Fiz uma viagem e na volta, no avião, vim agarrada com as páginas finais desse livro perturbador, lírico, forte, belo, contundente, meio piegas sob certos aspectos e extremamente tocante, sob quase todos os outros, e cujas frases iniciais me ligaram a ele de modo incoercível:
Faltando
pouco para eu completar meu décimo sétimo ano de vida minha mãe
resolveu que eu estava deprimida, provavelmente porque quase nunca saía
de casa, passava horas na cama, lia o mesmo livro várias vezes,
raramente comia e dedicava grande parte do meu abundante tempo livre
pensando na morte.
Pronto: os dois temas cruciais da ficção estão expostos de forma contundente: a morte, o câncer. Daqui a pouco, quando Hazel Grace começar a frequentar o grupo de apoio de adolescentes com câncer, surgirá o outro tripé da história: o amor. Além disso, também já estão expostos nesses parágrafos iniciais outros aspectos fundamentais para a grande recepção da obra: sua linguagem desabusada, a ironia contundente, o modo aberto, destemido e sem qualquer resquício seja de paternalismo, seja de condescendência com os jovens e seu estado geral com que o autor imerge no universo dessa doença: Hazel carregando um cilindro de oxigênio e dois cateteres enfiados nas narinas; Augustus Waters com alguma dificuldade ao andar em razão da prótese em uma das pernas; Isaac, amigo de ambos, em vias de ficar cego de seu único olho e de, por isso, perder a namorada, que prometera amá-lo para sempre.
A linguagem, portanto, é trabalhada não apenas em função de explicitar o universo mental dos jovens protagonistas, mas também de cooptar o leitor para uma aproximação com essa coisa temerária, esse mundo das sombras e de dores que permeia a história da doença - deles e nossas. Além disso, os dois jovens amam ler, são leitores vorazes, e há uma história paralela a respeito menos de um livro do que de sua leitura - Uma aflição imperial (UAI). Hazel não se conforma com o fim sem final explícito da história e escreve emails sem respostas para o autor, em busca de explicações para aquelas vidas: o que teria sido feito de Anna? e o hamster, morreu ou sobreviveu? e o namorado da mãe dela, era ou não um escroque?. Essa será, então, uma outra vertente de interesse do romance, que permite ao autor, John Green, pensar conosco sobre o valor da literatura, sua relação com a vida real, o modo como ela atravessa o cotidiano de quem lê, como nos instiga e nos intima a dela fazer parte.
A maneira como a literatura instrui, de certo modo, a narrativa, aparece na descrição que Hazel faz do romance que a obseda:
UAI
é sobre uma menina chamada Anna e sua mãe de um olho só - uma
paisagista obcecada por tulipas. As duas levam uma vida típica de classe
média baixa numa cidadezinha da Califórnia, até que um dia Anna é
diagnosticada com um tipo raro de leucemia.
[...]Aí, no decorrer da história, ela adoece ainda mais, a doença e os tratamentos competindo para ver quem a mata primeiro, e a mãe se apaixona por um vendedor de tulipas holandês que a Anna chama de o Homem das Tulipas Holandês. O Homem das Tulipas Holandês tem muito dinheiro e ideias bastante excêntricas a respeito de como tratar o câncer, mas a Anna acha que esse cara pode ser um vigarista e que talvez não seja nem mesmo holandês, e aí, no momento em que o provável holandês e a mãe dela estão prestes a se casar, e Anna está à beira de iniciar um novo tratamento doido envolvendo grama de trigo e pequenas doses de arsênico, o livro termina bem no meio de uma
(p. 51)
Provavelmente, se Hazel tivesse conhecido nossa Clarice não teria estranhado tanto um livro que termina com uma frase pelo meio. Esse vai ser um dos motes para as peripécias vividas pelos dois jovens e enamorados: ambos irão a Amsterdã, acompanhados da mãe de Hazel, para conversar com o autor de UAI e tentar entender o que houve com os personagens. Na verdade, eles vão mesmo é tomar satisfações a respeito da arbitrariedade da ficção; de sua falta de verossimilhança; de como aquela personagem 'que sou eu' não tem o fim que eu espero 'para mim', leitor implícito.*
Dito de outra forma, Hazel formula de modo simples (talvez um tanto simples demais, já que ela acredita mesmo que o autor sabe onde está Anna e o hamster e esconde essa informação do leitor) o problema axial para tantos que estudam ou estudaram o fenômeno literário: a questão da mímese, da relação entre real e imaginário, de até onde a ficção seria ou não especular de um real. Enfim, a literatura como problema estético faz parte da trama, e a linguagem, assim, explora a metalinguagem de modo simples, mas perspicaz, sedutor.
