segunda-feira, 27 de agosto de 2012

A culpa é das estrelas


Fiz uma viagem e na volta, no avião, vim agarrada com as páginas finais desse livro perturbador, lírico, forte, belo, contundente, meio piegas sob certos aspectos e extremamente tocante, sob quase todos os outros, e cujas frases iniciais me ligaram a ele de modo incoercível:

Faltando pouco para eu completar meu décimo sétimo ano de vida minha mãe resolveu que eu estava deprimida, provavelmente porque quase nunca saía de casa, passava horas na cama, lia o mesmo livro várias vezes, raramente comia e dedicava grande parte do meu abundante tempo livre pensando na morte. 

Sempre que você lê um folheto, uma página da Internet ou sei lá o que mais sobre câncer, a depressão aparece na lista dos efeitos colaterais. Só que, na verdade, ela não é um efeito colateral do câncer. É um efeito colateral de se estar morrendo. (O câncer também é um efeito colateral de se estar morrendo. Quase tudo é, na verdade.) (p. 11).

Pronto: os dois temas cruciais da ficção estão expostos de forma contundente: a morte, o câncer. Daqui a pouco, quando Hazel Grace começar a frequentar o grupo de apoio de adolescentes com câncer, surgirá o outro tripé da história: o amor. Além disso, também já estão expostos nesses parágrafos iniciais outros aspectos fundamentais para a grande recepção da obra: sua linguagem desabusada, a ironia contundente, o modo aberto, destemido e sem qualquer resquício seja de paternalismo, seja de condescendência com os jovens e seu estado geral com que o autor imerge no universo dessa doença: Hazel carregando um cilindro de oxigênio e dois cateteres enfiados nas narinas; Augustus Waters com alguma dificuldade ao andar em razão da prótese em uma das pernas; Isaac, amigo de ambos, em vias de ficar cego de seu único olho e de, por isso, perder a namorada, que prometera amá-lo para sempre.

A linguagem, portanto, é trabalhada não apenas em função de explicitar o universo mental dos jovens protagonistas, mas também de cooptar o leitor para uma aproximação com essa coisa temerária, esse mundo das sombras e de dores que permeia a história da doença - deles e nossas. Além disso, os dois jovens amam ler, são leitores vorazes, e há uma história paralela a respeito menos de um livro do que de sua leitura - Uma aflição imperial (UAI). Hazel não se conforma com o fim sem final explícito da história e escreve emails sem respostas para o autor, em busca de explicações para aquelas vidas: o que teria sido feito de Anna? e o hamster, morreu ou sobreviveu? e o namorado da mãe dela, era ou não um escroque?. Essa será, então, uma outra vertente de interesse do romance, que permite ao autor, John Green, pensar conosco sobre o valor da literatura, sua relação com a vida real, o modo como ela atravessa o cotidiano de quem lê, como nos instiga e nos intima a dela fazer parte. 

A maneira como a literatura instrui, de certo modo, a narrativa, aparece na descrição que Hazel faz do romance que a obseda:

UAI é sobre uma menina chamada Anna e sua mãe de um olho só - uma paisagista obcecada por tulipas. As duas levam uma vida típica de classe média baixa numa cidadezinha da Califórnia, até que um dia Anna é diagnosticada com um tipo raro de leucemia.   
[...]
Aí, no decorrer da história, ela adoece ainda mais, a doença e os tratamentos competindo para ver quem a mata primeiro, e a mãe se apaixona por um vendedor de tulipas holandês que a Anna chama de o Homem das Tulipas Holandês. O Homem das Tulipas Holandês tem muito dinheiro e ideias bastante excêntricas a respeito de como tratar o câncer, mas a Anna acha que esse cara pode ser um vigarista e que talvez não seja nem mesmo holandês, e aí, no momento em que o provável holandês e a mãe dela estão prestes a se casar, e Anna está à beira de iniciar um novo tratamento doido envolvendo grama de trigo e pequenas doses de arsênico, o livro termina bem no meio de uma
(p. 51)

Provavelmente, se Hazel tivesse conhecido nossa Clarice não teria estranhado tanto um livro que termina com uma frase pelo meio. Esse vai ser um dos motes para as peripécias vividas pelos dois jovens e enamorados: ambos irão a Amsterdã, acompanhados da mãe de Hazel, para conversar com o autor de UAI e tentar entender o que houve com os personagens. Na verdade, eles vão mesmo é tomar satisfações a respeito da arbitrariedade da ficção; de sua falta de verossimilhança; de como aquela personagem 'que sou eu' não tem o fim que eu espero 'para mim', leitor implícito.*

Dito de outra forma, Hazel formula de modo simples (talvez um tanto simples demais, já que ela acredita mesmo que o autor sabe onde está Anna e o hamster e esconde essa informação do leitor) o problema axial para tantos que estudam ou estudaram o fenômeno literário: a questão da mímese, da relação entre real e imaginário, de até onde a ficção seria ou não especular de um real. Enfim, a literatura como problema estético faz parte da trama, e a linguagem, assim, explora a metalinguagem de modo simples, mas perspicaz, sedutor.

