

    Nesta recolha de inéditos foi um pouco como se tivesses ido ao fundo do baú e publicar tudo o que não havia sido editado... 

E foi tirado muito mais, tínhamos quase três horas de música. O critério de selecção foi: coisas em vinil que nunca tinham passado ao digital; músicas diegéticas utilizadas em filmes, e que são experiências com uma coisa que foi sempre muito importante no meu trabalho a que eu chamo esgrimir com o cliché: se o cliché é uma forma de nivelar e aplastar a educação do gosto do grande público, podes esgrimi-lo também de forma a puxar o gosto um bocadinho para cima – o que se passa com o fado, com as marchas populares... as “músicas à maneira de”, recuperando tiques “de época”, instrumentos, estilos; e o ineditismo puro e duro da “Fantaisie Languedocienne”, uma encomenda da cidade de Montpellier, de um quarteto instrumental que foi tocado ao vivo, uma única vez, há 30 anos, no Instituto Franco-Português. 


    Tencionas continuar no modo de funcionamento em que trabalhas e compões quase exclusivamente por encomenda ou encaras ainda a possibilidade de voltar aquela coisa antiga de conceber e publicar um álbum inteiro de canções por iniciativa própria? 

Há poucos anos, comecei a sentir-me mal no palco. Não porque as canções não sejam boas ou interessantes, não porque não tivesse gosto em cantá-las, não porque não existisse interesse para o público, pelo contrário, mas comecei a sentir que estava ao serviço de qualquer coisa passadista. O mundo estava a mudar muito e deixei de me sentir bem em palco. Acho que toda a arte é autobiográfica, o artista não inventa nada, fala da própria vida e da vida e do mundo à volta dele. Mas, no caso da minha obra, até, talvez, pelo facto de serem poucos discos, nota-se bastante que aquilo é autobiográfico, tenho sempre que dar explicações. “O Zé Mário, tens de voltar, precisamos de ti!”... O artista não modifica a sociedade, fala das modificações da sociedade, o que é diferente. Há sempre a mania de ver as coisas ao contrário: o artista como líder, como homem que traça caminhos e perspectivas, que explica...  

    No tempo do GAC não era muito diferente disso... 

Havia uma encomenda social óbvia. Havia um discurso e um projecto mas não fomos nós que inventámos o discurso. Estávamos a dar um recado: faz-se assim, faz-se assado, isto é bom, aquilo é mau, estávamos a contar uma historinha que não foi escrita por nós. O artista não é o autor do futuro, é um resultado do futuro. Seja nas canções, seja o Picasso, o Mozart ou o Shakespeare. Ser de esquerda, para mim, é, cada vez mais o arco tenso com a seta colocada, mas antes de disparar a seta. Esta tensão entre o que está e o que talvez possa ser. O reverso do conservadorismo. Reparo que o arco é feito de madeira e de uma tripa que vêm da conservação, da tradição. Só que estão a ser usados para apontar para outra coisa. Não embarco na ideia do fim da história. Nos anos 80 e 90, o pós-modernismo foi a versão cultural do neo-liberalismo. Nós aprendemos a criar em cima de um tripé: a estética (a busca da beleza), a técnica (a oficina da arte, o saber fazer) e a ética (não há criação fora de um contexto comunitário). Se faltar um dos pés, o tripé cai. O que realiza fisicamente uma obra é a sua partilha. O que o pós-modernismo nos vem dizer é que essa parte da ética não interessa para nada, não há compromisso. Que, na arte, pode haver neutralidade, não haver relação com uma comunidade. É mentira. Há sempre um compromisso. Mesmo que o compromisso seja afixar um não-compromisso.

