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sexta-feira, 6 de setembro de 2019

Invisibilidade da Memória...

Publicado originalmente no site ayallajor.com.br

Invisibilidade Da Memória: Com Descuido De Bens Patrimoniais, A História De Aracaju Caminha Para O Esquecimento

Fim de tarde de domingo em Aracaju. Famílias, casais e jovens passeiam despreocupadamente pela Praça Fausto Cardoso. Seguem olhando as vitrines da Rua João Pessoa ou caminhando até a Praça General Valadão para ver o famoso Hotel Palace. Depois da missa na Catedral, os jovens namorados se aconchegam na sessão das 19h no Cine Palace, enquanto a boêmia já se reúne na Sorveteria Yara.

Com os olhos de saudade o fotógrafo, economista e memorialista Expedito de Souza, de 71 anos, relembra uma época perdida no tempo. Nascido em Riachão do Dantas, chegou a Aracaju ainda moleque, para estudar e ajudar na bodega de sua tia Olga, na Rua Siriri com Itaporanga. Costumava sair com um amigo para a caixa d’água, que na década de 40 abastecia Aracaju e hoje é o Centro de Criatividade, para avistar toda a cidade. Na época de faculdade, na década de 70, o Cacique Chá que reunia a nata da sociedade aracajuana, era o roteiro dos fins de semana.

Foi no ano de 1975, em viagem a São Paulo, que decidiu adquirir uma máquina fotográfica e no retorno começou a fotografar ruas, avenidas e imóveis de Aracaju. Inspirado em Marc Ferrez, fotógrafo que registrou as transformações urbanas no Rio de Janeiro no século XIX, começou a realizar o trabalho que quase quarenta anos depois, resultaria no livro Memórias de Aracaju. A obra retrata as mudanças urbanas e arquitetônicas, devido ao desenvolvimento e ao crescimento populacional.

Das suas memórias e registros, muitos imóveis que tiveram importância política, cultural e social, não existem mais ou estão abandonados, como o antigo Diário de Aracaju, A Fonseca & Cia, o Hotel Palace e diversas residências na Avenida Rio Branco, no centro histórico. Outros imóveis resistem ao tempo, mas estão descaracterizados, como o Cine Rio Branco e o Colégio Nossa Senhora de Lourdes. “A gente fica cobrando do setor público, que não faz isso, não faz aquilo e realmente é uma verdade. Temos uma quantidade grande de prédios e edifícios abandonados”, diz.

Ele destaca a importância de conscientizar as crianças e adolescentes da importância dos bens culturais e da história. “É necessário um trabalho intensivo junto aos alunos nas escolas, com as novas gerações. A educação é fundamental”, afirma. Além disso, o fotógrafo ressalta que a parceria de instituições públicas com os setores privados pode resultar em bons resultados, como o Cacique Chá, reaberto esse ano através da parceria do Governo do Estado e o Sistema Fecomércio Sesc/Senac.

O diretor do Patrimônio Histórico, Artístico e Cultural (DPHAC), da Secretaria do Estado da Cultura, Marcos Paulo Carvalho, fala que a união entre o poder público e a iniciativa privada pode ser um caminho para a recuperação e modernização dos imóveis sem descaracterizar suas características arquitetônicas e históricas. Contudo, ainda não há projetos para atrair investidores. “A união desses dois setores só tem a crescer os processos de salvaguarda, visando à elaboração de projetos de restauração e a sua execução. Planos para atrair investidores precisam ser elaborados de forma sistêmica e efetiva. Ainda não temos um plano”.

Marcas do esquecimento

Basta dar uma volta no centro de Aracaju que é possível encontrar as marcas do descaso, com inúmeros imóveis que foram destruídos ou se encontram abandonados. É o caso do Hotel Palace, o primeiro arranha-céu da cidade. Inaugurado no dia 24 de junho de 1962, o local impulsionou o turismo e foi considerado um grande centro cultural, econômico e político. Diversas celebridades nacionais se hospedaram no hotel, como a Seleção Brasileira vencedora da copa de 1970, o escritor Jorge Amado, Roberto Carlos, Chacrinha, Luiz Gonzaga, Alcione, o grupo Dominó, Agnaldo Timóteo, Ângela Maria e presidentes como Emílio Garrastazu Médici e João Batista Figueiredo.

O prédio pertence à Empresa Sergipana de Turismo (Emsetur) que ainda não tem projetos para restaura-lo. Atualmente, é ocupado apenas no pavimento térreo por pequenos estabelecimentos comerciais. Aliás, poucas pessoas que trabalham nos arredores do prédio sabem a sua história.

O historiador Francisco José Alves, professor da Universidade Federal de Sergipe, conta que em visita recente com alunos ao centro, ficou chocado com o abandono. Ele ressalta a importância da região, onde se encontra signos políticos, religiosos e culturais. “A Ponte do Imperador, em frente à Praça Fausto Cardoso, eu diria que é o maior signo arquitetônico identitário da cidade e está abandonada. A identidade de um povo se faz no resgate do passado e esses espaços são constituintes disso”, afirma.