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Acho que quem teve câncer, qualquer que seja sua idade, não passa batido de jeito nenhum pela leitura dessa história de amor entre jovens que experimentam algumas descobertas cruciais, dentro de sua ainda restrita gama de vivências, a respeito de como a vida é preciosa e efêmera, a respeito do amor, de viver momentos intensos e inteiros, de perder, de sofrer, de como o percurso de cada um é especial, único.

Sei que o livro deve muito de seu enorme sucesso não apenas ao fato de tratar o câncer de modo leve,  e quase coloquial, já que se trata de uma doença cujo nome muitas pessoas, em inúmeros lugares (e não apenas nos mais atrasados social e economicamente) jamais pronunciam, como se o nome trouxesse em si mesmo a doença, e devesse ser ouvido apenas nas reticências. Aqui, os personagens falam abertamente sobre c.â.n.c.e.r., há inúmeras passagens em que ali me reconheço inteiramente (quem quer que tenha passado pelos efeitos da quimioterapia sabe bem o que significa a frase a doença e os tratamentos competindo para ver quem a mata primeiro). Desse modo, sinto-me reconfortada por estar em companhia de jovens tão corajosos, capazes de pensamentos como:

- Não vá me dizer que você é uma daquelas pessoas que encarnam a doença. Conheço tanta gente assim... Dá até pena. Tipo, o câncer é um negócio em franco crescimento, certo? O negócio de tomar-as-pessoas-de-assalto. Mas é claro que você não deixou que ele saísse vencedor assim tão cedo.  (p. 36)

Por outro lado, sei que ele também - este romance - parece uma obra pensada-para-dar-certo, utilizando de modo sistemático, e muito bem, todos os elementos necessários para criar empatia com seu leitor: linguagem simples, típica de certa faixa etária; problemas sérios tomados de modo leve, mas capaz de emocionar e mesmo levar às lágriamas, por seu caráter de irremediabilidade; juventude, amor e entusiamo caminhando junto com doença, morte e destino trágico. Enfim, teria de vir dos Estados Unidos tal livro, um dos países onde mais recorrentemente se lê a respeito da disseminação da doença, e que também mais publicamente está comprometido com as variadas formas de lidar coletivamente com esse e outros males (é lá o berço, por exemplo, dos grupos de ajuda dos alcoólicos anônimos, entre outros), de modo a amainar seus efeitos devastadores sobre os indivíduos.

Pensado ou não para ser um best-seller, A culpa é das estrelas cumpre seu objetivo com louvor. É um livro que se lê com prazer, emoção e cumplicidade. Ter sido paciente de câncer não parece condição para desfrutar da companhia dessa turma de valentes, que trata a morte com a intimidade dos que têm a força. Se não um futuro, os instantes de que dispõem nos mostram que podem ser vividos com inteireza, entrega e intensidade. E sem as dúvidas de Hezel sobre como termina o romance.

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*Sobre o conceito de leitor implícito, ver:

COSTA, Márcia Hávila Mocci da Silva. Estética da recepção e teoria do efeito
In: http://abiliopacheco.files.wordpress.com/2011/11/est_recep_teoria_efeito.pdf

"Uma das principais premissas teóricas de Iser (1996) é o leitor implícito, entendido como uma estrutura textual que oferece “pistas” sobre a condução da leitura. Tal leitor só existe na medida em que o texto determina sua existência e as experiências processadas, no ato da leitura, são transferências das estruturas imanentes ao texto. A partir dessa concepção, o leitor passa a ser percebido como uma estrutura textual (leitor implícito) e como ato estruturado (a leitura real).

Por não possuir existência real, o leitor implícito emerge das estruturas textuais, na medida em que estas reivindicam sua participação. Assim, a criação literária, através de sua organização textual, antecipa os efeitos previstos sobre o leitor; porém, os princípios de seleção que possibilitam a atualização do texto são particulares a cada leitor." (p. 9)

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GREEN, John. A culpa é das estrelas. Tradução Renata Pettengill. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2012.

sábado, 25 de agosto de 2012

Varilux 2012: Americano; O monge; Intocáveis


No último dia da maratona francesa, vi esses três: Americano; O monge; Intocáveis.

Pois então, para as trinta e quatro almas mudas e silenciosas que por aqui passaram esses dias (assim diz o infográfico, que pode estar mentindo, claro), comentários mega subjetivos, como sempre, sobre os filmes.

Americano é um filme dirigido, produzido e com atuação ótima do Mathieu Demy, filho dos grandes Jacques Demy e Agnès Varda, mas que pode assinar simplesmente seu nome, tendo já aprendido o ofício com pais tão candentes. Trata-se de um drama: o filho residente em Paris, onde está sua mulher (não menos que a lindíssima Chiara Mastroiannni, menos estonteante do que no filme anterior que vi dela, mas também ali é covardia comparar) e seu pai, recebe a notícia da morte da mãe na América do Norte. Ele não conviveu muito tempo com ela, tem poucas lembranças dessa fase de sua vida e vai até lá menos pelo enterro do que para vender o apartamento que herdara.