02 April 2018

SEM BANDA SONORA 


Quando, há cerca de três semanas – a propósito de um abaixo-assinado de estudantes universitários contra a elevação a catedrático de um ex-gestor da Tecnoforma –, o douto Vital Moreira, acidamente, opinou “Era o que faltava!... pelos vistos, há quem proponha o regresso à autogestão estudantil de Maio de 1968...” (I), alguém deveria ter-lhe chamado a atenção de que, contra ventos e marés políticos, a reputação dos "soixante-huitards" não poderia estar, actualmente, melhor cotada. Pelo menos, no país de origem: segundo uma sondagem encomendada pelo “Nouveau Magazine Littéraire” à Harris Interactive, 79% dos inquiridos atribui à revolta de 68 consequências positivas para a sociedade francesa, incluindo-se nesses 87% dos eleitores de Macron e até 78% dos de Marine Le Pen. Meio século bastou, de facto, para que muitas das palavras de ordem e iconografia insurrectas tivessem sido recuperadas e domesticadas (ironicamente, segundo a técnica do "détournement" (XVI) praticada pelos Situacionistas de Debord e Vaneigem, motor ideológico e criativo da sublevação): “Sous les pavés, la plage” já foi comédia de boulevard e slogan da Orangina Schweppes; em 2005, os hipermercados E. Leclerc, na campanha “E. Leclerc defend votre pouvoir d’achat”, recuperaram diversos cartazes de Maio (por sua vez, "détournés" por uma Brigade Anti-Pub sob o lema “E. Leclerc vous prend vraiment pour des cons”); a Gucci, num video da campanha Outono 2018, recria o Maio de 68, “inspirada por Truffaut e Godard”; e “Não tenho nada para dizer mas apetece-me dizê-lo” converteu-se no modus operandi corrente da tribo mundial de comentadores e tudólogos.


Mas, sobretudo, não esquecer o golpe de misericórdia final quando, em 2009, o governo de Sarkhozy impediu a aquisição pela universidade de Yale do arquivo de Guy Debord, considerando-o “um dos últimos grandes intelectuais franceses”. Consideravelmente mais comedida que as investidas dos contemporâneos radicais norte-americanos – Yippies, Black Panthers, Weathermen –, à revolta de 68, faltou, especialmente, uma componente essencial: a banda sonora. Da explosão do ano iniciado sob o signo de "Déshabillez-moi", de Juliette Greco, à excepção de "Les Anarchistes", de Leo Ferré (estreada na Mutualité, a 10 de Maio, primeira noite das barricadas no Quartier Latin), todo o cancioneiro que se lhe refere – Colette Magny, Claude Nougaro, Brassens, Moustaki – é desgraçadamente posterior. De uma outra revolução mais próxima e musicalmente riquíssima, "Grândola", 40 anos depois,  permanecia uma arma poderosa contra ex-gestores da Tecnoforma.

02 January 2018

CODA


Se, numa lista de 10, escasseiam vagas para aquilo que, em ano de farta colheita musical, mais estimulou os tímpanos, 52 semanas são também intervalo de tempo verdadeiramente insuficiente para, uma a uma, se ir destapando tudo o que, no dilúvio da edição discográfica, merece não passar despercebido. O que transforma o início de cada novo ano numa espécie de coda do anterior na qual, por entre justificações mal amanhadas (ler as linhas acima) e actos de contrição perante a desatenção que conduziu a ignorar o que não devia ser ignorado, se procura remediar as falhas. Sejam, então, bem-vindos à coda 2017/2018, a abrir, justissimamente, com uma daquelas peças que, só por si, comprovariam a urgência de prolongamento do calendário gregoriano: Last Leaf, do Danish String Quartet. 




Sem cair na armadilha dos intérpretes de formação clássica que, ao deixar-se tentar pela abordagem de idiomas populares, tendem a desvalorizar a própria identidade, Rune Tonsgaard Sørensen (violino, harmonium, piano, glockenspiel) Frederik Øland (violino), Asbjørn Nørgaard (viola de arco) e Fredrik Schøyen Sjölin (violoncelo) – reconhecidos como virtuosos exploradores das partituras de Bartók, Beethoven, Shostakovich, Brahms, Haydn, Mozart, Sibelius e Schnittke – propuseram-se, agora, investigar “a rica fauna das melodias folk nórdicas”. Recuando até "Dromte Mig en Drom" – a mais antiga canção secular escandinava presente na última folha do Codex Runicus (c. 1300) –, guiam-nos por 16 pontos de paragem, num fantástico périplo de dimensão equiparável (embora com as coordenadas distintivas de um quarteto de cordas clássico) ao que os Hedningarna de Kaksi! (1992) nos haviam oferecido.


