Criança de Deus (Child Of God), EUA, 2013. Dir: James Franco - Nota: 9
O filme é muito bom, na verdade um tour de force do ator Scott Haze, que leva o filme inteiro em sua interpretação brutal, na pele de um homem que perdeu o pai aos dez anos e, vivendo a esmo e no ermo da cidadezinha, vai-se tornando cada vez menos um homem, e cada vez mais um sujeito doente de solidão, que o leva aos poucos a uma forma de loucura, mas com um sentido agudo de sobrevivência, buscando descobrir como sair das situações difíceis que aquela sua existência comporta. A partir de um certo momento, esse estado esgarça-se, e ele se aproxima de práticas mais bestiais, e será desse lugar, em que todos os sentidos retesam-se para garantir a sobrevivência, que ele se vê um quase selvagem, matando a sangue frio para manter sua recém descoberta possibilidade amorosa: a necrofilia.
O modo como o diretor James Franco apresenta sua história não permite ao espectador julgar as ações desse (quase) homem de um ponto de vista das normas sociais – ele é acompanhado pela câmera, pulando e caçando, evacuando e matando um bicho aqui e ali para alimentar-se, de modo que quando ele mata um homem quase sem pensar,e depois a mulher, não há aparentemente nenhuma mudança brusca – o pássaro morto mata sua fome de comida; a mulher morta mata sua fome de sexo e de amor. Assim, acompanhamos sua degradação na escala humana, rumo a seu estado mais duro e mais brutal, ao mesmo tempo em que vai-se movendo para o mais fundo da caverna, achando os buracos onde se abrigar e guardar os que lhe aprouveram amar - a mulher, os bichos de pelúcia.
Mas perder é de sua natureza de ser híbrido - entre bicho e gente, então ele perde o braço. Mas não a vida. Essa segue a trilha dentro das pedras, por um caminho que só os íntimos da natureza conhecem, e ergue-se por fim em meio a uma campina vasta – essa cena final, em que ele corre e grunhe de alegria, mostra um ser que caminha para um lugar indecidível na escala dos valores humanos, talvez. O que ele será ou fará, a partir de então, só pode ser dito em relatos de lendas, escritas ou filmadas. Ele adentra, para nós, sua mais funda, e terrível, invenção.
Um grande filme, em que se percebe como Franco acertou ao deixar seu ator agir, e filmá-lo quase como o documentário de uma loucura anunciada. E sem esse ator, sem essa entrega absurda e visceral do ator ao personagem, não haveria o filme sobre essa gestação de insanidade por absoluta falta de tudo - passo a passo. Muito bom, e muito terrível.
(Apenas um detalhe, de pouca importância, talvez, soou falso, mas mesmo esse ambíguo mínimo detalhe serve ao filme, ou seja, diz que ali há representação, e é disso que se trata aqui, visceralmente: os dentes quase sempre expostos do ator desmentem a vida selvagem do personagem, em sua perfeição e brancura).
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quinta-feira, 15 de janeiro de 2015
domingo, 2 de março de 2014
Alabama Monroe - quando uma história é mais que um filme
Não escrevi sobre tudo que vi em 2014, mas Alabama Monroe (Felix Van Groeningen, Bélgica, 2013) - com a linda Veerle Baetens, o belo e estranho Johan Heldenbergh, a atriz mirim Nell Cattrysse - vi duas vezes, e acho o mais emocionante filme, junto com Amor, que vi nos últimpos tempos.
Não sei todas as razões por que amei e amo tanto o filme, mas o tema da morte já é um começo. Também a mistura de passado e presente, num ir e vir frenético entre morte e vida, as duas inextricáveis ao longo de toda a história - e aqui exemplar em sua realização, deu um ritmo especial às cenas, de modo que não podemos perceber uma situação específica sem todos os outros momentos-vida que a circunscrevem, como se ela, a vida, não pudesse ser constituída de momentos isolados, mas de percepções simultâneas de tudo que vemos, sentimos, das pessoas com quem interagimos, das coisas que fazemos ou deixamos de fazer, de como nos expandimos para o mundo, e logo depois nos recolhemos em nós mesmos, regidos pelas forças de fora, pelos impulsos internos, pela potência da energia que está em nós e além de nós, mas que nos afeta, nos move em direção a - mais vida.
Todo esse movimento vital é regido pela música mais exuberantemente bela, leve, alegre, comovente que um filme jamais produziu (que eu lembre), além de ser cantada por vozes encantadoramente comuns, mas afinadas, e apaixonadas pelo que fazem. Tudo é ao mesmo tempo simples e comovente - das vidas comuns dos personagens, suas ocupações, às letras das canções, ou o amor de Didier pelo bluegrass - essa coisa meio ingênua de ir ao encontro do 'mais puro som', enfim, tudo é, de certo modo, singelo e fortemente tocante.
A música, então, me parece um personagem tão importante quanto os outros três, e é essa trilha que faz o espectador ficar em estado de enlevo todo o tempo, e mesmo quando tocado pela dor mais dilacerante ela está presente, sublinhando estados de alegria extrema, bem como seu oposto, o que nos permite vivenciar mais profundamente o fluxo dos acontecimentos, seus altos e baixos, intensificados por ritmos e imagens simultâneos, bem como regimes temporais concomitantes, que mantêm o espectador em estado de alerta quase sempre.
Mesmo ao final, quando a mãe já fez a escolha inevitável, inexorável, aquela que para ela não poderia ser outra, a música está presente não como coadjuvante, mas como reafirmação da vida, reafirmação da potência do existir - que vejo presente até mesmo no modo como ela decide integrar-se ao amor da filha, ao que lhe parece ser o lugar da filha - logo, o seu lugar.