Só que a vida sempre dá rasteiras em todos nós, e suas lembranças voltam em flashes, quando ele se dá conta de que amara a mãe e sentira sua falta, muito. Então surge uma amiga dela, mencionada em uma carta, e para ela o apartamento foi dado em herança. Todo o filme é, então, o périplo desse homem para encontrar essa mulher; encontrando-a, conseguir entender o que ela representou na vida de sua mãe; entendendo, compreender-se, compreender o outro (no caso, a outra), dar um passo além de si mesmo - aceitar-se, amar-se, doar-se. Ficar melhor, ser generoso com quem apenas precisa, sem que necessariamente se conheça. Ótimo filme, questões grandes, intensas e importantes tratadas de modo acertado.

O monge é um filme difícil de aceitar - difícil de eu aceitar, de gostar, porque o mundo religioso, dessa religião punitiva e coercitiva, me incomoda, me distancia emocionalmente dele. Minha impressão é que não tenho nada a ver com aquilo, então não tenho muito a comentar, porque não me entrego àquele mundo, ele não me interessa. Mas há força ali, claro, há intensidade, e o Vincent Cassel faz o personagem com muito fervor, convincente mesmo. De todo modo, não teria escolhido vê-lo se soubesse antes do que tratava. A sinopse me iludiu, achei que era um caso de amor diferente do que é.


Intocáveis: Ameeeei! Achei muito bonito, comovente, e há pelo menos uma cena absolutamente emocionante, forte e lindíssima: a dança do Driss mostrando sua compreensão de música para o patrão e seus amigos, na festa de aniversário. O filme não seria o mesmo sem essa força da natureza, esse deus negro de beleza e carisma chamado Omar Sy, que ilumina tudo por onde passa, como um meteoro no meio do céu. É muito impressionante como ele tem luz, força, energia, como é bonito e como sua figura é adequada ao personagem, porque precisava alguém com força física mesmo para carregar um tetraplégico de lá pra cá, e com sua energia, que se espraia pela tela quando ele surge.

Além disso, precisava ter senso de humor, ser politicamente incorretíssimo, rir um pouco da desgraça, ser cúmplice do chefe, infringir várias regras, ir além do bem comportado. Aliás, penso que o ator François Cluzet (que vi em outro filme do festival, A arte de amar, sem metade do charme que tem aqui) entendeu perfeitamente que estava diante da um ser de luz, que ele precisava 'dialogar' de algum modo com aquele sorriso do Sy e não se poupa - nunca o vi, em filme algum, sorrir de modo tão franco e aberto como aqui. Sua interpretação é não menos do que soberba, porque ele só pode expressar qualquer sentimento pela expressão do rosto, o resto do corpo, do pescoço para baixo, não se mexe, e ele o faz de modo absolutamente convincente. Os dois parecem muito bem entrosados e li aqui que ambos se prometeram interpretar um para o outro, o que se vê bem na tela: ambos estão curtindo muito fazer as peripécias que fazem, ambos sabem que estão intimamente conectados do modo mais convincente para benefício da cena, e do espectador.

O resultado é um filme intenso, aberto, alegre, cuja história pode parecer inverossímel - até porque só uma parcela mínima de quem vê poderia sequer sonhar com as regalias de que desfruta o aristocrata em cuja vida se baseia a história. Também poderia parecer inverossímel a parceria entre esse mesmo aristocrata e um ex-presidiário, além de tudo negro e pobre. Mas filmes existem para nos oferecer outra realidade, melhor e mais bonita. E essa que Intocáveis nos oferece me parece muito interessante, assim como as vidas de ambos reconhecem na parceria com o outro ganhos extraordinários, alegrias e compartilhamentos inusitados, impensáveis se (e quando) separados. Para não dizer que não falei de flores, só uma cena me pareceu desnecessária e sem graça:  a das várias barbas que Driss vai aparando no rosto de Philippe e criam vários personagens - poderia ficar sem aquele humor macabro, o filme não precisa desta cena mesmo. Mas todo o resto é imprescindível, e adorável.

quarta-feira, 22 de agosto de 2012

Varilux 2012: Paris-Manhattan; E agora, aonde vamos?; Aqui embaixo

Na maratona do festival de filmes franceses hoje, consegui ver três: Paris-Manhattan; E agora, aonde vamos?; Aqui embaixo.

Dos três, o primeiro, sem dúvida, trouxe mais alegrias a essa espectadora, até porque é comédia leve, e uma homenagem ao cinema de Woody Allen, com a presença luxuosa do diretor vivendo a si mesmo, numa história de uma moça cuja família faz de tudo para vê-la casada. Falando assim parebe bobinho, mas não é não, é ótimo, divertido, charmoso, os dois atores principais são bons e bonitos e interessantes e tudo acaba bem, com o aval de Allen, claro.

