Invisibilidade Da Memória: Com Descuido De Bens
Patrimoniais, A História De Aracaju Caminha Para O Esquecimento
Fim de tarde de domingo em Aracaju. Famílias, casais e
jovens passeiam despreocupadamente pela Praça Fausto Cardoso. Seguem olhando as
vitrines da Rua João Pessoa ou caminhando até a Praça General Valadão para ver
o famoso Hotel Palace. Depois da missa na Catedral, os jovens namorados se
aconchegam na sessão das 19h no Cine Palace, enquanto a boêmia já se reúne na
Sorveteria Yara.
Com os olhos de saudade o fotógrafo, economista e
memorialista Expedito de Souza, de 71 anos, relembra uma época perdida no tempo.
Nascido em Riachão do Dantas, chegou a Aracaju ainda moleque, para estudar e
ajudar na bodega de sua tia Olga, na Rua Siriri com Itaporanga. Costumava sair
com um amigo para a caixa d’água, que na década de 40 abastecia Aracaju e hoje
é o Centro de Criatividade, para avistar toda a cidade. Na época de faculdade,
na década de 70, o Cacique Chá que reunia a nata da sociedade aracajuana, era o
roteiro dos fins de semana.
Foi no ano de 1975, em viagem a São Paulo, que decidiu
adquirir uma máquina fotográfica e no retorno começou a fotografar ruas,
avenidas e imóveis de Aracaju. Inspirado em Marc Ferrez, fotógrafo que
registrou as transformações urbanas no Rio de Janeiro no século XIX, começou a
realizar o trabalho que quase quarenta anos depois, resultaria no livro
Memórias de Aracaju. A obra retrata as mudanças urbanas e arquitetônicas,
devido ao desenvolvimento e ao crescimento populacional.
Das suas memórias e registros, muitos imóveis que tiveram
importância política, cultural e social, não existem mais ou estão abandonados,
como o antigo Diário de Aracaju, A Fonseca & Cia, o Hotel Palace e diversas
residências na Avenida Rio Branco, no centro histórico. Outros imóveis resistem
ao tempo, mas estão descaracterizados, como o Cine Rio Branco e o Colégio Nossa
Senhora de Lourdes. “A gente fica cobrando do setor público, que não faz isso,
não faz aquilo e realmente é uma verdade. Temos uma quantidade grande de
prédios e edifícios abandonados”, diz.
Ele destaca a importância de conscientizar as crianças e adolescentes
da importância dos bens culturais e da história. “É necessário um trabalho
intensivo junto aos alunos nas escolas, com as novas gerações. A educação é
fundamental”, afirma. Além disso, o fotógrafo ressalta que a parceria de
instituições públicas com os setores privados pode resultar em bons resultados,
como o Cacique Chá, reaberto esse ano através da parceria do Governo do Estado
e o Sistema Fecomércio Sesc/Senac.
O diretor do Patrimônio Histórico, Artístico e Cultural
(DPHAC), da Secretaria do Estado da Cultura, Marcos Paulo Carvalho, fala que a
união entre o poder público e a iniciativa privada pode ser um caminho para a
recuperação e modernização dos imóveis sem descaracterizar suas características
arquitetônicas e históricas. Contudo, ainda não há projetos para atrair
investidores. “A união desses dois setores só tem a crescer os processos de
salvaguarda, visando à elaboração de projetos de restauração e a sua execução.
Planos para atrair investidores precisam ser elaborados de forma sistêmica e
efetiva. Ainda não temos um plano”.
Marcas do esquecimento
Basta dar uma volta no centro de Aracaju que é possível
encontrar as marcas do descaso, com inúmeros imóveis que foram destruídos ou se
encontram abandonados. É o caso do Hotel Palace, o primeiro arranha-céu da
cidade. Inaugurado no dia 24 de junho de 1962, o local impulsionou o turismo e
foi considerado um grande centro cultural, econômico e político. Diversas
celebridades nacionais se hospedaram no hotel, como a Seleção Brasileira
vencedora da copa de 1970, o escritor Jorge Amado, Roberto Carlos, Chacrinha,
Luiz Gonzaga, Alcione, o grupo Dominó, Agnaldo Timóteo, Ângela Maria e
presidentes como Emílio Garrastazu Médici e João Batista Figueiredo.
O prédio pertence à Empresa Sergipana de Turismo (Emsetur)
que ainda não tem projetos para restaura-lo. Atualmente, é ocupado apenas no
pavimento térreo por pequenos estabelecimentos comerciais. Aliás, poucas
pessoas que trabalham nos arredores do prédio sabem a sua história.
O historiador Francisco José Alves, professor da
Universidade Federal de Sergipe, conta que em visita recente com alunos ao
centro, ficou chocado com o abandono. Ele ressalta a importância da região,
onde se encontra signos políticos, religiosos e culturais. “A Ponte do Imperador,
em frente à Praça Fausto Cardoso, eu diria que é o maior signo arquitetônico
identitário da cidade e está abandonada. A identidade de um povo se faz no
resgate do passado e esses espaços são constituintes disso”, afirma.
Entretanto, para ele o descuido com os bens culturais é
inadmissível, mesmo que determinado imóvel não seja tombado. “Cabe aos gestores
públicos cuidar de todos os bens do patrimônio público. O quadro geral é de
abandono, para mim fica muito claro que é um crime”, fala.
