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terça-feira, 14 de março de 2017

Odontofobia, por Petrônio Gomes

Foto reproduzida do Facebook/Petrônio Gomes.
Postado por MTéSERGIPE, para ilustrar artigo.

Publicado originalmente no site do Jornal da Cidade, em 08/02/2001.

Odontofobia.

Tive dentes naturais até aos 23 anos, e não tenho saudades de nenhum deles.

Por Petrônio Gomes (Radialista).

Tive dentes naturais até aos 23 anos, e não tenho saudades de nenhum deles. Eram cacos naturais que nem mastigavam nem me ajudavam a rir com dignidade. Desde garoto, portanto, até quando comecei a aprender o ofício de pai de família, tive que conviver com o terror da “cadeira do dentista”.

Hoje, com a bendita tecnologia, os profissionais da área odontológica trabalham de máscaras cirúrgicas, usam luvas brancas e dispõem de equipamentos sofisticados, tanto quanto jamais poderíamos pensar antes. Seria bom, portanto, lembrar que os métodos e os aparelhos usados no tempo em que passei pela triste fase só poderiam contribuir para despertar nos pacientes o terror e a tremedeira.

Para começar, não havia televisão para distrair as vítimas. Eram duas séries de cadeiras encostadas em cada parede e uma janela aberta de par em par. Nada de ar condicionado, pelo menos no Brasil. Nada de revistinhas nem jornais, mesmo porque ninguém tinha vontade de ler. De vez em quando, a moça abria a porta, um cliente saía com a mão cobrindo a bochecha e ela apontava com o dedo o doente da vez.

Agente subia na cadeira e ficava olhando o quadro de sempre, enquanto o doutor lavava cuidadosamente as mãos: do lado esquerdo, a bandeja circular em que repousavam os vários utensílios de suplício. O mais simpático era o espelhinho, usado pelo dentista para vasculhar o que não podia ser visto, enquanto um dos seus dedos afastava as bochechas. Depois, atirava água com uma seringa e nos mandava cuspir. Mas havia também uma pinça, uma espécie de espátula e um ferrinho de ponta fina, Todos, com exceção do espelhinho, eram ameaçadores.

Ao lado da bandeja circular, pendente de um gancho de metal, estava dependurado o mais terrível, o que a gente chamava de “broca”. Era uma haste de metal em cuja extremidade o dentista adaptava uma série de apêndices de metal que giravam por eletricidade e destinados a escavacarem o dente para a obturação, que poderia ocorrer até dois meses depois. Todos os dentistas já esperavam a clássica pergunta angustiada dos meninos: “Vai passar o motor”?

Entretanto, havia coisa pior ainda: o tratamento ou a extração do nervo! O dentista usava um arame em forma de parafuso que introduzia na fenda aberta pela “broca” e ia alcançar o nervo, que ficava enrolado como macarrão, de baixo para cima. Sempre havia um lugar em que a pontinha do arame tocava e tirava da gente a vontade de viver.

Só uma lembrança agradável ficou em minha memória. Foi um dia em que o dentista me disse: “venha na outra semana para mudar o algodão”. Saí do consultório feliz, sabendo que não iria sonhar com a “broca”.
Meu primeiro dentista foi o dr. Wolney Loureiro Tavares, cujo consultório ficava no Parque Teófilo Dantas, nas proximidades do museu de Rosa Farias. No Rio de Janeiro, foi o Dr. Diogo, que morava em Aracaju e que fora residir por lá. Foi ele quem me aplicou a primeira anestesia durante um tratamento esporádico.

Mas foi o Dr. João Andrade Garcez, já falecido, o simpático e estimadíssimo João Andrade, que chegou ao Governo do Estado, cujo consultório ficava vizinho ao prédio do Banco do Brasil, onde eu trabalhava, que conseguiu extrair com pleno sucesso todos os dentes que me restavam. Foi também ele que me presenteou
com a primeira dentadura, confeccionada por seu inseparável protético Juarez. Quanto tempo!

Vejam agora a brincadeira do destino: não seria natural que eu fugisse de todas as pessoas cuja profissão representa aquilo que temia? Não é verdade que muitas pessoas começaram a detestar uma matéria por causa do professor? Quando somos apresentados a uma pessoa pela primeira vez, não será a primeira impressão que tivermos dela que virá sempre à nossa mente quando a reencontrarmos?

No entanto, um dos meus maiores amigos e meu cunhado, já falecido, era um grande cirurgião-dentista: Dr. José Guimarães Costa.

O Dr. Afrânio José Bastos e sua esposa, Dra. Sylvia Andrade Bastos, são cirurgiões-dentistas, meus cunhados, agora afastados do ofício.

O Dr. Lélio Fortes, também já nos braços de Deus, meu saudoso e grande amigo, era dentista.

