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quinta-feira, 16 de março de 2023

Nem só de pão

Da varanda do quinto andar ela viu o homem idoso, muito magro, caminhando com dificuldade, dando um passinho, bem devagar, depois outro, e parar por vários minutos, recuperando o fôlego, para tentar arrancar nova passada, lenta.

Ela já o tinha visto antes, nesse mesmo percurso, de uma ponta a outra do quarteirão, duas calçadas compridas, cuja travessia custava ao homem uma eternidade. Na esquina da rua, ele parou, ficou um tempo em pé, segurando no poste encimado pelo nome da rua. Depois foi-se arrastando e sentou no parapeito do jardim, ofegante.

Ela olhava lá de cima, atenta, curiosa, querendo entender por que tanto esforço naquele corpo magro. Até que ele acendeu o cigarro – era para isso, para fumar escondido, todo esforço e sacrifício daqueles passos trôpegos. O corpo magro, quase esquálido, mostra que a calçada, tortuosa embora, é o espaço inescapável do prazer, e do tormento.

Fuma por um tempo, e levanta, devagar, começando seu caminho de volta. Apoia-se na parede e avança dois passos, para diante da obra no caminho, estaca e descansa longamente em pé - ele fica muito tempo parado no meio da calçada, equilibrando-se.

Dois garotos de uniforme vêm conversando em sua direção, brincando, e ela se angustia – se encostarem nele, o derrubam, e os ossos à mostra se quebrarão. Mas eles se esquivam, pressentem talvez o desastre, e seguem seu caminho. O velho passa do portão onde deveria entrar – ela sabia que ele morava ali, já o observara nesse mesmo percurso antes. Dessa vez ele seguiu, passos cada vez mais trôpegos, até a esquina, e parou. E ficou lá, olhando para o outro lado da rua. Ela pensou: ele quer atravessar, mas não pode – se o fizer, com suas passadas lentíssimas, será atropelado.

Ela segue a cena – ele parado, instável, hesitante, na esquina do prédio e da rua. As pessoas passam por ele, ela teme, vendo lá do alto, que alguém esbarre nele e o derrube. Ela decide descer, ver se ele quer atravessar, ajudá-lo, fazer parar os carros para que seus ossos passem. Desce, chega perto e pergunta: o senhor quer atravessar? Ele responde baixo, voz rouca, quase inaudível, mostrando uma nota de cinco reais: quatro pãezinhos, por favor, e olha em direção à padaria em frente. Ah, era isso. Ela pega o dinheiro, atravessa a rua. Está aflita, sentindo que ele deve estar no limite de suas forças, tanto tempo em pé, pode desabar a qualquer momento.

Ela compra os pães, fala com as moças da padaria sobre ele, aponta do outro lado, diz – como o deixam sair sozinho, tão frágil? A moça no caixa responde: ele sai para fumar escondido.

Ela leva os pães, entrega a ele, pergunta coisas: qual o seu nome? – Abílio. O senhor mora sozinho?  Ele, baixinho, quase inaudível – Com a nora. Pergunta onde ela mora, ela aponta o prédio, diz que o viu da varanda. Ele segura seu braço com força, caminham devagar de volta a seu portão. Antes de chegar, ele pede a sacola com os pães, diz que ali está bom, pode deixá-lo. Ela deixa, mas bate no portão e chama o porteiro: - esse senhor precisa de ajuda, ele mora aqui.

Vera Queiroz

Certa vez, perguntaram ao filósofo Gilles Deleuze por qual razão ele nunca foi filiado a um partido, e aproveitaram também para indagá-lo acerca do que é ser de esquerda. O filósofo deu mais ou menos a seguinte resposta: antes de ser um posicionamento político-partidário, ser de esquerda expressa o modo como nos inserimos na existência.

A pessoa de direita parte, antes de tudo, do seu ego. Ela vive no interior de um círculo no qual estão seus interesses, suas propriedades (já possuídas ou apenas desejadas), suas ambições, suas pretensões, suas opiniões... Mas também ocupam o círculo estreito do ego seus medos, seus ressentimentos , seus fantasmas, suas feridas mal curadas. O homem de direita imagina que esse círculo estreito é o centro do mundo, de tal modo que tudo o que existe fora desse círculo, no espaço e no tempo, é para ele só “narrativa”. Daí seu desprezo pela ciência, pela história, pela sociologia e pela filosofia, e seu medo paranoico dos outros povos e suas maneiras diferentes de viver, medo esse traduzido na expressão “globalismo comunista”.
Pode parecer paradoxal, mas apenas seres que vivem num círculo existencial estreito adaptam-se a existirem no interior de um rebanho ou massa. Pois o rebanho não é um conjunto heterogêneo de singularidades, rebanho são indivíduos aprisionados a si mesmos e que se agregam em celas contíguas.
Ser existencialmente de esquerda, ao contrário, é partir daquilo que Espinosa chama de o Absolutamente Infinito. A percepção de esquerda se abre ao que não pode ser cercado ou contido, para que a mente e o coração ligados a tal percepção permaneçam sempre abertos.
É a partir do infinito aberto que o ser existencialmente de esquerda compreende que desse infinito fazem parte o cosmos, o nosso planeta, as outras nações, o nosso país, a nossa cidade, o nosso bairro , o outro e, enfim, a sua pessoa.
Ser de esquerda é não se colocar como primeiro ou último numa concorrência, mas como parte singular de realidades mais amplas e horizontadas (como ensina também Manoel de Barros). Ser de esquerda não é apenas compreender teoricamente isso, mas sobretudo agir a partir dessa percepção. E dessa percepção podem nascer não apenas ações empáticas, solidárias, generosas, dignas, justas , corajosas e revolucionárias, pois dessa percepção também podem nascer poemas, músicas , artes e educação não menos revolucionárias.     
[Elton Luiz Leite de Souza ]