Folclore: o mundo em Sergipe, na boca do povo.
Por Luiz Antônio Barreto.
O Folclore – sabedoria popular, manifestação genuína,
colegiada, dinâmica e expressiva do povo -, faz a ponte do presente com o
passado, guardando na memória social os repertórios marcantes do mundo, com os
quais mantém valores importantes utilizados na formação dos povos novos, como
aconteceu com as Américas e com o Brasil. Cada fato folclórico tem sua origem
emblemática, simbólica, nem sempre precisa em termos geográficos, mas sempre
válida como lúdica na vida do povo.
A história humana carrega a marca do folclore, ainda que o
termo e o que ele representa entrassem em uso muito mais tarde, no século XIX,
quando surgiram as primeiras sistematizações de pesquisas e interpretações dos
fatos culturais ligados ao povo. Antes circularam na Europa algumas antologias
de poesias tradicionais. A partir da difusão do termo Folclore e de sua
incorporação no bojo dos ideais românticos tiveram início as pesquisas, em
várias partes do mundo, recolhendo os fragmentos mais antigos da criação
popular.
Vários povos, no entanto, tinham repertórios próprios,
transmitidos em velhos códices copiados a mão, onde enfeixavam textos
nacionais, heroicos, verdadeiros guias do brio e da honra dos seus usuários.
Era comum aos povos catalogar as suas aventuras para que servissem à educação
das crianças e dos jovens e de exortação aos governantes, pela clareza dos
exemplos. Assim surgiram as grandes coleções de estórias, como o Panchatranta,
escrito em sânscrito, entre o séculos IV e VI, ou coleções de poemas, como Os
Vedas. O Mahabharata, o Ramaiana, que parecem confirmar o uso das antiguidades
como princípios pedagógicos, realimentadores da sobrevivência.
Talvez mesmo por conta desse traçado histórico Splengler não
tenha feito dos homens e nem dos povos, mas da cultura destes, a protagonista
da história, como se bastasse dizer: Era uma vez... A oralidade tem, portanto,
um vínculo completo com o passado dos povos e funciona para manter a tradição.
Foi com ela que os povos criaram ou prolongaram a vida das orações e dos
cantos, para a exaltação das forças divinas, do mesmo jeito que glorificaram as
façanhas famosas do passado.
É certo que a escrita alongou o campo da memória, fazendo
recircular os repertórios, mas ainda hoje a oralidade cumpre papel essencial,
com o qual alimenta e realimenta as bases da sobrevivência dos povos e das
sociedades. Não é tarefa fácil separar, pela medida da importância, o oral e o
escrito na história dos povos, nem de suas culturas, notadamente os povos
novos, como o brasileiro. O domínio da escrita não impõe e nem significa uma
ruptura definitiva e completa com o passado da pessoa, a tradição herdada, o
contexto social, nem com o conhecimento oral.
A cultura dos povos anteriores ao Novo Mundo tem um marco
divisor no longo período, do século IX ao século XV, denominado de Idade Média,
cobrindo a monarquia de Carlos Magno, Rei de França, até as descobertas
marítimas que deram a Espanha e a Portugal uma glória nova, que trocou a
imaginação pela ação. Um bom exemplo é a preservação da imagem de Carlos Magno,
como monarca e como guia espiritual da Europa, morto em 814, num livro
intitulado História de Carlos Magno e dos Doze Pares de França, que apareceu
aproximadamente em 1485. Com este exemplo se pode projetar a vigência
cronológica da Idade Média, como síntese da expansão dos domínios da
cristandade.
Sem precisar recorrer a outra referência, que não a de
Carlos Magno, se pode identificar o entranhamento, nas culturas dos povos
novos, de toda a atmosfera medieval, que inspirou o Império Carolíngio nas suas
cruzadas em favor do Cristianismo. Isto porque a essencialidade dos repertórios
literários da Idade Média pode ser resumida na sobrevivência de temas
históricos, lendários e heroicos, na exaltação dos valores morais, sociais e
religiosos, e na profunda inspiração cristã.
Os repertórios novos, é bom que fique logo claro, foram
“colados” por cima de todo o acervo indígena, múltiplo e variado, e africano,
igualmente dotado de variedades, sendo ambos eminentemente orais. Foi, enfim,
pela força do Império de Carlos Magno que os poemas, cantigas, estórias,
fábulas, que pertenceram a povos mortos da história, chegaram ao Novo Mundo, ao
Brasil e a Sergipe.