Um filme memorável, sob todos os aspectos.
Não sei todas as razões por que amei e amo tanto o filme, mas o tema da morte já é um começo. Também a mistura de passado e presente, num ir e vir frenético entre morte e vida, as duas inextricáveis ao longo de toda a história - e aqui exemplar em sua realização, deu um ritmo especial às cenas, de modo que não podemos perceber uma situação específica sem todos os outros momentos-vida que a circunscrevem, como se ela, a vida, não pudesse ser constituída de momentos isolados, mas de percepções simultâneas de tudo que vemos, sentimos, das pessoas com quem interagimos, das coisas que fazemos ou deixamos de fazer, de como nos expandimos para o mundo, e logo depois nos recolhemos em nós mesmos, regidos pelas forças de fora, pelos impulsos internos, pela potência da energia que está em nós e além de nós, mas que nos afeta, nos move em direção a - mais vida.
Todo esse movimento vital é regido pela música mais exuberantemente bela, leve, alegre, comovente que um filme jamais produziu (que eu lembre), além de ser cantada por vozes encantadoramente comuns, mas afinadas, e apaixonadas pelo que fazem. Tudo é ao mesmo tempo simples e comovente - das vidas comuns dos personagens, suas ocupações, às letras das canções, ou o amor de Didier pelo bluegrass - essa coisa meio ingênua de ir ao encontro do 'mais puro som', enfim, tudo é, de certo modo, singelo e fortemente tocante.
A música, então, me parece um personagem tão importante quanto os outros três, e é essa trilha que faz o espectador ficar em estado de enlevo todo o tempo, e mesmo quando tocado pela dor mais dilacerante ela está presente, sublinhando estados de alegria extrema, bem como seu oposto, o que nos permite vivenciar mais profundamente o fluxo dos acontecimentos, seus altos e baixos, intensificados por ritmos e imagens simultâneos, bem como regimes temporais concomitantes, que mantêm o espectador em estado de alerta quase sempre.
Mesmo ao final, quando a mãe já fez a escolha inevitável, inexorável, aquela que para ela não poderia ser outra, a música está presente não como coadjuvante, mas como reafirmação da vida, reafirmação da potência do existir - que vejo presente até mesmo no modo como ela decide integrar-se ao amor da filha, ao que lhe parece ser o lugar da filha - logo, o seu lugar.
Um filme memorável, sob todos os aspectos.
sábado, 7 de dezembro de 2013
Azul é a cor mais quente (com spoilers)
Sem sombra de dúvida é um filme corajoso, e longo - e excessivo, esse de Abdellatif Kechiche (2013), com a dupla Léa Seydoux e Adèle Exarchopoulos, ambas fortemente empenhadas no projeto, como se verá nas telas. Uma história de amor, por um lado clássica, com direito a todos os capítulos que tais histórias comportam: paixão arrebatadora, sexo selvagem, enjoo momentâneo de uma das partes, traição por bobeira, abandono sem querer, abandono por escolha, choros e ranger de dentes. E, claro, cenas de sexo lésbico fortes, intensas, interessantes. Mas...
Primeiro, a personagem Adèle, a mais jovem, chora demais, e tem uma boca estranha, e um olhar excessivamente pedinte, e carente e... não dá, esse mundo dos excessos e intensidades das paixões, assim eviscerado ao olhar do espectador, não me pertence, minha sensibilidade enjoa daquele festim de intensidades desenfreadas, mesmo reconhecendo que está tudo certo, é assim mesmo, não se ama nesse tempo em tom menor. Já a personagem de Léa Seydoux, Emma, aparece mais contida, não apenas porque mais madura, mas porque é a parte que lhe toca na relação, e isso rende um personagem mais interessante a meu olhar - mais rico, mais bonito, mais forte, mais sabendo o que quer. Mas, não impede que - segundo -, algumas conversas soem datadas, figurando uma cultura tipicamente francesa no sentido mais artificial - citar Sartre, os papos sobre pintura, Klimt, Picasso etc, tudo meio solto, meio vago mas querendo engatar uma imagem ao mesmo tempo de palco um tanto ilustrado e de conversa-que-quer-impressionar-em-seus-começos, que meu olho captou como 'ai, que cansaço'.
De resto, achei mesmo cansativo todo o processo, e algumas falhas como o sumiço da família da jovem a partir da comemoração dos dezoito anos; ou a vocação irreprochável para o magistério que a atuação nega, no ar blasé com que a professora administra (mal) a aula e o ditado. Mas há cenas bonitas, claro, algumas excelentes mesmo - as de sexo, por exemplo, são, como direi - didáticas?; as de dança da moça que chora, mas que dança muito belamente; a cena no bar, ótima tentativa de retomada frustrada, embora o escorrido do nariz da jovem tenha me incomodado terrivelmente (aliás, o modo dela mastigar também); e a cena final, quando afinal ela sai da relação e engata outra marcha no passo de sua vida. Gostei muito que o rapaz não a tenha visto, que ela tenha seguido sozinha sem a companhia dele - de outro modo teria sido uma traição ao filme, acho.
****
E o texto me pareceu melhor.
Primeiro, a personagem Adèle, a mais jovem, chora demais, e tem uma boca estranha, e um olhar excessivamente pedinte, e carente e... não dá, esse mundo dos excessos e intensidades das paixões, assim eviscerado ao olhar do espectador, não me pertence, minha sensibilidade enjoa daquele festim de intensidades desenfreadas, mesmo reconhecendo que está tudo certo, é assim mesmo, não se ama nesse tempo em tom menor. Já a personagem de Léa Seydoux, Emma, aparece mais contida, não apenas porque mais madura, mas porque é a parte que lhe toca na relação, e isso rende um personagem mais interessante a meu olhar - mais rico, mais bonito, mais forte, mais sabendo o que quer. Mas, não impede que - segundo -, algumas conversas soem datadas, figurando uma cultura tipicamente francesa no sentido mais artificial - citar Sartre, os papos sobre pintura, Klimt, Picasso etc, tudo meio solto, meio vago mas querendo engatar uma imagem ao mesmo tempo de palco um tanto ilustrado e de conversa-que-quer-impressionar-em-seus-começos, que meu olho captou como 'ai, que cansaço'.