E agora aonde vamos? é a história mais rica, embora o filme oscile lá pelo meio e se torne um tanto pesado, mas depois engrena e emociona, sobretudo pela presença da lindíssima atriz de Caramelo, Nadine Labaki, que dirige e atua no filme, mostrando uma visão muito particular sobre as diferenças religiosas num vilarejo mínimo e isolado, em que as mulheres buscam estratégias variadas não apenas para manter a guerra longe deles, mas para que seus homens continuem vivos. Depois de muitos quiprocós, afinal chega-se a um consenso, quando literalmente elas se colocam como os 'outros', os 'opositores', forçando a comunidade, sobretudo masculina, à compreensão de que as diferenças e dissenções são mais inventadas do que reais - e seguem em frente, todos juntos, para enterrar o que se prenuncia como o último morto de sua guerra.

Quanto a Aqui embaixo, me pareceu muito datado, não entendi qual o sentido de se filmar ainda uma vez, e na altura de nossos tempos, a paixão de uma freira por um membro da resistência francesa que, além de tudo, praticamente a estupra num acesso de raiva do tipo "o mundo-não-é-isso-que-você-pensa" ou whatever. Enfim, a memória me traz sempre um enevoado Marcelinho, pão e vinho para aproximar sua atmosfera um tanto retrógrada, cujo final meio patético não evita nem mesmo a condenação por traição, à maneira de uma mártir por amor. Enfim, não me convenceu, nem me cativou, achei chato.

Amanhã, não sei se haverá maratona, mas não quero perder Intouchables (o título vai no original só para sublinhar como gosto de ouvir o idioma, acho bonita a melodia da língua francesa. Aliás, esse festival está cheio de professores de francês e de gente conversando em francês, c'est chouette!). 

 

Varilux 2012: A filha do pai; A arte de amar; A vida vai melhorar


Festival de filmes franceses  - presentão para qualquer cinéfilo. Como só descobri hoje, vi três filmes seguidos e amei os três: A filha do pai; A arte de amar; A vida vai melhorar. Amanhã farei, espero, nova maratona. Por coincidência - ou não (ainda vou descobrir), todos os três filmes têm final feliz, o feliz possível para os personagens em questão.

A filha do pai é um filme cheio de valores, de honras e de delicadezas. A protagonista é de uma sinceridade, singeleza e educação finíssimas, quase não vemos mais tais qualidades, seja na ficção, menos ainda na vida cotidiana. Acho que o Daniel Auteuil (diretor e ator) estava nostálgico de coisas verdadeiras, sentimentos nobres e altos vindos da simplicidade, e fez filme para nos lembrar como eles são, como eram e como tudo tem força quando sob sua vigência - deles, valores. Parece inspirado em algum grande escritor clássico russo.

A arte de amar é uma espécie de comédia de erros, em que os equívocos no amor acabam levando a cenas muito engraçadas, mas ao mesmo tempo super leves, românticas, em que o amor finalmente prevalece, não sem algumas confusões. Comédia de costumes, sem um isso de baixaria, ou mau gosto - coisa rara.

A vida vai melhorar foi o mais trágico dos três, expondo a periferia das classes mais pobres da cidade. A coisa vai ficando meio sem saída para o trio de protagonistas: a garçonete, seu filho e o rapaz que trabalha na cozinha de um restaurante mas sonha em ser chef e dono de seu próprio negócio. Muito bom o modo como o nó do capitalismo se trança no pescoço dos dois (na verdade, dos três) e os empurra cada vez mais para longe do sonho de ser minimamente feliz, até beirar a fatalidade. Gostei muito da saída que o diretor oferece ao rapaz, já quase no terço final da história -  sentimo-nos (senti-me) completamente cúmplices da rasteira que ele dá em um destino pífio e injusto. De todo modo, exatamente por seu caráter meio de redenção, me pareceu o final "feliz" mais, digamos, imaginativo, embora perfeitamente factível. Ou seja, a barra é mais pesada do que o filme nos deixa ver. Por exemplo: como eles vão viver no Canadá a partir de então, com a moça naquela situação? Eu pensei numas alternativas, mas ... De todo modo, amei também.


domingo, 12 de agosto de 2012

À beira do caminho

Um filme muito bom, rústico, duro, um copo até aqui de dores, tristezas e amarguras no coração de um homem simples, que se torna caminhoneiro e vem comendo estrada há vários anos para ver se deixa lá atrás a culpa pela morte da mulher amada. Cheio de imperfeições, uns vazios, uns fios soltos, tudo perfeito para acompanhar esse homem em seus vislumbres do passado, que nos situa na história, e para nos lembrar de que a vida se infiltra em tudo que vive, corrói o luto, a solidão, a dor - como diz um amigo há tempos sumido: não existe pulsão de morte, só existe de vida. Esse filme é uma obra absolutamente exemplar do axioma: é tocante ver como a vida vai-se infiltrando naquele corpo e alma desmontados, destroçados, como ela vai rachando o edifício mergulhado em 'não' que ele se tornou.