De igual modo, a Idade Média projetou seu engenho cultural
no renascimento – época da descoberta da América e do Brasil – tingindo com as
cores dos estandartes cristãos toda a arte e toda a cultura dos povos
descobertos e conquistados. Neste sentido, a Idade Média não cobre apenas seis
séculos da cronologia histórica que a destaca, mas recua a tempos imemoriais
para colher a memória do passado, e ainda avança no tempo futuro para legar uma
herança que vive, sempre, pela boca do povo.
Não bastasse o exemplo do livro A História de Carlos Magno e
dos Doze Pares de França, que chegou ao Brasil em 1728, em 1ª edição portuguesa,
traduzida do espanhol por Jerônimo Moreira de Carvalho, e que na opinião de
Luiz da Câmara Cascudo se tornou um dos livros mais lidos no Brasil e um dos
cinco livros do povo. E se teria Roldão, forma espanholada e abrasileirada de
Roland, personagem principal de uma canção de gesta do ano 1070, sobre a
emboscada sofrida pelo rei franco, no desfiladeiro de Roncesvales, pelos
bascos, em 778. Roldão está em dezenas de folhetos de cordel, nos versos
recitados durante a corrida das argolas, nas Cavalhadas, como está também na
rica iconografia das xilogravuras, correndo mundo.
Estão igualmente na boca do povo, na literatura de cordel,
nas estórias e romances, nomes como Roberto da Normandia, personagem da
primeira das cruzadas, ainda no século XI. Muitos outros heróis da utopia de
Carlos Magno de estabelecer um Estado Teocrático na França, unificando a Europa
pelo Cristianismo. Idéia muito próxima de um modelo cristianizador ibérico,
posto em prática no Novo Mundo pelas coroas de Espanha e Portugal, com a participação
qualificada da Companhia de Jesus.
Mais do que personagens da literatura oral sobreviveram os
gêneros, depositários de todo o espectro repertorial da humanidade antiga. São
os adágios, os aforismos, os apólogos, as apotegmas, os axiomas, os dísticos,
os enigmas, epigramas, as epopéias, as fábulas, as cantigas, as coplas, as
canções de gestas, as lendas, os provérbios, as saetas, as sagas, as sentenças,
os romances, as xácaras, as estórias que troveiros, jograis, goliardos,
clérigos cultuaram no curso da vida e da história, como manifestação estética e
moral de suas próprias realidades.
A descoberta do Brasil coincide, cronologicamente, com a
travessia entre o oral e o escrito, o códice e o livro. Além da palavra dos
predicantes, com o todo o repertório transformado em arsenal de combate – a
guerra santa – o Brasil contou na sua colonização com diversos outros
instrumentos de cultura, notadamente literários e artísticos, como coleções de
contos, a começar pelos Contos e Histórias de Proveito e Exemplo, de Gonçalo
Fernandes Trancoso, de 1575, que praticamente deu nome a todas as estórias
populares no País. Contou com as coplas pastoris, que cantam o nascimento de
Jesus, com autos populares, como o Reisado, dos dois cordões – o azul e o
encarnado -, e como a Chegança, que retrata a luta entre cristãos e mouros, com
a nau da cristandade abordando o quartel da mourama, com embaixadas e lutas que
visam submeter os árabes ao Catolicismo, com o batismo que significa a vitória
cristã.
Durante a dependência formal a Portugal, o Brasil conviveu
com a fantasia dos repertórios antigos, medievais, que transplantavam reinos e
cortes, fidalgos e vassalos, como uma lúdica a aplacar o fadário da ocupação e
da colonização da terra. A diversidade dos repertórios fez de cada brasileiro
um ser do mundo, de cada palavra uma chave universal de contato, de cada
estória, de cada verso ou cantiga, de cada dito ou romance fez uma senha de
entrada, ou de regresso ao mundo velho da história humana.