A Dra. Noélia, filha dos nossos queridos amigos e vizinhos, Dr. José Rezende Machado e Hortênsia, é a cirurgiã-dentista de minha esposa.

O Dr. Paulo Lemos, que morava na Rua Itabaiana, com o consultório na própria residência, foi uma das relações mais agradáveis que tive, desde os saudosos tempos do Iate Clube. Era dentista.

Mas continuo acordando com um suor frio quando sonho que ainda tenho dentes naturais.

Texto reproduzido do site: jornaldacidade.net/artigos

domingo, 20 de abril de 2014

Um Pobre José.




Um Pobre José. 
Por Petrônio Gomes.

Viro as páginas amarelecidas de um álbum da infância e dou com o rosto miúdo de José Antônio dos Santos lá no fundo, nesses retratos em que só aparecíamos com os olhos, com um pingo da testa. E é surpreendente como a alma toda se revela em simples riscos de uma fotografia antiga, como despontam recordações inteiras da infância através de meio centímetro de uma velha estampa...

Andávamos sempre juntos, eu, ele, Antônio Eduardo e Murilo Barreto. “Maximino” era como o chamávamos, o mais pobre de nós quatro, talvez até o mais pobre da classe. Mas nossa idade era aquela em que as diferenças econômicas não contavam, uma idade de ouro sagrada, de ternas e perenes recordações.

Vibrávamos, unidos, enquanto seguíamos para o colégio ou de lá voltávamos, ao som das mesmas canções que “Maximino” soltava em seus maviosos assobios. Lembro-me até de uma de suas favoritas, a bela “Minha devoção” (My devotion), que ainda guardo, na voz feiticeira de Doris Day.

Revoltávamos, muitas vezes, também juntos, contra tudo o que agredia a superfície límpida de nossas almas irmãs, pois estávamos na aurora da vida. E não existem auroras que não sejam brancas, imaculadas e puras. É o tempo das intenções que somente o romantismo entende e consulta, a idade que não admite gestos embuçados ou mentirosos.

Mas José Antônio era daquelas pessoas cuja vida se resume em um rosário de sofrimentos, um “caipora”, no dizer de minha mãe, para designar as criaturas que a vida escolheu para castigar sem pena.

Uma vez, no Parque Teófilo Dantas, foi a ele que o guarda municipal escolheu para agarrar pelo braço. Havíamos decidido atormentar os macacos, e todos o fizemos com relativo sucesso. Mas na hora da retirada, somente José Antônio resolvera permanecer. Seguro pela mão possante do guarda, fora levado para casa. No dia seguinte, compareceu ao colégio ostentando sinais físicos de uma surra violenta. Havia sido espancado pela madrasta, mas este fato só nos foi narrado por um seu vizinho. Nesse dia, soubemos que José Antônio era órfão de mãe.

De outra feita, um professor de maus bofes achou ter sido Maximino o aluno indisciplinado que lhe havia atirado uma casca de laranja, mas não foi. Nosso colega sofreu o clássico castigo do domingo, que eu também conheci: eram cinco horas de pé, com a farda abotoada, no pátio do colégio. Mas ele não denunciou o verdadeiro culpado, que se manteve em covarde silêncio.

Lembro-me bem da cena, pois fui ao colégio quando voltei do cinema. Lá estava o Maximino de pé, mãos cruzadas às costas, molhado de suor. Não me disse uma palavra, sorriu. Aguardava certamente um novo castigo da madrasta, bem pior do que aquele. Um herói de doze anos.

Dispersamo-nos. Espalharam-se os protagonistas que compunham o retrato do colégio. O tempo empalideceu a gravura, sepultou alguns, cumulou de benesses outros, apagou os risos de nossas faces, trouxe o esquecimento para muitos.

Certo dia, no Rio de Janeiro, vejo um homem sentado em um banco na Cinelândia. Era o Maximino. Mal vestido, a barba crescida a cobrir o lugar da gravata, de que tanto gostava quando menino. Pareceu-me que falava a sós, como em conversa com o próprio destino, dialogando com o sofrimento. Ele me reconheceu, mas desviou os olhos. Fingimos um desconhecimento mútuo, a bem do amor próprio, em nome de um passado que não merecia um abraço carregado de dor.

Segui com minhas lágrimas para a fila do ônibus do subúrbio, deixando-o a sós com as suas, mas estreitando-nos em um abraço longo e afetuoso.

Um pobre José que conheci na aurora da minha vida, exemplo de humildade e coragem que eu daria tudo para ter a coragem de imitar.

Comecei a solfejar para mim próprio, a música “Minha devoção”...

Crônica reproduzida de postagem feita por Gabriel de Andrade Gomes,
na página do Facebook/Minha Terra é Sergipe, de 18/04/2014.