É quando ele se depara com um menino escondido dentro do seu caminhão, e não o abandona, como parece sua intenção inicial. Ele é um cara dos 'abandonos' - vai largando as coisas, as pessoas, as cidades, tudo que dói ele acha que se deixar pra lá deixa de doer. Mas ele pega o garoto, dá essa carona e a vida se infiltra junto com ele, vai corroendo a morte no sorriso do garoto, na presença apenas dele.

Nesse momento, uma outra história está apenas começando, e ela vale a pena ser contada, e vale a pena ser vista - e ouvida. Há muito de brega na dor excessiva, em qualquer dor excessiva, e quando as canções de Roberto Carlos a pontuam é perfeito, nós reconhecemos aquele universo, qualquer um de nós, brasileiros de qualquer idade (acho), tem em sua história pessoal uma melodia dele, que (re)conta algum momento de nossa vida. No filme, as canções são inscrições na alma do homem, em sua história de amor e de perda, e elas nos tocam porque são nossas também, nos pertencem  de algum modo, e nos assuminos bregas com fervor, muito bom tudo aquilo.

E João Miguel, que vive o homem perdido e achado, visceral numa entrega comovente e bela; o menino é o ótimo Vinicius Nascimento - que convence, nos passa tudo que precisa passar, mesmo as reticências e os silêncios necessários; e Dira Paes, maravilha da natureza, rosto iluminado e forte numa das cenas mais bonitas de amor. Muito bom filme, muito nós mesmos, e é bom nos ver no cinema.

PS: Fiquei acompanhando os créditos no final para tentar saber quem eram os intérpretes de algumas canções - não os vi, mas fiquei pasma com a quantidade de gente que tornou possível esse filme, são muitas, uma multidão - impressionante como precisa de gente para fazer acontecer uma obra.


terça-feira, 7 de agosto de 2012

Santoro etc

O filme O que esperar quando você está esperando, com Santoro e Jennifer e a turma toda de pais e mães que se reúnem para compartilhar alegrias e incômodos de gestações, filhos pequenos et caterva é uma comédia ótima em sua leveza e personagens engraçados, trapalhões, alegres, simples - enfim, um filme que se vê como distração de primeira, onde todo mundo faz direito as ações simples que o diretor pede. Tudo funciona, e a gente sai feliz por ver o Santoro trabalhando tão corretamente e enturmado com a galera. Ele está onde quer estar, e o faz muito bem.

A primeira coisa bela achei meio devagar e não daria mesmo as cinco estrelas que a revista que assino lhe confere. A mulher é só muito alegre e bonita, não parece suficiente para ter deixado como herança tanto trauma no filho, faltou a ele uma boa terapia, mas já era pra ser encucado mesmo, com ou sem mãe 'excessiva'.

Sobre Batman, o cavaleiro das trevas ressurge: sempre soube que há matérias pagas na Veja, tive contato escancarado com esse fato quando Hilda Hilst morreu e logo depois uma longa matéria na revista alçou Lya Luft ao patamar de imensa esritora brasileira, que ela não é, na singela opinião de quem leu sua obra ficcional (romances) e escreveu um longo ensaio sobre ela (há vários anos). Na ocasião, fiquei muda de espanto e dor, como se a memória de Hilst tivesse sido brutalmente traída. Depois, entendi que Lya não tinha de ser indigitada por coisa alguma, os dois fatos não se misturam: Hilda morreu, lástima completa para todos nós e para a literatura brasiliera, ponto. Lya conseguiu na mesma época uma excelente agente que a colocou como cronista da Veja, com ampla matéria de capa de várias páginas, e onde ela escreve semanalmelnte com galhardia, diga-se de passagem.

Isso para dizer que fui ver Batman porque a resenha de Isabela Boscov na revista - como ela escreve bem, como admiro quem escreve assim! - era uma ode a sua grandeza e magnificência, como se esse terceiro filme coroasse com honras essa grande obra em progresso. Bom, a Boscov escreveu, eu acredito. Não era. Não foi. Não é. Achei ruim o filme, de uma violência muito grande, e a cena inicial que ela acha admirável não passa, para mim, de atrocidade gratuita - jogar gente de avião voando não tem absolutamente nada de grandioso ou belo. O filme é um mega jogo de videogame, com um psicopata horroroso detonando a cidade, um pouco como, em menor escala, ocorreu na cena real de um cinema em Denver, Colorado, na estréia desse filme, onde pelo menos doze pessoas morreram, como todos vimos. Ou seria o contrário, ou seja, o psicopata achou que o filme sobre o psicopata era real e resolveu copiar, ou ... enfim. E o final me pareceu totalmente estapafúrdio - tudo bem que invenção a gente precisa desligar o sensor de realidade, mas a paixão daqueles dois personagens no final, em que o monstruoso Bane se revela o amor da vida de uma personagem, e isso totalmente out of the blue, não cola de jeito nenhum. O filme só se salva, com todas essas restrições, pela bela Anne Hathaway, nem mesmo o Bale está assim com esse poder todo. E a Boscov será lida agora com todo cuidado - sempre terá um estilo admirável, mas o que diz deverá ser mediado e meditado por esta escriba antes de ser levado a sério.