Segundo o assessor de comunicação da Empresa Municipal de
Obras e Urbanização (Emurb) Ademar Queiroz, os imóveis são de responsabilidade
dos proprietários. Apenas quando há riscos a população, como de desabamento, é
que a defesa civil entra em atuação. Em outros casos, como a incidência de
usuários de drogas ou criminosos, o Ministério Público é acionado através de
denúncias.
O diretor do DPHAC, explica que sempre quando solicitado o
órgão realiza visita técnica nos bens culturais materiais que ainda não foram
tombados, por exemplo, obras de arte e edificações, para constatar a
importância para a história, memória e cultura local. Quando um imóvel
histórico caí no abandono ou é descaracterizado, é considerado um sério dano à
salvaguarda patrimonial.
“A forma mais eficaz para que isso não ocorra, é a união dos
três poderes públicos: federal, estadual e municipal, em conjunto com o
ministério público, que é um grande aliado nesta questão, e sem dúvida, a
conscientização da sociedade como um todo. Assim, só tem a ganhar as histórias
e memórias do povo sergipano”, diz.
Bens tombados
O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional em
Sergipe (Iphan) é o órgão do governo federal responsável por proteger e
preservar os patrimônios materiais e imateriais do país. Em Aracaju, não
existem bens tombados pelo Instituto, apenas pelo Governo de Estado, que ao
todo são 39. Entre eles o prédio do Antigo Colégio Nossa Senhora de Lourdes, a
Catedral Metropolitana, a Capela São João Batista e a Ponte do Imperador.
A superintendente em exercício do Iphan, Venicia Rodomar,
fala que o papel da instituição na capital é apenas de instrução dos processos
de tombamento. “Como Aracaju ainda não é tombada, a gente não atua diretamente
sobre esses imóveis, é tudo extraoficial. Mas o Iphan já realizou alguns
estudos de conhecimento do patrimônio aracajuano”, diz. Contudo, esses
inventários não estão abertos para o público. Segunda Venicia, trata-se de uma
questão de segurança. “Abrir o que já foi identificado significa leva-los a
risco. Porque se as pessoas entenderem que é possível um tombamento, pode ser
que elas possam demolir ou descaracterizar. Quando se fechar o processo ficará
disponível”.
Segundo a lei de tombamento, a responsabilidade pela
manutenção dos bens tombados é dos proprietários e cabe ao órgão tombador
fiscalizar. “O tombamento não é uma expropriação, a pessoa continua dono. O que
não pode é destruir ou descaracterizar. O problema no caso dos bens tombados, é
que os proprietários em sua maioria não manifestam interesse em cuidar do bem”,
explica o historiador Francisco.
O Governo do Estado criou a DPHAC há seis meses, com a
missão de realizar inspeções com registros fotográficos, emitir relatórios
técnicos sobre o estado de preservação dos monumentos tombados e elaborar
pareceres técnicos, sobre os bens históricos e culturais. Esses documentos são
encaminhados para os responsáveis por esses bens.
Quando um imóvel é tombado, o bem não pode ser demolido e
qualquer obra de manutenção, restauração e reforma tem que ser antes avaliada
pelo órgão tombador. Ações que não seguem a lei são cabíveis de multa. Se o
dono percebe que o imóvel está em condições degradantes, deve imediatamente
informar, mesmo que não tenha condições financeiras para realizar os reparos. A
população que perceber essa descaracterização ou abandono, também pode e deve
denunciar, junto ao Ministério Público. “O lei enquanto texto é morta, ela só
vigora e atua quando as pessoas cobram”, afirma Francisco.
A ruptura entre o passado e o futuro
O centro histórico é o berço da história e cultura da cidade
de Aracaju. O seu planejamento e organização espacial, do chamado “quadrante de
Pirro”, em referência ao autor do projeto, o engenheiro militar Sebastião José
Basílio Pirro, tinha como centro a Praça Fausto Cardoso. A partir dali foi
traçado o tabuleiro de xadrez que deu forma à nova capital e posteriormente as
primeiras edificações que deram início ao conjunto urbano da cidade. É
incontestável a relevância histórico-cultural de toda aquela área.
Durante muitos anos foi realizada uma política de
desenvolvimento urbano, sem dar prioridade à salvaguarda e proteção do
patrimônio cultural. Com isso, muitos bens patrimoniais foram apagados da
história. Mas qual é o real problema nessa questão? Nem todo mundo sente uma
ligação com sua herança cultural.
A cultura pode dar às pessoas uma conexão com certos valores
sociais, crenças, religiões e costumes. Isso nos permite sentir identificação
com outros de mentalidade e origens semelhantes. O patrimônio cultural pode
fornecer um sentido automático de unidade, de pertença dentro de um grupo e nos
permite entender melhor as gerações anteriores e a história de onde viemos.
O verdadeiro desenvolvimento acontece através da
salvaguarda, preservação e promoção do patrimônio cultural, fortalecimento da
memória coletiva e identidade cultural. Não perceber a devida importância
disso, é condenar as pessoas a viverem sem memória e hipotecar nosso futuro de
forma irreversível.
Texto e imagem reproduzidos do site: ayallajor.com.br