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segunda-feira, 16 de julho de 2018

‘Sergipe tem muito sabor’ (Seichele Barboza)


Publicado originalmente no site do Jornal da Cidade, em 16/07/2018

‘Sergipe tem muito sabor’ 

A chef de cozinha Seichele Barboza faz do ato de comer uma vibe única.

Por Gilmara Costa/Equipe JC

Desafiando sabores, pesquisando modos, receitas e até mesmo donde vem a presença marcante de ingredientes na culinária sergipana, a chef de cozinha Seichele Barboza, aracajuana e formada pela Universidade Ibirapuera (Unib), faz do ato de comer uma vibe única, resgatando memórias, contando histórias e mostrando que sergipano de autonomia farta na arte da culinária. Sim, é arte. Ela afirma e ratifica que gastronomia é manifestação cultural de um povo, ato primeiro entre tribos indígenas e pessoas urbanas. É sobre isso e muito mais que ela conversou com o JORNAL DA CIDADE.

Leia e se delicie!

JORNAL DA CIDADE - Como você entende a gastronomia enquanto manifestação cultural?

SEICHELE BARBOZA – É a manifestação mais forte que um povo pode ter. Antes de você entender o que é ética, moral, seus costumes, o que é dança, o que é a fala, você tem o ato de comer. Então, uma criança que se alimenta numa tribo indígena, antes mesmo de saber as regras da tribo, ela tem a alimentação como cultura, como algo que não tem como fugir. O mesmo acontece com a criança da cidade. Então, o ato de colocar qualquer comida na boca já é um ato cultural. E hoje, diante da globalização, cada vez mais a pessoa que não sabe o que é a sua cultura, aí pensa que cultura é a expressão artística e ponto. Dança, música, manifestação de grupos folclóricos e pensa que sua fala, o seu jeito de agir, de vestir, a comida não é cultura. Muitos acham que a cultura é algo externo a elas, bem distante. Ou seja, cultura é aquele grupo da taieira, do samba de coco. Mas, não é assim. A cultura é, principalmente, o ato de colocar a comida na boca, de como você coloca a comida na sua boca. Hoje, o Brasil não tem uma lei que proteja a gastronomia como cultura e, diante disso, as grandes indústrias que comandam a política expõem as pessoas que fabricam o próprio produto e que fazem as receitas, e a vigilância sanitária impede que elas sejam comercializadas e possam feitas, inclusive.

JC - Num momento de ‘goumertização’ de diversos pratos, de que maneira você trabalha para evidenciar a culinária sergipana?

SB – A ‘goumertização’, muitas vezes, é tida e feita com pratos de outros países. As pessoas tendem colocar o gourmet, termo que vem da alta gastronomia de entender o prato como cultural e arte, mas que tomou outro significado por conta de pessoas que não têm a responsabilidade de pensar o ato da alimentação. E aí acontece a ‘gourmetização’ que é arrumar de forma diferente e pagar horrores. Mas, sem pensar da forma artística, da forma cultural. Assim, para evidenciar a culinária sergipana, eu faço a pesquisa de campo, de vivência, com pessoas e produtores para entender Sergipe e transformá-lo na alta gastronomia. São pouquíssimas referências de restaurantes sofisticados que utilizam o produto nordestino e muito menos ainda o produto sergipano devido à globalização, à falta de entendimento da comida como manifestação artística de um povo, da sua gente. Então, o meu trabalho é de resgate de Sergipe, correndo contra o tempo e buscando trazer ao presente o máximo do passado, porque no período de 20 anos ou 30 anos, muitas receitas, muitos modos, muitos preparos se acabaram. As pessoas simplesmente não fazem mais porque não se produz mais aquele determinado tipo de coisa e aí você também não consegue produzir, e não consegue vender e não tem quem consuma. Verifiquei isso atentamente na família quando minha mãe falou de várias receitas que ela sempre fez e que minha vó também fazia, mas que hoje não tem como fazer. Tipo um café de quiabo. Ela fazia porque no fundo de casa tinha um sítio e chegava na época da estação que não tinha mais como vender, então ela secava o quiabo e da semente fazia a tosta e o café. Por isso, pesquiso e me empenho em resgatar esses sabores de Sergipe, quanta coisa nosso estado tem que não precisa ser industrializada.

JC - No Nordeste há muitos sabores. Quais aqueles que não podem faltar na comida sergipana?