De resto, achei mesmo cansativo todo o processo, e algumas falhas como o sumiço da família da jovem a partir da comemoração dos dezoito anos; ou a vocação irreprochável para o magistério que a atuação nega, no ar blasé com que a professora administra (mal) a aula e o ditado. Mas há cenas bonitas, claro, algumas excelentes mesmo - as de sexo, por exemplo, são, como direi - didáticas?; as de dança da moça que chora, mas que dança muito belamente; a cena no bar, ótima tentativa de retomada frustrada, embora o escorrido do nariz da jovem tenha me incomodado terrivelmente (aliás, o modo dela mastigar também); e a cena final, quando afinal ela sai da relação e engata outra marcha no passo de sua vida. Gostei muito que o rapaz não a tenha visto, que ela tenha seguido sozinha sem a companhia dele - de outro modo teria sido uma traição ao filme, acho.
****
E o texto me pareceu melhor.
segunda-feira, 11 de novembro de 2013
Capitão Phillips (com spoilers)
Eu nem vou dizer da minha frustração ao ver esse Capitão Phillips (Paul Greengrass, 2013), com Tom Hanks fazendo seu bom trabalho habitual, e Barkhad Abdi, o chefe do grupo de piratas inimigo - cuja atuação me pareceu uma das poucas coisas convincentes do filme, aliás o grupo somali me pareceu convincente em sua raiva, mas vou apenas enumerar uma ou duas coisinhas que percebi como absolutamente insatisfatórias:
1. um filme para os sócios do clube do Bolinha. Sim, eu sei que não há piratas somalis mulheres, até porque as mulheres somalis estão tentando escapar do genocídio que há anos grassa na região, e na tripulação de um navio cargueiro imenso tampouco cabem mulheres, parece. Bom, não importa, não há qualquer mulher atuando na tela, salvo uma esposa de Phillips em aparição relâmpago, que serve apenas para sublinhar o protagonista como homem-família;
2. um filme feito para o Tom Hanks posar de mocinho, muito bom moço mesmo, com uma postura humanitária louvável durante todos os acontecimentos envolvendo a invasão de seu navio: quando um dos invasores corta o pé nos cacos de vidro, ele se apieda de sua juventude desperdiçada; na proteção de sua tripulação; no jeito de pacificador que ele apresenta ao longo de todo o processo;
3. um filme surpreendentemente cheio de furos, ao tentar nos convencer, primeiro, de que um mega navio como aquele, com carga valendo milhões, não tem um grupo armado de proteção, não apenas contra piratas, mas contra qualquer outra ameaça; segundo, que quatro homens armados, mas muito frágeis fisicamente, controlem rapidamente um navio com uma tripulação de homens robustos e bem mais numerosa. Parece que esses personagens nunca viram um filme de Rambo, ou desconhecem que a indústria onde ele foi produzido investe rios de dinheiro na ideologia do 'justiceiro solitário'. Como ficaram todos tão de repente acuados e burrinhos, não me pareceu verossímel;
4. a tentativa de Hanks de escapar jogando-se ao mar, e sua posterior captura pelos 'bandidos' (parecem tão frágeis esses homens que chamar de bandidos soa quase como agressão), parece filme de Groucho Marx - é primária, patética e inconcebível que os homens daqueles navios de socorro norte-americanos, com todos os seus super equipamentos e radares e sonares e lunetas não tenham visto claramente e identificado o homem ao mar, nem podido atirar nos piratas, nem resgatá-lo, nem nada;
5. mais inconcebível ainda me pareceu que três navios de grande porte, além de um avião com vários soldados de elite, tenham ficado horas e horas à volta de um bote salva vidas ridiculamente pequeno, com os piratas e o capitão como refém, acuados todos pelas formiguinhas armadas. Não ficou convincente sob nenhuma hipótese o fato, verídico ou não, daqueles três portentos da marinha norte-americana terem tomado tamanha volta de três somalis famintos, mesmo que armados. Segundo a tradição de seu cinema, não teria sobrado nem pó pra contar a história se houvesse mais verossimilhança com sua própria tradição cinematográfica;
6. o resgate final de Hanks foi fácil, toda aquela lenga lenga de pontaria era só pra encher o saco e criar um pseudo suspense, e o filme alonga tal desenlace até o infinito da paciência do espectador. Eu levantei irritadíssima antes do fim, mas vi de pé a cena patética em que a médica do navio de resgate fala com ele, que aparenta estar aparvalhado e emocionado, chorando sem controle, como se tivesse acontecido um milagre, ou ele estivesse transtornado pela morte de seus captores. Muito, muito triste ver o Hanks fazer aquelas caras ridículas. Prefiro mil vezes vê-lo conversando com um coco, mas com convicção total.
6. a trilha é irritante, e existe para aumentar significativamente a tensão geral que o filme deveria criar, e só cria irritação. Em mim, pelo menos.
7. de onde veio aquele bonequinho aplaudindo o filme de pé que eu vi no jornal, e me levou, de certo modo, a ver o filme? Vergonha dos outros. O filme é mico. Micaço, até para os padrões da indústria deles nesse tipo de produção.