sexta-feira, 3 de agosto de 2012

Santo Antônio

Por que um livro sobre a vida de um santo poderia interessar um leitor de hoje, mediano que seja esse leitor, face ao incomensurável aporte de informações disponível ao toque de que ele dispõe na internet, seja sobre a vida dos santos, seja sobre qualquer outro assunto?. A resposta que proponho diz respeito àquela velha dama trôpega e incerta que pervaga nos dias atuais, mas que insiste em resistir e persistir: a literatura. Porque a vida deste santo - mais precisamente, Santo Antônio - me encantou desde as primeiras frases, os primeiros parágrafos e páginas por uma qualidade que fala imediatamente a qualquer leitor interessado em literatura: é uma biografia, um gênero literário que passou a ocupar um lugar visível na gradação dos gêneros, na atualidade, não apenas pelo apego desmesurado desses novos tempos ao mundo privado, às vidas expostas à exaustão em suas ações cotidianas, em mídias e modos diversos, mas porque compreendemos melhor hoje que as vidas apresentadas em biografias são vidas 'narradas', recortes feitos pelo olhar do narrador que configuram, assim, aspectos do universo ficcional.

O que faz deste livro de Eliana Bueno-Ribeiro um caso muito especial do que se pode chamar hagiografia moderna será então o fato de ela abraçar com empenho, segurança e talento o caráter de 'estória' de sua história e fazer-nos caminhar com os vários personagens que cria, em busca das peripécias por que passa seu protagonista que, por ser um santo, reveste-se ao mesmo tempo da magia própria a sua condição e se beneficia, simultaneamente, do encantamento das estórias maravilhosas, de invenção e, de certo modo, épicas.

Isso porque Bueno-Ribeiro cria um artifício, uma técnica de feição dramatúrgica, que se afigura importantíssimo para capturar a atenção do leitor: trata-se de um diálogo, uma espécie de symposium entre os membros de duas famílias: na primeira, Jorgedu, Alessandra e seu filho César; na segunda, Das Dores, a mãe, e seus dois filhos, Antônio e Maria. Os dois parágrafos que abrem o livro dão-nos já os elementos da trama dessa história sedutora, e algumas pistas do que contitui essa sedução:

No dia em que Antônio completou 14 anos, o padrinho Jorgedu veio jantar. Era um domingo, a comemoração seria no sábado seguinte, mas Jorgedu, Alessandra, sua mulher, e César, filho deles, sempre vinham jantar no dia exato do aniversário. Jorgedu era o que se podia chamar de “meio sistemático”.

Depois da sobremesa, Das Dores, a mãe, estreou a cafeteira nova que fazia café em cima da mesa, a água quente subindo numa espécie de ampulheta invertida. E, em torno do brinquedinho novo, a conversa se animou. Das Dores era professora e João Firmino, seu marido, artista gráfico e formado em filosofia.Jorgedu, o compadre, era advogado especializado em direito imobiliário, tinha uma clientela internacional, era louco por ópera e ainda achava tempo para escrever peças de teatro. (p. 11)

Então, a história do santo será apresentada através do olhar de uma família simples, em meio a seu cotidiano, de modo que um pouco do que compõe essa simplicidade – insígnia magna da história de Antônio, o santo – já está de algum modo anunciada na maneira como essa família se apresenta ao leitor: todos têm prazer em usufruir e partilhar do conhecimento; há uma clara fraternidade entre eles, outro nome para o amor verdadeiro; a história de Santo Antônio, contada aos jovens por Jorgedu e Alessandra, tem óbvios pontos de interesse para Antonio, e também para Maria, já que seu irmão foi batizado com o nome do santo. Assim, não apenas se cria um ambiente propício ao desenrolar dos episódios mais marcantes que fizeram de Antonio um santo, como essa vida e sua trajetória mantêm todo o tempo um elo vital com os jovens, ouvintes muito interessados do narrador – como, aliás, se dá igualmente com o leitor.

Trata-se de um recurso estratégico fundamental para o encantamento, mas só ele não seria suficiente para fazer o leitor seguir adiante, atento à vida de Antônio e seus milagres. Outras qualidades se apresentam, indisfarçáveis: o livro é muito bem escrito, em linguagem escorreita mas coloquial, já que se trata de uma conversa com jovens; tem uma invejável bagagem de informação histórica – percebe-se que a autora fez pesquisas abrangentes sobre os vários aspectos (culturais, geográficos, regionais, históricos) que cercam não apenas a vida de Antônio, mas as lendas em torno dele, seus milagres e as várias versões deles. Tais pesquisas são ‘traduzidas’ de modo a compor com naturalidade o quadro das narrativas que se revezam, de acordo com as perguntas e as intervenções, em geral, dos jovens ouvintes, Antonio, Maria e César.

Eles constituem um perfil de jovens adoravelmente modernos, contemporâneos, inteligentes e cultos que se mostram irremediavelmente fisgados pelas peripécias de uma vida – a vida de Santo Antônio - que se oferece e se nos apresenta sob o fascínio de uns fios bem tecidos, de umas frases bem urdidas, de uma história que sempre haverá de existir, porque as boas histórias existirão e cativarão sempre as imaginações e as argutas inteligências. Santo Antônio iluminou-se para mim, e estou certa de que para qualquer leitor que encontre esse livro mágico.