Nem mesmo a presença imensa de gente indígena, nas praias e
florestas, com seu ritos, seus deuses, seus meios próprios de distinguir nas
plantas o remédio que cura, o veneno que mata, alterou o plano colonizador, com
seu mundo de cultura. Aos poucos, pelas fazendas e engenhos, foram mescladas e
incorporadas ao imaginário, as contribuições das diversas nações autóctones,
aumentando muito mais o volume das coisas intangíveis, ao lado da produção
material, dos artefatos, e de hábitos que distinguiam o viver local.
A sobrevivência dos índios, em vários pontos do país, não
garantiu a sobrevivência de sua cultura, íntegra como a registra Gabriel Soares
de Souza, em 1587, no primeiro contato branco, no Tratado Descritivo da Terra
do Brasil. Os índios do norte não guardam maiores semelhanças com as nações que
sobreviveram no nordeste, como os Xocó da ilha de São Pedro, em Porto da Folha,
no sertão sanfranciscano de Sergipe.
O imenso universo de crenças, de mitos, de saberes e de
fazeres indígenas, de música e de dança, não compõem, ainda hoje, um repertório
ordenado que pudesse atestar a existência histórica e moral de milhões de
pessoas da natureza, com suas sociedades típicas, e da cultura dos primeiros
tempos do Brasil.
A presença dos negros africanos, arrancados à força como
bestas de carga para o trabalho escravo, também foi ignorada no plano plural da
cultura. Não porque faltasse ao convívio colonial a contribuição negra, clara e
permitida ou oculta e proibida. O que faltou foi a visão geral da criação
negra, a ancestralidade antiga, os mitos e ritos, as produções materiais, a
herança mítica da terra berço, onde parece que a humanidade deu os seus
primeiros passos.
Os negros foram reduzidos pela força e pela catequese ao
estado jurídico e cultural de coisas, reconhecido pelo preço que custava aos
seus donos, ou pelos sinais anatômicos da raça. Portadores de expressões
culturais proibidas, simularam, no sincretismo possível, a sobrevivência. O
Brasil foi, num certo sentido, um laboratório de raças e de culturas. Produziu
o mestiço, dando-lhe uma feição universal, mas não conseguiu consagrar a
igualdade social, nem mesmo eliminar as discriminações da cidadania desigual.
Evidentemente que personagens vencidos nas insurgências da
história deixaram nome e fama na memória do povo. Antonio Mendes Maciel, o Bom
Jesus Conselheiro, Virgulino Ferreira da Silva, o Capitão Lampeão, rasgaram com
suas alparcatas as trilhas espinhosas das caatingas sertanejas, com seus
seguidores, perdidos do tempo e da marcha do País. O Belo Monte Santo do sertão
da Bahia tornou-se um cenário das mais emocionadas refregas, onde homens e
mulheres simples, tomados de uma ira santa, enfrentaram armas e Poder, com o
pensamento fixo no paraíso.
Poucas vezes no curso da história humana um pedaço do povo
sonhou tão alto a utopia da felicidade, da fartura, da salvação, quase como a
repetir o gesto audaz do jovem Rei Dom D. Sebastião, que tombou sem vida, no
Marrocos, emprestando na sua espada a coragem da luta pela vitória do
cristianismo contra os infiéis. Poucas vezes um pedaço do corpo social
brasileiro sofreu tanto a adversidade da história, sob o terror dos
dominadores. A página de Canudos se insere na história do Brasil como um
retrato da tragédia dos fracos, como a saga dos cangaceiros reflete a ousada rebeldia
dos sem - terra, constituídos em força ilegal, no desafio provocador ao Poder.
Mortos, com as cabeças decepadas, os homens e as mulheres do
Cangaço deram entrada, no panteão da história, como personagens das estórias,
cantigas, rezas e fatos que passaram a ser, nas noites solidárias do Nordeste,
os assuntos preferenciais do povo. O tempo não injuriou, ainda, Conselheiro,
nem trapaceou com Lampeão. Mas, ao contrário, quanto mais passa, mais o tempo
deixa um rastro antigo dessas pessoas, na memória social do Brasil. Conselheiro
construiu igrejas e cemitérios em cidades e povoados sergipanos e Lampeão andou
e morreu em Sergipe, deixando aqui sua filha, Expedita, para sobreviver,
constituir família e ser uma lembrança viva do seu tempo.
Fonte: Serigy - A história de um povo
Foto e texto reproduzidos do blog: tribunadapraiaonline.com