1. um filme para os sócios do clube do Bolinha. Sim, eu sei que não há piratas somalis mulheres, até porque as mulheres somalis estão tentando escapar do genocídio que há anos grassa na região, e na tripulação de um navio cargueiro imenso tampouco cabem mulheres, parece. Bom, não importa, não há qualquer mulher atuando na tela, salvo uma esposa de Phillips em aparição relâmpago, que serve apenas para sublinhar o protagonista como homem-família;
2. um filme feito para o Tom Hanks posar de mocinho, muito bom moço mesmo, com uma postura humanitária louvável durante todos os acontecimentos envolvendo a invasão de seu navio: quando um dos invasores corta o pé nos cacos de vidro, ele se apieda de sua juventude desperdiçada; na proteção de sua tripulação; no jeito de pacificador que ele apresenta ao longo de todo o processo;
3. um filme surpreendentemente cheio de furos, ao tentar nos convencer, primeiro, de que um mega navio como aquele, com carga valendo milhões, não tem um grupo armado de proteção, não apenas contra piratas, mas contra qualquer outra ameaça; segundo, que quatro homens armados, mas muito frágeis fisicamente, controlem rapidamente um navio com uma tripulação de homens robustos e bem mais numerosa. Parece que esses personagens nunca viram um filme de Rambo, ou desconhecem que a indústria onde ele foi produzido investe rios de dinheiro na ideologia do 'justiceiro solitário'. Como ficaram todos tão de repente acuados e burrinhos, não me pareceu verossímel;
4. a tentativa de Hanks de escapar jogando-se ao mar, e sua posterior captura pelos 'bandidos' (parecem tão frágeis esses homens que chamar de bandidos soa quase como agressão), parece filme de Groucho Marx - é primária, patética e inconcebível que os homens daqueles navios de socorro norte-americanos, com todos os seus super equipamentos e radares e sonares e lunetas não tenham visto claramente e identificado o homem ao mar, nem podido atirar nos piratas, nem resgatá-lo, nem nada;
5. mais inconcebível ainda me pareceu que três navios de grande porte, além de um avião com vários soldados de elite, tenham ficado horas e horas à volta de um bote salva vidas ridiculamente pequeno, com os piratas e o capitão como refém, acuados todos pelas formiguinhas armadas. Não ficou convincente sob nenhuma hipótese o fato, verídico ou não, daqueles três portentos da marinha norte-americana terem tomado tamanha volta de três somalis famintos, mesmo que armados. Segundo a tradição de seu cinema, não teria sobrado nem pó pra contar a história se houvesse mais verossimilhança com sua própria tradição cinematográfica;
6. o resgate final de Hanks foi fácil, toda aquela lenga lenga de pontaria era só pra encher o saco e criar um pseudo suspense, e o filme alonga tal desenlace até o infinito da paciência do espectador. Eu levantei irritadíssima antes do fim, mas vi de pé a cena patética em que a médica do navio de resgate fala com ele, que aparenta estar aparvalhado e emocionado, chorando sem controle, como se tivesse acontecido um milagre, ou ele estivesse transtornado pela morte de seus captores. Muito, muito triste ver o Hanks fazer aquelas caras ridículas. Prefiro mil vezes vê-lo conversando com um coco, mas com convicção total.
6. a trilha é irritante, e existe para aumentar significativamente a tensão geral que o filme deveria criar, e só cria irritação. Em mim, pelo menos.
7. de onde veio aquele bonequinho aplaudindo o filme de pé que eu vi no jornal, e me levou, de certo modo, a ver o filme? Vergonha dos outros. O filme é mico. Micaço, até para os padrões da indústria deles nesse tipo de produção.
quinta-feira, 7 de novembro de 2013
Serra Pelada
Grande, excelente trabalho de Heitor Dhalia, esse Serra Pelada (2013), que parece ter levado vários anos para ficar pronto, e eu vi como um filme épico, trágico, violento, além de brasileiríssimo, nisso que retrata um episódio sem similar em nossa história: esse amontoado de trinta mil homens, em sua fase mais densamente povoada, em busca de ouro, tomados pela doença do ouro, do enriquecimento fácil e, para alguns, do poder a ferro e fogo.
Impressiona a recriação do garimpo, as forças que se criam em torno dele, movidas pelo poder do ouro, pela ambição desmesurada que vai nascendo a cada pepita encontrada. Os amigos se estranham, os aliados se matam para ocupar mais espaço, seja no garimpo, seja no coração das poucas mulheres belas, em meio a tantas que fervilham à caça de recompensas financeiras por sexo, num leilão em que ganha quem tem mais dinheiro e sabe matar mais rápido.
Além desse décor quase fantasmagórico e surreal, os atores principais, e os secundários também, estão ótimos, com destaque para Wagner Moura, (já vi aquela expressão quando diz a frase "e precisava chegar a isso?"), mas seu cinismo é perfeito, além da dupla Julio Andrade e Juliano Cazarré, que praticamente carregam o filme, muito bons ambos. Matheus Nachtergaele fica menos tempo em cena, e convence um pouco menos como o terror do pedaço; Sophie Charlotte dá conta da mulher linda e sexy disputada a bala pelos amantes, que ganha alforria depois de muito sofrer.
A trilha sonora acompanha a barranqueira geral, e faz todo sentido naquele mundo de prostíbulos, de gosto pelo brega e pelo sertanejo. Não tendo eu a menor paciência para esse universo musical (só faço turismo de barco pelo Nordeste com protetor de ouvido), aqui essa referência musicial torna-se muito atraente e sensual, com aquele monte de gente suada e colada feito abelha em colmeia. Vendo pelo olhar da câmera, dá até pra bater pezinho no ritmo. Por tudo, um filmaço, que merece muito ser visto.