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BUENO-RIBEIRO, Eliana. Santo Antônio. São Paulo: Paulinas, 2012 (Coleção Maravilhas de Deus).

sábado, 14 de julho de 2012

Na estrada


On the road, do Walter Salles, é um filme interessante, bem feito, com excelentes atuações, até mesmo da quase sempre inexpressiva Kristen Stewart, mas a história dessas almas à procura de sentido tem data, esse existencialismo, filmado com cuidadosa atenção ao texto do Kerouac, já expirou, e as questões que eles discutem atiçam menos minhas emoções. E podia ter sido um pouquinho mais editado, ficou longo e um tanto cansativo em alguns momentos.

Além disso, é um filme de rapazes, para rapazes, entre rapazes - mulheres só entram com a contribuição milionária de seus órgãos genitais: boas putas*, que nem assim conseguem apaziguar a fome de mais sexo, drogas e experiências novas passíveis de ser encontradas em sempre outros e diversos  lugares. Nesse sentido, ao expressar a insatisfação intrínseca dessa geração, o filme de Salles encontra seu mais legítimo lugar na minuciosa escuta, e expressão fílmica, da obra de Kerouac que, por sua vez, dá voz ao vazio existencial e geracional do pós guerra, cuja saída se apresentou como a de ir comendo a terra e a estrada, adentrando o país para buscar, no percurso, imprimir algum sentido ao caos, ao que ainda não tinha forma, nem peso.

Tanto o livro (que li na juventude, como quase toda minha geração), quanto o filme exploram esse vigor do desespero, o desejo insano de fazer um sentido que, naquele momento, poderia estar resiliente na palavra escrita, mais precisamente na literatura. E é sobre isso também que trata o filme - ao mesmo tempo que a turma de perdidos come a estrada em busca de preencher o vazio, as palavras vão se tornando mais e mais as parceiras necessárias ao protagonista. Nesse tempo, a literatura ainda tinha o peso e a força de uma possível redenção, ou se apresentava como a outra via, mais satisfatória talvez, à corrida para o nada que a estrada aparentava.

Percebe-se em cada trabalho de interpretação um cuidado extremado, e neles, nos atores, reside uma de suas melhores qualidades: Viggo Mortensen faz uma quase ponta como Old Bull Lee, alter ego de William S. Burroughs, e no pouco tempo em que aparece resplandece, fica depois na memória tudo que fez, o modo como se moveu, falou, a marca do grande momento de interpretação, do grande ator; Kristen Stewart, pela segunda vez, me convenceu de que é uma atriz e não apenas a eterna adolescente-perdida-por-vampiros da saga que lhe deu fama e fortuna - a primeira vez em que a vi atuando de verdade foi em 'Corações perdidos' ('Welcome to the Rileys'), que passou aqui em junho do ano passado. Ela está muito bem, solta os bichos todos em vários - e necessários - momentos, dançando e transando; tanto Tom Sturridge, que faz um jovem Carlo Marx (alterego de Allen Ginsberg) perdido de amores pelos versos e de ciúmes de Dean e suas paixões vorazes; quanto Garrett Hedlund, que faz Dean Moriarty (alter ego de Neal Cassidy), e o protagonista Sam Riley, que vive Sal Paradise/Jack Kerouac, trabalham de modo visceral, percebe-se neles todos a entrega ao projeto de ser e estar inteiros nas emoções, nos excessos, na vontade de ser aqueles indivíduos perenemente perdidos, em busca mais de si mesmos do que de respostas às tão infindáveis questões quanto as estradas que não se cansam de percorrer. Não é só a América que eles percorrem - sua voracidade é por todos os caminhos, sobretudo os que poderiam levar a si mesmos, a alguma coisa de consistente em si mesmos. As outras mulheres, além da Marylou de Stewart, passam mais depressa pelas vidas deles e pelas telas - Kirsten Dunst (eterna fascinação de 'Melancolia'); Alice Braga; Amy Adams; Elisabeth Moss. Como já disse, o filme é deles, de um tempo em que o sentido da vida social ainda latejava em calças jeans apertadas, cigarros intensos e buscas desesperadas pelo amigo mais próximo - e, aqui, qualquer maneira de amor não apenas vale a pena, como é rito de salvação. 

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* Está certo, Dean Moriarty é quem faz sexo por dinheiro (e um sexo, além de tudo, que ele acha meio desprezível) e seria então 'the real whore', mas parece que essa categoria não deve ser e talvez não possa ser aplicada àqueles seres, homens e mulheres, que estavam em busca de algo muito mais transcendental (acho que o termo aqui se mostra adequado, quando pensado para aqueles loucos tempos), de modo que o sexo era apenas uma das radicais experimentações dos sentidos, das sensações, dos prazeres extremos de que eles e (algumas) elas estavam em busca frenética, e que se mostrava necessário ao conhecimento do mundo e de si.