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Acho que quem teve câncer, qualquer que seja sua idade, não passa batido de jeito nenhum pela leitura dessa história de amor entre jovens que experimentam algumas descobertas cruciais, dentro de sua ainda restrita gama de vivências, a respeito de como a vida é preciosa e efêmera, a respeito do amor, de viver momentos intensos e inteiros, de perder, de sofrer, de como o percurso de cada um é especial, único.
Sei que o livro deve muito de seu enorme sucesso não apenas ao fato de tratar o câncer de modo leve, e quase coloquial, já que se trata de uma doença cujo nome muitas pessoas, em inúmeros lugares (e não apenas nos mais atrasados social e economicamente) jamais pronunciam, como se o nome trouxesse em si mesmo a doença, e devesse ser ouvido apenas nas reticências. Aqui, os personagens falam abertamente sobre c.â.n.c.e.r., há inúmeras passagens em que ali me reconheço inteiramente (quem quer que tenha passado pelos efeitos da quimioterapia sabe bem o que significa a frase a doença e os tratamentos competindo para ver quem a mata primeiro). Desse modo, sinto-me reconfortada por estar em companhia de jovens tão corajosos, capazes de pensamentos como:
- Não vá me dizer que você é uma daquelas pessoas que encarnam a doença. Conheço tanta gente assim... Dá até pena. Tipo, o câncer é um negócio em franco crescimento, certo? O negócio de tomar-as-pessoas-de-assalto. Mas é claro que você não deixou que ele saísse vencedor assim tão cedo. (p. 36)
Por outro lado, sei que ele também - este romance - parece uma obra pensada-para-dar-certo, utilizando de modo sistemático, e muito bem, todos os elementos necessários para criar empatia com seu leitor: linguagem simples, típica de certa faixa etária; problemas sérios tomados de modo leve, mas capaz de emocionar e mesmo levar às lágriamas, por seu caráter de irremediabilidade; juventude, amor e entusiamo caminhando junto com doença, morte e destino trágico. Enfim, teria de vir dos Estados Unidos tal livro, um dos países onde mais recorrentemente se lê a respeito da disseminação da doença, e que também mais publicamente está comprometido com as variadas formas de lidar coletivamente com esse e outros males (é lá o berço, por exemplo, dos grupos de ajuda dos alcoólicos anônimos, entre outros), de modo a amainar seus efeitos devastadores sobre os indivíduos.
Pensado ou não para ser um best-seller, A culpa é das estrelas cumpre seu objetivo com louvor. É um livro que se lê com prazer, emoção e cumplicidade. Ter sido paciente de câncer não parece condição para desfrutar da companhia dessa turma de valentes, que trata a morte com a intimidade dos que têm a força. Se não um futuro, os instantes de que dispõem nos mostram que podem ser vividos com inteireza, entrega e intensidade. E sem as dúvidas de Hezel sobre como termina o romance.
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*Sobre o conceito de leitor implícito, ver:
COSTA, Márcia Hávila Mocci da Silva. Estética da recepção e teoria do efeito
In: http://abiliopacheco.files.wordpress.com/2011/11/est_recep_teoria_efeito.pdf
"Uma das principais premissas teóricas de Iser (1996) é o leitor implícito, entendido como uma estrutura textual que oferece “pistas” sobre a condução da leitura. Tal leitor só existe na medida em que o texto determina sua existência e as experiências processadas, no ato da leitura, são transferências das estruturas imanentes ao texto. A partir dessa concepção, o leitor passa a ser percebido como uma estrutura textual (leitor implícito) e como ato estruturado (a leitura real).
Por não possuir existência real, o leitor implícito emerge das estruturas textuais, na medida em que estas reivindicam sua participação. Assim, a criação literária, através de sua organização textual, antecipa os efeitos previstos sobre o leitor; porém, os princípios de seleção que possibilitam a atualização do texto são particulares a cada leitor." (p. 9)
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GREEN, John. A culpa é das estrelas. Tradução Renata Pettengill. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2012.