A tradição musical popular é, igualmente, a matéria-prima das Sopa de Pedra, colectivo vocal feminino a capella, do Porto, e uma das mais recentes peças de um "puzzle" onde já se encontravam Cramol, Segue-me à Capela e Maria Monda (todas, aliás, reunidas em Novembro do ano passado no concerto “De Viva Voz”)




Cinco anos de gestação foram necessários para dar à luz Ao Longe Já Se Ouvia, belíssimo painel de temas maioritariamente do reportório tradicional da Beira-Baixa, Alentejo,Trás-os-Montes e Açores (acrescidos de dois de Amélia Muge e outro de José Afonso) em gloriosas polifonias corais.


O extraordinariamente intitulado Adiós Señor Pussycat constitui, enfim, o inesperado regresso de uma das lendas secretas da escrita de canções pop britânica: Michael Head (com a Red Elastic Band), ele dos Pale Fountains, Shack e The Strands, que o “New Musical Express” chegou a coroar como “our greatest songwriter”, mas a quem, uma particularmente infeliz combinação de azares e múltiplos vícios sempre impediu de se erguer acima do estatuto de culto.

Aparentemente, de novo com a cabeça fora de água, canções como "Queen Of All Saints", "Josephine", "What’s The Difference", "Wild Mountain Thyme", "Adiós Amigo" ou "Rumer", recuperam sem perdas aquele precioso e aromático "pot-pourri" de Byrds, Love e Nick Drake.

31 January 2017

VISTAS CURIOSAS 


O “Archivo Pittoresco” foi um semanário publicado em Lisboa, entre 1857 e 1868, e, diz-se, muito apreciado em Portugal e no Brasil pela qualidade da ilustração. Com ele colaboraram Latino Coelho, Camilo Castelo Branco ou Pinheiro Chagas (entre outras luminárias da época) e tinha como finalidade divulgar “a nossa gravura em madeira, dar relevo à palavra e abrir campo em que as vistas curiosas espaireçam pelas criações da arte, da natureza ou da fantasia”. Acerca de Archivo Pittoresco – terceiro álbum de Lula Pena depois de [Phados] (1998) e Troubadour (2010) – não será abusivo dizer que, a partir de coordenadas completamente diferentes, também partilha, sem dúvida, as mesmas intenções: uma vez autorizados a entrar e instantaneamente envolvidos sem regresso na sua atmosfera, aquilo de que, nos apercebemos é da imensa abertura de um campo onde, às “vistas curiosas”, de modo encantatório, outras perspectivas da “arte, da natureza e da fantasia" se oferecem. 



Nada viola as regras do jogo (muito pelo contrário) se começarmos pelo fim: “Come Wander With Me”, subtraída à voz de Bonnie Beecher no episódio 34, da 5ª temporada de Twilight Zone, no qual um cantor se perde em busca de uma canção. Exactamente o mesmo desafio que Lula Pena se propõe e para que nos convida a participar. Se, em Troubadour, nos locais de paragem obrigatória encontrávamos Chico Buarque, José Afonso, Atahualpa Yupanqui, Herberto Hélder, Frederico de Freitas, David Mourão Ferreira, Eden Ahbez, Dolores Duran, Mirah ou Alejandra Pizarnik, desta vez, tropeçaremos no anarquista e surrealista belga, Louis Scutenaire, em canções castelhanas do século XVII de mão dada com antiguidades mexicanas, num triângulo de obscuros brasileiros (Elomar, Ederaldo Gentil e Ronaldo Augusto), em Violeta Parra, no grego Manos Hatzidakis, em tradicionais da Sardenha, nas visões de Jerusa Ferreira e Bénédicte Houart. Todos irremediavelmente convertidos em matéria combustível para a pira a que Lula Pena ateia o fogo e com cujo fumo deliberadamente se intoxica. A consequência procurada – “que todas as canções se ouçam como uma só”, caminhando “à deriva por lugares sem fronteiras fixas, vagueando por várias línguas e sons como quem vai ao encontro da nascente do inconsciente colectivo” – não permite ser descrita por mais palavras. Apenas escutada.