Impressiona a recriação do garimpo, as forças que se criam em torno dele, movidas pelo poder do ouro, pela ambição desmesurada que vai nascendo a cada pepita encontrada. Os amigos se estranham, os aliados se matam para ocupar mais espaço, seja no garimpo, seja no coração das poucas mulheres belas, em meio a tantas que fervilham à caça de recompensas financeiras por sexo, num leilão em que ganha quem tem mais dinheiro e sabe matar mais rápido.
Além desse décor quase fantasmagórico e surreal, os atores principais, e os secundários também, estão ótimos, com destaque para Wagner Moura, (já vi aquela expressão quando diz a frase "e precisava chegar a isso?"), mas seu cinismo é perfeito, além da dupla Julio Andrade e Juliano Cazarré, que praticamente carregam o filme, muito bons ambos. Matheus Nachtergaele fica menos tempo em cena, e convence um pouco menos como o terror do pedaço; Sophie Charlotte dá conta da mulher linda e sexy disputada a bala pelos amantes, que ganha alforria depois de muito sofrer.
A trilha sonora acompanha a barranqueira geral, e faz todo sentido naquele mundo de prostíbulos, de gosto pelo brega e pelo sertanejo. Não tendo eu a menor paciência para esse universo musical (só faço turismo de barco pelo Nordeste com protetor de ouvido), aqui essa referência musicial torna-se muito atraente e sensual, com aquele monte de gente suada e colada feito abelha em colmeia. Vendo pelo olhar da câmera, dá até pra bater pezinho no ritmo. Por tudo, um filmaço, que merece muito ser visto.
quarta-feira, 30 de outubro de 2013
Apenas o vento
Filme difícil de assistir por sua contundência ao mostrar episódios de extermínio de pessoas de origem cigana na Hungria, ocorridos entre 2008 e 2009, Apenas o vento (Bence Fliegauf, 2012) já está em cartaz há bastante tempo, e só agora pude entender a razão de sua longevidade no circuito - sua qualidade fílmica e de denúncia, sem ser em momento algum panfletário.
Tendo como referência o mote do andarilho, como são reconhecidos os ciganos, o filme acompanha de perto, muitas vezes em closes intensos, como esse da belíssima personagem adolescente (Gyöngyi Lendvai), as idas e vindas da mãe, vivida por Katalin Toldi, do filho, um expressivo e intenso Lajos Sárkány, todos indo pra lá e pra cá, em caminhos sem rumo, como os do filho, mas atento a tudo e a todos, sentindo no ar o que está por vir; indo e vindo da escola, no caso da filha, ou a caminho dos vários empregos, como faz a mãe.
Um dos aspectos mais impactantes do filme é a violência contumaz contra um povo, a contínua sensação de se estar acuado, acossado por uma foice que sentimos cairá a qualquer momento, sobre qualquer uma daquelas cabeças, que não tem de quem se valer. Daí a solidão absurda desses seres, o deambular constante, como feras acuadas, de que são emblemáticos a mãe, fortíssima em sua expressão de medo contido, e o menino, que caminha a esmo tentando sentir-se seguro em algum canto - até achar um canto real como refúgio, no meio do mato - mas até essa gruta será descoberta por alguém, ainda que amigo.
O filme nos deixa atônitos, com dó de todos nós, que vivemos esses tempos de barbárie e, de certo modo, nos torna cúmplices por omissão dos crimes cometidos por nosso semelhante, contra nossos irmãos. Minha mãe, uma senhora muito simples, tem uma frase que considero um ensinamento profundo: ninguém deve sentir-se sozinho no mundo, porque todo vivente é filho de Deus e, portanto, é meu irmão. No limite, para o bem e para o mal.
Tendo como referência o mote do andarilho, como são reconhecidos os ciganos, o filme acompanha de perto, muitas vezes em closes intensos, como esse da belíssima personagem adolescente (Gyöngyi Lendvai), as idas e vindas da mãe, vivida por Katalin Toldi, do filho, um expressivo e intenso Lajos Sárkány, todos indo pra lá e pra cá, em caminhos sem rumo, como os do filho, mas atento a tudo e a todos, sentindo no ar o que está por vir; indo e vindo da escola, no caso da filha, ou a caminho dos vários empregos, como faz a mãe.
Um dos aspectos mais impactantes do filme é a violência contumaz contra um povo, a contínua sensação de se estar acuado, acossado por uma foice que sentimos cairá a qualquer momento, sobre qualquer uma daquelas cabeças, que não tem de quem se valer. Daí a solidão absurda desses seres, o deambular constante, como feras acuadas, de que são emblemáticos a mãe, fortíssima em sua expressão de medo contido, e o menino, que caminha a esmo tentando sentir-se seguro em algum canto - até achar um canto real como refúgio, no meio do mato - mas até essa gruta será descoberta por alguém, ainda que amigo.
O filme nos deixa atônitos, com dó de todos nós, que vivemos esses tempos de barbárie e, de certo modo, nos torna cúmplices por omissão dos crimes cometidos por nosso semelhante, contra nossos irmãos. Minha mãe, uma senhora muito simples, tem uma frase que considero um ensinamento profundo: ninguém deve sentir-se sozinho no mundo, porque todo vivente é filho de Deus e, portanto, é meu irmão. No limite, para o bem e para o mal.