SB – Estou pesquisando cada vez mais para entender os ‘porquês’, mas o que não pode faltar na gastronomia de jeito nenhum é o cominho e o coentro. Então, o cominho com a pimenta do reino é evidenciado e mostrado em toda a parte do Estado de Sergipe, desde o litoral até o sertão, independentemente da receita que você for fazer. Não podem faltar. Pesquisando, isso talvez seja em decorrência dos nossos colonizadores portugueses que utilizam muito na alimentação. Outra coisa que não pode faltar é o amendoim cozido, hoje patrimônio imaterial do nosso estado, isso depois de muita luta, pois sempre existiu e somente no ano de 2011 foi mostrado como patrimônio de um povo. Então, a gente tem que entender que somos autônomos o suficiente em nossa gastronomia. O que aconteceu foi uma invasão ditando as regras dizendo que tudo estava errado e não presta. Mas, o jeito de comer ouricuri, licuri em outros estados, aqui a gente come verdinho, enquanto que na Bahia se come bem seco. Outros sabores importantes são a castanha, o caju, a mangaba, inclusive, somos um dos maiores produtores do mundo. Então, nosso território é riquíssimo em mangaba, não podemos esquecer.

JC - A ressiginificação de pratos, seja desde o cozimento à disposição na mesa, é um desafio em Sergipe?

SB – É um desafio gigantesco porque estou abrindo uma mata e não sei o que está vindo por aí. De produtos, preparos, eu sou leiga no Estado de Sergipe, muito pequena comparado à imensidão de coisas que estou vendo. Vejo uma pedra na ponta do iceberg, nem vi a ponta dele, imagine ele inteiro. Tem muita coisa para desvendar e ressignificar os pratos que sempre existiram, preciso saber quais existiram, qual existe. Esse é o principal desafio, nem necessariamente dar um ressignificado, mas sim, primeiro saber o que é, quais são, como são feitos, quem produz, como se alcança determinado sabor, receita. É uma pesquisa que estou me lançando a fazer, me desafiando como pessoa, como jovem que quer conhecer, descobrir. A cada vez que vou a uma feira, a um município, converso com outras pessoas, que vamos conhecendo e dar um significado àquele prato. Então, o maior desfaio é descobrir o significado original e mostrar isso no prato.

JC - O que motivou e estimula manter o propósito do bistrô Seu Sergipe, ainda que muitos não aprovem, não entendam a dinâmica do lugar?

SB – Quando comecei meus olhos brilharam, pois nunca tinha visto nada além de observar minha mãe cozinhar, numa entrega linda que ela tem na coxinha e me inspira muito. Aos 21 anos, conheci o curso de gastronomia, onde vi forma de comer, azeites aromáticos e molho de tamarindo, coisa que nunca tinha visto antes. Quando pensei em fazer o Seu Sergipe, foi a partir de um processo de autoconhecimento como mulher e ser humano, e na vontade de mostrar a minha essência e Sergipe, através da comida. Quando pensei no Seu Sergipe, a ideia era mostrar ele como seu, no sentindo de posse, do ser ‘seu’ e também da autoridade do senhor, ‘Seu João’, ‘Seu Joel’, entendendo ele como forte. Então, tem pessoas que não vão entender, que acham que é apenas uma sequência de pratos, mas o que estou fazendo é contando uma história, que tem uma pessoa no interior que vende e mostra a alma. O que eu faço é arte, é único.

JC - Sergipe é fartamente bem provido de sabores?

SB – Lógico. Cada município tem sua particularidade, cada família tem sua receita, que às vezes nem valoriza porque está lá há tanto tempo, e é mais legal comer um hambúrguer ou sushi do que tentar fazer uma galinhada, um bode, pensar no maxixe sem ser cozido, couve frito, bem como pensar arraia sem ser na moqueca. Sergipe tem muito sabor, o povo sergipano tem um paladar certeiro, tem uma mão maravilhosa.

JC - Reinventar é uma necessidade ou uma aposta na descoberta de sabores que remetam ao ser nordestino, ao ser sergipano?

SB – No meu caso, é um misto de necessidade e aposta. Ao mesmo tempo que estou apostando todas as minhas fichas no ato de inventar, criar, transformar, eu necessito disso porque é preciso que seja visto de uma outra forma. Pode ser que se eu fizesse a moqueca de arraia como minha mãe ensinou seria apenas mais uma. Mas, não ia marcar como uma descoberta de sabores existentes em nosso estado, descobrindo novas possibilidades.

Texto e imagem reproduzidos do site: jornaldacidade.net