02 December 2014

ANTES DE ABRIL: O INVENTÁRIO 


Com a pontualidade de um relógio suíço, todos os anos, entre o 25 de Abril e o 1º de Maio, somos obrigados a fazer a revisão da matéria que vai (pelo menos) dos últimos estertores do Estado Novo ao parto de risco da recém-democracia. Não se tratando do antropologicamente céptico relógio de cuco de Orson Welles em O Terceiro Homem, televisões, rádios e jornais contam-nos a história da heróica cavalgada antifascista e, na banda sonora, pelo meio de “Grândolas” e Zip Zips, acreditamos ficar a conhecer tudo sobre o que foi a música mais ou menos politicamente empenhada desses tempos. Mas já ouviram falar de António Pedro Braga, companheiro de Fausto e intérprete de Pete Seeger e da poesia de Reinaldo Ferreira? De Daniel, discípulo de Dylan, Phil Ochs e Joan Baez com um fetiche por Marc Bolan? Da irmã Maria do Céu, freira do Sagrado Coração de Maria e alegada Nico portuguesa, elemento, aliás, de um ignoto destacamento de várias outras canoras esposas do Altíssimo? Não é provável. Mas foi, justamente, para ocupar esse lugar vago no conhecimento da história da música popular portuguesa que João Carlos Callixto publicou Canta, Amigo, Canta – Nova Canção Portuguesa (1960-1974), inventário quase exaustivo da música em transformação desse período.

Qual foi o ponto de partida para a concepção deste livro? 
Essencialmente, parte de uma grande paixão pela música portuguesa em geral e, particularmente, pela deste período: a canção de protesto, os cantautores, alguns grupos folk e a nova canção ligeira a partir de finais dos anos 60, com a geração que vinha dos grupos de rock, como o Fernando Tordo, o Paulo de Carvalho ou o Carlos Mendes. Uma geração que, de certo modo, lançou as pedras para o que viria a seguir ao 25 de Abril. Como referência, houve dois autores, para mim, essenciais: o Mário Correia, com Música Popular Portuguesa – Um Ponto de Partida e o José Viale Moutinho, com A Memória do Canto Livre Em Portugal. São referidos no livro 330 discos a que tive acesso em feiras, através de coleccionadores, revistas, lojas de segunda mão, Internet... Como, infelizmente, ainda não há um arquivo de som em Portugal, é impossível fazer-se como na Biblioteca Nacional, para consultar a obra de um conjunto de autores ou de um movimento. A grande maioria do acervo comercial está conservada no arquivo da RDP.


A pesquisa e a recolha de material foram orientadas ou, à medida que ia avançando, ia tropeçando em pistas novas e inesperadas? 
Foi um trabalho cruzado. Posso dizer que o ponto de partida foram os dois autores que citei. Desde finais dos anos 90, comecei a construir uma base de dados para conseguir ter alguma ideia do que saiu e em que data. Depois, o facto de ter colaborado com a professora Salwa Castelo Branco na Enciclopédia da Música em Portugal, em 2002/2003, permitiu-me reunir muitos elementos sobre a música editada dos anos 50 para a frente. Consultei publicações como “O Mundo da Canção”, a “Flama”, até a “Plateia” que, apesar de ser mais comercial, continha muita informação que deveria ser encarada com um olhar crítico. Tentámos conferir ao máximo as fontes, falar com os músicos e editores embora, muitas vezes, eles também não tivessem a noção exacta dos anos em que tinham saído os discos. A datação foi, por isso, um trabalho difícil. 