terça-feira, 29 de outubro de 2013
Eu, Anna
Ela conhece um homem num encontro no clube dos solteiros e a partir daí os acontecimentos em torno dela começam a ficar confusos, ambíguos e perigosos. Não sabemos, por um longo tempo, se ela é uma vítima ou uma agente do mal disfarçada, só percebemos sua atitude ambígua, seu jeito desconfiado, suas esquisitices, e ao mesmo tempo torcendo para que a crescente aproximação desse outro estranho ser, o investigador, nos revele finalmente a chave do mistério de Anna, e do filme. E ele o faz. Quando finalmente compreendemos o que houve, através dos flashbacks, entendemos também que o filme trata, sobretudo, de compaixão e de perdão. E percebemos melhor porque ambos têm os rostos tão marcados, e porque as marcas dela, em especial, carregam histórias pungentes de vida, cicatrizes contra as quais sua luta será sempre ma batalha perdida. E ele compreende, e a apoia incondicionalmente. Então, o filme é também sobre isso - amor, mesmo face ao inelutável. E sobretudo em momentos difíceis. Um filme que vale ser visto, com final verdadeiramente tocante, e convincente.
sábado, 26 de outubro de 2013
O conselheiro do crime
Existe um texto de Hilda Hilst, cujo nome não lembro, em que ela cria uma cena meio bestial tendo um bebê como personagem, uma dessas imagens grotescas de que sua literatura se alimenta e que me chocou, em certo sentido - era/é uma cena que não existia para mim, não fazia parte de meu imaginário e passou a existir, do modo como só a literatura pode criar existências - de seres, coisas, tempos, atmosferas e tudo mais que há ou poderá haver. Não gostei de tê-la conhecido, não a queria para mim, mas não se pode escolher que presentes um artista pode criar, menos ainda oferecer a seu público.
De certo modo, Ridley Scott, nesse seu estranho O conselheiro do crime (2013), criou uma cena inaugural no grande cinema de Hollywood - isso porque tal observação não se aplica ao terreno dos filmes eróticos, cuja amplidão e profundidade desconheço. Refiro-me ao cinema comum, para espectadores padrão, como nós. E essa cena estranha, em seu quase deboche, dá o tom, penso eu, do clima geral do que se vê na tela, e pode ser sumarizada como uma grande angular dos, em princípio, órgãos genitais de Malkina, personagem vivida por Cameron Diaz, que se senta sobre o para-brisa do carro preferido de seu amante Reiner, vivido pelo sempre ótimo Javier Bardem, com as pernas abertas em linha reta, onde encena uma transa com o vidro, tendo Bardem como espectador atônito, quase aterrorizado, dentro do carro. O olhar assustadíssimo dele para aquela-coisa-toda faz o público rir, não há como não rir de uma coisa tão descabida, exagerada, kitsch, louca e exibicionista à exaustão.
Acho que a exasperação erótica desta e de outras cenas fica mais na sugestão do que na coisa em si, embora nada seja poupado. Isso ocorre porque não há interesse em manipular o espectador para esse campo, tudo é tratado com muita rapidez, as cenas encadeiam-se numa sequência meio alucinada, em que os fios se perdem e se acham mais à frente, embora alguns fiquem no ar, parecendo, no entanto, esses vazios fazer parte da trama. E de que se trata, afinal? De crimes e contrabandos e dinheiro aos milhões, indo e vindo, e passando de mãos, até que uma roda da engrenagem emperra em algum lugar (não sabemos onde, nem quais os responsáveis) e começa a morrer gente, de forma meio bárbara, e veloz. Parece que todos estão sob o cutelo de algum ser pairando em algum lugar, que tudo sabe e tudo vê. Meio aflitivo, e meio confuso, mas ninguém deixa de ver um segundo para não se perder ainda mais.
E há ainda as considerações morais sobre a inevitabilidade das escolhas feitas, de como não há volta em certos caminhos que se tomam; de como não há escapatória para determinados atos, além de muitas conversas de cunho moralizante (nunca um diamante revelou-se tão rico em sentidos - pílulas para a vida). O elenco, estelar - Brad Pitt, Michael Fassbender (o counselor, uma ironia à parte), Penélope Cruz, Cameron Diaz, Rosie Perez, Bruno Ganz, todos entram e saem com a rapidez das ações que passam na tela, mas todos cumprem à risca os exageros que o roteiro lhes impõe. Para mim, Bardem sempre parece se sair melhor, até porque a cena mais escatológica coube a ele presenciar, mas Cameron também inova em sua recorrente galeria de mocinhas românticas. Hollywood parece ter resolvido entronizar suas divas em mais uma categoria - a de cruéis chefonas do crime, organizado ou não, onde se mostram muito, muito más.
De certo modo, Ridley Scott, nesse seu estranho O conselheiro do crime (2013), criou uma cena inaugural no grande cinema de Hollywood - isso porque tal observação não se aplica ao terreno dos filmes eróticos, cuja amplidão e profundidade desconheço. Refiro-me ao cinema comum, para espectadores padrão, como nós. E essa cena estranha, em seu quase deboche, dá o tom, penso eu, do clima geral do que se vê na tela, e pode ser sumarizada como uma grande angular dos, em princípio, órgãos genitais de Malkina, personagem vivida por Cameron Diaz, que se senta sobre o para-brisa do carro preferido de seu amante Reiner, vivido pelo sempre ótimo Javier Bardem, com as pernas abertas em linha reta, onde encena uma transa com o vidro, tendo Bardem como espectador atônito, quase aterrorizado, dentro do carro. O olhar assustadíssimo dele para aquela-coisa-toda faz o público rir, não há como não rir de uma coisa tão descabida, exagerada, kitsch, louca e exibicionista à exaustão.