Entretanto, para ele o descuido com os bens culturais é inadmissível, mesmo que determinado imóvel não seja tombado. “Cabe aos gestores públicos cuidar de todos os bens do patrimônio público. O quadro geral é de abandono, para mim fica muito claro que é um crime”, fala.

Segundo o assessor de comunicação da Empresa Municipal de Obras e Urbanização (Emurb) Ademar Queiroz, os imóveis são de responsabilidade dos proprietários. Apenas quando há riscos a população, como de desabamento, é que a defesa civil entra em atuação. Em outros casos, como a incidência de usuários de drogas ou criminosos, o Ministério Público é acionado através de denúncias.

O diretor do DPHAC, explica que sempre quando solicitado o órgão realiza visita técnica nos bens culturais materiais que ainda não foram tombados, por exemplo, obras de arte e edificações, para constatar a importância para a história, memória e cultura local. Quando um imóvel histórico caí no abandono ou é descaracterizado, é considerado um sério dano à salvaguarda patrimonial.

“A forma mais eficaz para que isso não ocorra, é a união dos três poderes públicos: federal, estadual e municipal, em conjunto com o ministério público, que é um grande aliado nesta questão, e sem dúvida, a conscientização da sociedade como um todo. Assim, só tem a ganhar as histórias e memórias do povo sergipano”, diz.

Bens tombados

O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional em Sergipe (Iphan) é o órgão do governo federal responsável por proteger e preservar os patrimônios materiais e imateriais do país. Em Aracaju, não existem bens tombados pelo Instituto, apenas pelo Governo de Estado, que ao todo são 39. Entre eles o prédio do Antigo Colégio Nossa Senhora de Lourdes, a Catedral Metropolitana, a Capela São João Batista e a Ponte do Imperador.

A superintendente em exercício do Iphan, Venicia Rodomar, fala que o papel da instituição na capital é apenas de instrução dos processos de tombamento. “Como Aracaju ainda não é tombada, a gente não atua diretamente sobre esses imóveis, é tudo extraoficial. Mas o Iphan já realizou alguns estudos de conhecimento do patrimônio aracajuano”, diz. Contudo, esses inventários não estão abertos para o público. Segunda Venicia, trata-se de uma questão de segurança. “Abrir o que já foi identificado significa leva-los a risco. Porque se as pessoas entenderem que é possível um tombamento, pode ser que elas possam demolir ou descaracterizar. Quando se fechar o processo ficará disponível”.

Segundo a lei de tombamento, a responsabilidade pela manutenção dos bens tombados é dos proprietários e cabe ao órgão tombador fiscalizar. “O tombamento não é uma expropriação, a pessoa continua dono. O que não pode é destruir ou descaracterizar. O problema no caso dos bens tombados, é que os proprietários em sua maioria não manifestam interesse em cuidar do bem”, explica o historiador Francisco.

O Governo do Estado criou a DPHAC há seis meses, com a missão de realizar inspeções com registros fotográficos, emitir relatórios técnicos sobre o estado de preservação dos monumentos tombados e elaborar pareceres técnicos, sobre os bens históricos e culturais. Esses documentos são encaminhados para os responsáveis por esses bens.

Quando um imóvel é tombado, o bem não pode ser demolido e qualquer obra de manutenção, restauração e reforma tem que ser antes avaliada pelo órgão tombador. Ações que não seguem a lei são cabíveis de multa. Se o dono percebe que o imóvel está em condições degradantes, deve imediatamente informar, mesmo que não tenha condições financeiras para realizar os reparos. A população que perceber essa descaracterização ou abandono, também pode e deve denunciar, junto ao Ministério Público. “O lei enquanto texto é morta, ela só vigora e atua quando as pessoas cobram”, afirma Francisco.

A ruptura entre o passado e o futuro

O centro histórico é o berço da história e cultura da cidade de Aracaju. O seu planejamento e organização espacial, do chamado “quadrante de Pirro”, em referência ao autor do projeto, o engenheiro militar Sebastião José Basílio Pirro, tinha como centro a Praça Fausto Cardoso. A partir dali foi traçado o tabuleiro de xadrez que deu forma à nova capital e posteriormente as primeiras edificações que deram início ao conjunto urbano da cidade. É incontestável a relevância histórico-cultural de toda aquela área.

Durante muitos anos foi realizada uma política de desenvolvimento urbano, sem dar prioridade à salvaguarda e proteção do patrimônio cultural. Com isso, muitos bens patrimoniais foram apagados da história. Mas qual é o real problema nessa questão? Nem todo mundo sente uma ligação com sua herança cultural.

A cultura pode dar às pessoas uma conexão com certos valores sociais, crenças, religiões e costumes. Isso nos permite sentir identificação com outros de mentalidade e origens semelhantes. O patrimônio cultural pode fornecer um sentido automático de unidade, de pertença dentro de um grupo e nos permite entender melhor as gerações anteriores e a história de onde viemos.

O verdadeiro desenvolvimento acontece através da salvaguarda, preservação e promoção do patrimônio cultural, fortalecimento da memória coletiva e identidade cultural. Não perceber a devida importância disso, é condenar as pessoas a viverem sem memória e hipotecar nosso futuro de forma irreversível.

Texto e imagem reproduzidos do site: ayallajor.com.br