Porque circunscreveu o trabalho a este período de 15 anos? 
1960 foi o ano de lançamento do primeiro vinil do José Afonso, o EP A Balada do Outono (deixei de fora dois discos de 78 rotações anteriores) que é um disco que, de certo modo, procura já transformar a canção de Coimbra a partir de dentro e também um primeiro passo para a renovação da canção portuguesa. O final em 74 decorre, obviamente, do 25 de Abril. Tinha de o fechar de alguma maneira; mesmo assim, o livro ficou com 240 páginas, com 103 cantores e grupos e 330 discos. Depois porque, eventualmente, gostaria de fazer uma continuação deste livro que fosse desde 74 até... ainda não me decidi... talvez até à entrada de Portugal na CEE ou até à queda do Muro de Berlim... porque há alguns nomes que aqui figuram que prosseguiram carreiras até aos dias de hoje, como o Sérgio Godinho, o Fausto ou o José Mário Branco. 


Há um fenómeno peculiar em que nunca tinha antes reparado: as freiras cantoras... 
É engraçado porque já o Mário Correia as incluía. A irmã Maria Humberta cantava “O Menino do Bairro da Lata”... na sequência da abertura do concílio Vaticano II, houve elementos ligados à igreja que também intervieram através da canção. Uma outra freira, a irmã Maria do Céu, gravou um primeiro disco só acompanhada à guitarra. Em 65/66, foi fazer uma licenciatura a Paris e gravou um segundo disco com gente do rock e o José Cid a produzir. Há tempos, estava a ouvir uma das faixas desse disco e um amigo meu dizia-me que lhe parecia a Nico produzida pelo John Cale, uma espécie de Marble Index português em miniatura. 

Há uma presença considerável de nomes que, mesmo a maioria das pessoas que se interessam pela música portuguesa, deverão desconhecer em absoluto... 
Muitos deles também só ao ouvir o disco ou ao ler o artigo é que os descobri. Há personagens curiosas como o Carlos Bastos que gravou o "Hey Jude", dos Beatles, com o António Chaínho a tocar guitarra portuguesa. 


Durante a organização do livro, houve alguma surpresa especialmente forte, do género “mas de onde é que isto saiu que eu nunca tinha ouvido”?
Antes de responder directamente a isso, há uma surpresa que é a pessoa e a obra do Luís Cília. Claro que já o conhecia mas não tinha a noção exacta da incrível quantidade de discos que gravou, tanto antes como depois de 74. É inexplicável o desconhecimento da obra dele, hoje em dia. Como é possível que alguém que gravou tanto e que, musicalmente, evoluiu como ele evoluiu, actualmente, apenas tenha no mercado uma colectânea que saiu em França que junta os três discos da Poesia Portuguesa de Hoje e de Sempre? O Deniz Cintra foi uma surpresa. São apenas três discos mas é curioso como alguém ligado ao meio académico, como vários outros nomes, grava, tão novo ainda com nomes do rock como o Filipe Mendes, dos Chinchilas. Outro foi o Daniel, um tipo que gravou cinco discos e, tendo participado num Festival da Canção, dizia que queria usar uma capa como o Marc Bolan, dos Tyrannosaurus Rex, ainda não T. Rex.

Concluído o livro, ficou com a ideia de ter conseguido reunir todo o material desta época ou tem a sensação de ainda lhe terem escapado alguns discos e autores? 
Tive a intenção de ser o mais inclusivo possível. Suponho que inventariei mais de 95% do que existiu neste âmbito. Mas isto é sempre um trabalho em construção. Não incluí, por exemplo, a actriz Elisa Lisboa que era quem tinha sido originalmente escolhida para cantar a ‘Desfolhada’ no Festival da Canção de 1969 mas que, devido a ter uma estreia de uma peça, teve de desistir duas semanas antes. Ela gravou um EP com uma música, ‘Mulher Mágoa’ que, depois, a Mísia gravaria também e mais duas canções em francês. Só gravaria mais um single, em 1975, com o Quarteto 1111, com um poema do José Régio. Deveria tê-la incluído? Não sei. Mas não me parece que tenha ficado muita coisa importante de fora.