Acho que a exasperação erótica desta e de outras cenas fica mais na sugestão do que na coisa em si, embora nada seja poupado. Isso ocorre porque não há interesse em manipular o espectador para esse campo, tudo é tratado com muita rapidez, as cenas encadeiam-se numa sequência meio alucinada, em que os fios se perdem e se acham mais à frente, embora alguns fiquem no ar, parecendo, no entanto, esses vazios fazer parte da trama. E de que se trata, afinal? De crimes e contrabandos e dinheiro aos milhões, indo e vindo, e passando de mãos, até que uma roda da engrenagem emperra em algum lugar (não sabemos onde, nem quais os responsáveis) e começa a morrer gente, de forma meio bárbara, e veloz. Parece que todos estão sob o cutelo de algum ser pairando em algum lugar, que tudo sabe e tudo vê. Meio aflitivo, e meio confuso, mas ninguém deixa de ver um segundo para não se perder ainda mais.
E há ainda as considerações morais sobre a inevitabilidade das escolhas feitas, de como não há volta em certos caminhos que se tomam; de como não há escapatória para determinados atos, além de muitas conversas de cunho moralizante (nunca um diamante revelou-se tão rico em sentidos - pílulas para a vida). O elenco, estelar - Brad Pitt, Michael Fassbender (o counselor, uma ironia à parte), Penélope Cruz, Cameron Diaz, Rosie Perez, Bruno Ganz, todos entram e saem com a rapidez das ações que passam na tela, mas todos cumprem à risca os exageros que o roteiro lhes impõe. Para mim, Bardem sempre parece se sair melhor, até porque a cena mais escatológica coube a ele presenciar, mas Cameron também inova em sua recorrente galeria de mocinhas românticas. Hollywood parece ter resolvido entronizar suas divas em mais uma categoria - a de cruéis chefonas do crime, organizado ou não, onde se mostram muito, muito más.
segunda-feira, 29 de julho de 2013
Amor pleno
Amor pleno, de Terrence Malick, promete muito e oferece (para mim) pouca coisa.
Pra começar, a linguagem do filme, à la Árvore da vida - ou seja, cenas leentas, narrador falando e comentando as possíveis ações, quase ação nenhuma - não me parece adequado ao tema de que trata. Se no outro filme há uma interrogação mais metafísica, talvez, a respeito do amor em família e do sentido dos valores, aqui trata-se de um tema menos, diria, candente. Dois apaixonados que são flagrados no momento em que começam a se amar, e que desenvolvem relações que são intensas a um tempo, depois esfriam, escapam pelas mãos, são traídos e traem, brigam e fazem as pazes - tudo isso numa espécie de sonho, em que quase nada é dito de forma clara (sim, como os sentimentos, seria a ideia), mas me parece que é tempo demais diante de imagens quase iguais, tirando o décor de Paris (lindíssima) e o outro para onde se mudam, de um rancho no interior dos EUA (um nada no meio do nada - ver Paris Texas, sem o timing).
Já aí começam os problemas, para esta espectadora - não há hipótese daquilo dar certo por muito tempo, porque as diferenças de espaços geográficos vai configurando também a distância, vamos chamar de cultural, mas é mais do que isso, entre os universos dos dois amantes. E a menina, de 10 anos, filha dela, é a primeira a tomar consciência da situação, meio óbvia. O fato de Ben Affleck quase não falar, salvo raros momentos ("fulana, você quer ir morar nos Estados Unidos"?, ou seja, pouquíssima consistência) dá ao personagem uma aura de - nada. Não é enigmático, não é denso, não é profundo, não é nada. E a atriz que vive a amada Marina, Olga Kurylenko, expressa alegria e jouissance dançando pelo prado, levantando os braços para o alto, curtindo cavalos ao ar livre, e constroi seu personagem como pode, mas não vai muito longe, porque tudo é meio falso, vago, sem costura, embora esteja um pouco melhor do que o Affleck, por dar a impressão de que o filme se move em torno dela, de seus percursos e percalços. Entre uma saída dela de casa e sua volta, Neil (Affleck) tem tempo de re-encontrar uma antiga namorada, vivida por Rachel McAdams - e ela fala mais, portanto me parece melhor no papel do que os dois atores principais. E esta, no campo da simbologia dos animais, se relaciona melhor com búfalos, muitos deles, numa cena que se tiver sido real precisou de muita coragem de ambos.
E tem Javier Bardem, vivendo um padre em estado terminal de dúvidas e de desesperanças (li em algum lugar que a protagonista se envolve com o padre - isso só numa mente delirante, não há nada disso no filme que eu vi, até o fim estoicamente, e são quase duas horas de lentidões. Ela vai à igreja e se confessa para tentar entender o que está acontecendo com ela, com o fim do amor. Não há nem resquício de nada entre eles). Bardem fala em off, mas usa sua própria e linda voz, daí ter uma individualidade mais marcada, uma existência menos etérea. Ele explicita seu sofrimento, sua incapacidade de continuar naquele purgatório que se tornou sua função evangelizadora. É quando ele aparece, fazendo visitas aos habitantes do lugarejo, que o lado pobre e quase indigente do lugar se faz presente. Mas não é por isso que a presença de Bardem na tela adquire mais densidade. É porque ele é muito bom, ele é incrivelmente bom onde quer que esteja. Ele fez o melhor que pode com o que lhe pediram, e suas palavras tinham substância. Ele as dizia com convicção, sendo o imenso ator que é. A melhor e mais significativa parte do filme é quando ele está presente, pena que por menos tempo do que deveria.
E tem a edição, que me pareceu estranhíssima, mesmo sem entender de sua tecnicalidade, há uma sensação de que se quis fazer algo que não se realizou, não tem costura, fica solto demais, e não me convenceu, em quase nenhum momento (salvo Bardem, talvez).
Se ao menos eu soubesse pra onde a Marina vai no final - que lugar é aquele, por que ela grita para os cavalos (sim, óbvio que ela está... revoltada? livre? perdida? feliz? infeliz?). E, de novo: ela dança em direção ao nada, naquilo que parece ser outro fim de mundo? Se pelo menos eu soubesse onde é esse lugar (há pistas, monumentos, mas não os reconheci, hélas) saberia se tem alguma chance de haver outra expressão além daquela de total perdição, que fecha o filme.