Nesse sentido, a posição de Marylou parece então, ao contrário do que afirmei, altamente transgressora, ao infringir todos os códigos esperados para uma mulher de seu tempo, além de se mostrar antípoda da 'mulher do lar' (em que se deixa enredar Camille, por exemplo, a mulher com quem se casa Moriarty, e personagem de Dunst, para ser muito infeliz), da mulher que fica à espera do homem. Cair na estrada com os bad boys era poder vivenciar experiências de transgressão impensáveis para sua situação de gênero então. Mas vou manter a expressão errada lá em cima, que me permitiu essa retificação fundamental, porque continuo - hoje, com meus olhos adestrados por várias décadas de conquistas importantes no campo feminista - com a sensação de que a Marylou, se aproveitou para si de modo radical a viagem 'dos meninos', se aderiu e tirou proveito das transgressões todas, também serviu de objeto sexual (ativo, sem dúvida, mas objeto) para os divertimentos entre os machos. A cena de sexo entre os três parece disso exemplar: é Marylou quem pede a Dean a presença do amigo na cama, mas acho que ali a coisa forte rola muito mais entre os dois homens do que entre ela e eles. Para Dean, ela é a 'xana mais gostosa de todo o estado' (a frase é mais ou menos essa); já com Sal ele quer aprender a escrever, ele quer 'viajar' até o fim do mundo, ele se mostra seduzido e embevecido. Ele o ama, mesmo o abandonando com febre numa espelunca de beira de estrada, porque é irresponsável. Enfim, essa é uma conversa sem fim...


sexta-feira, 13 de julho de 2012

Se nem Lady Gaga escapa de ir ao chão...

Hoje é meu dia sorte - sexta feira, 13, e dia de rock, uau!

Vinha andando pela rua do Catete pisando daquele jeito forte e decidido, passo rápido e firme dos que se sentem seguros quando, de repente, voei - literalmente voei no ar, em vias de me estabacar na mais espetacular das várias quedas que já tomei, assim, totalmente out of the blue.

Ainda no ar e me perguntando 'como? de novo? por quê?' avistei um gordinho como eu vindo em minha direção e a ele me agarrei segundos antes de cair, estatelada, no chão. Salva pelo gongo, ou pelo gordo, levantei rápida perguntando ao empalhador de cadeiras que estava boquiaberto sentado a minha direita, olhando aquilo a sua frente e não acreditando: - onde foi que tropecei? onde? Ele apontava o nada, porque fora em nada que eu havia pisado. Tenho certeza de que era dia de ir aos ares, e fui.

Continuei caminhando, sem arranhões ou luxações, entro no banco mais à frente pra disfarçar a insegurança e quando ponho o pé para atravessar a porta, torço o calcanhar esquerdo, sempre frágil, e uma dor descomunal avança. Eu paro, gemo, uma senhora tenta ajudar, aconselha a rodar o pé no tornozelo devagar, e isso vai fazendo a dor diminuir até ficar imperceptível.

Sigo depois meu caminho e nem acredito que ainda esteja viva, sem sequelas e a.n.d.a.n.d.o! Parto para o cinema , On the road me aguarda, devagar agora e prestando muita atenção ao chão. É quando percebo que perdi a juventude e um dos possíveis significados de ter mais de sessenta: andar devagar e sem ímpeto. Aprende, senhora. E certa de que esse foi um dia de sorte.

terça-feira, 10 de julho de 2012

Bem amadas e Chiara


Bem amadas é um filme excelente, alto astral, trágico, sem ser pesado, e mesmo as canções, que não conseguem acertar o passo com o movimento do filme, não atrapalham em nada, nem acho que façam rir, como alguns espectadores responderam às cenas cantadas.

Na tradição das grandes mulheres de Fellini, as duas protagonistas são parentes próximas da clássica Cabíria, a cujo romantismo o filme rende homenagem. Ambas as atrizes que fazem a puta, Ludivine Sagnier quando jovem, e Catherine Deneuve, uns vinte anos depois, estão magníficas, não menos de que o rebento adulta dela, vivido pela filha real de Catherine, Chiara Mastroianni, esplendorosa, magnificamente bela e sexy.

Dos quatro homens importantes que andam em torno dessas duas belezas, entre eles o sempre bela-figura-zangadinha Louis Garrel, um raro Milos Forman, como marido cornudo e feliz, sobressai Paul Schneider vivendo um gay fascinado e mesmo irredutivelmente apaixonado pela personagem de Chiara, com quem vive uma das cenas eróticas mais intensas, fortes e sensuais já expostas, ever. Breve, mas intensamente interessante.

O filme tem lá suas tragédias, mas o tom é leve e tudo gira em torno dos amores dessas duas mulheres, sua incondicional liberdade, e seus desasossegos. Chiara, mais do que a icônica mãe, arrebata o espectador - ela canta, dança, atua e anda com a beleza dos animais raros. Ela é rara, e faz o filme iluminar-se a cada aparição.