Pra começar, a linguagem do filme, à la Árvore da vida - ou seja, cenas leentas, narrador falando e comentando as possíveis ações, quase ação nenhuma - não me parece adequado ao tema de que trata. Se no outro filme há uma interrogação mais metafísica, talvez, a respeito do amor em família e do sentido dos valores, aqui trata-se de um tema menos, diria, candente. Dois apaixonados que são flagrados no momento em que começam a se amar, e que desenvolvem relações que são intensas a um tempo, depois esfriam, escapam pelas mãos, são traídos e traem, brigam e fazem as pazes - tudo isso numa espécie de sonho, em que quase nada é dito de forma clara (sim, como os sentimentos, seria a ideia), mas me parece que é tempo demais diante de imagens quase iguais, tirando o décor de Paris (lindíssima) e o outro para onde se mudam, de um rancho no interior dos EUA (um nada no meio do nada - ver Paris Texas, sem o timing).
Já aí começam os problemas, para esta espectadora - não há hipótese daquilo dar certo por muito tempo, porque as diferenças de espaços geográficos vai configurando também a distância, vamos chamar de cultural, mas é mais do que isso, entre os universos dos dois amantes. E a menina, de 10 anos, filha dela, é a primeira a tomar consciência da situação, meio óbvia. O fato de Ben Affleck quase não falar, salvo raros momentos ("fulana, você quer ir morar nos Estados Unidos"?, ou seja, pouquíssima consistência) dá ao personagem uma aura de - nada. Não é enigmático, não é denso, não é profundo, não é nada. E a atriz que vive a amada Marina, Olga Kurylenko, expressa alegria e jouissance dançando pelo prado, levantando os braços para o alto, curtindo cavalos ao ar livre, e constroi seu personagem como pode, mas não vai muito longe, porque tudo é meio falso, vago, sem costura, embora esteja um pouco melhor do que o Affleck, por dar a impressão de que o filme se move em torno dela, de seus percursos e percalços. Entre uma saída dela de casa e sua volta, Neil (Affleck) tem tempo de re-encontrar uma antiga namorada, vivida por Rachel McAdams - e ela fala mais, portanto me parece melhor no papel do que os dois atores principais. E esta, no campo da simbologia dos animais, se relaciona melhor com búfalos, muitos deles, numa cena que se tiver sido real precisou de muita coragem de ambos.
E tem Javier Bardem, vivendo um padre em estado terminal de dúvidas e de desesperanças (li em algum lugar que a protagonista se envolve com o padre - isso só numa mente delirante, não há nada disso no filme que eu vi, até o fim estoicamente, e são quase duas horas de lentidões. Ela vai à igreja e se confessa para tentar entender o que está acontecendo com ela, com o fim do amor. Não há nem resquício de nada entre eles). Bardem fala em off, mas usa sua própria e linda voz, daí ter uma individualidade mais marcada, uma existência menos etérea. Ele explicita seu sofrimento, sua incapacidade de continuar naquele purgatório que se tornou sua função evangelizadora. É quando ele aparece, fazendo visitas aos habitantes do lugarejo, que o lado pobre e quase indigente do lugar se faz presente. Mas não é por isso que a presença de Bardem na tela adquire mais densidade. É porque ele é muito bom, ele é incrivelmente bom onde quer que esteja. Ele fez o melhor que pode com o que lhe pediram, e suas palavras tinham substância. Ele as dizia com convicção, sendo o imenso ator que é. A melhor e mais significativa parte do filme é quando ele está presente, pena que por menos tempo do que deveria.
E tem a edição, que me pareceu estranhíssima, mesmo sem entender de sua tecnicalidade, há uma sensação de que se quis fazer algo que não se realizou, não tem costura, fica solto demais, e não me convenceu, em quase nenhum momento (salvo Bardem, talvez).
Se ao menos eu soubesse pra onde a Marina vai no final - que lugar é aquele, por que ela grita para os cavalos (sim, óbvio que ela está... revoltada? livre? perdida? feliz? infeliz?). E, de novo: ela dança em direção ao nada, naquilo que parece ser outro fim de mundo? Se pelo menos eu soubesse onde é esse lugar (há pistas, monumentos, mas não os reconheci, hélas) saberia se tem alguma chance de haver outra expressão além daquela de total perdição, que fecha o filme.
quarta-feira, 19 de junho de 2013
Antes da meia noite
Imersa nos últimos acontecimentos, penso que falar de cinema pode ser um modo de tomar fôlego para continuar no único assunto possível do momento (et pour cause) - as manifestações que ocorrem em todo país, contra quase tudo que está engasgado na garganta de todos nós.
Acho que pouca gente, em sã consciência, não gostaria desse filme (Antes da meia noite - Richard Linklater), porque nele há tudo que pode fazer a vida de alguém interessante, e a alegria do espectador: um cenário lindíssimo, já que o casal está passando férias na Grécia dos cartões postais, mas sem a bobice inerente.
Ao contrário, depois de muita conversa entre os dois, sobretudo a respeito da ausência dele na vida do filho, que mora em Chicago e ele em Paris; depois ainda de uma conversa à la table, em eles compartilham uma refeição com a família dos anfitriões, regada a muito papo interessante sobre a vida, as mídias sociais e as várias possibilidades de encontro e desencontros nesses tempos digitais; depois de esquetes divertidos, em que se delineiam temas e tópicos de um futuro livro dele, enfim, depois de acompanhar momentos da vida intensa desse simpático casal, vamos com ele ao que seria uma espécie de brinde - uma noite num hotel, oferecida por um dos amigos.
Claro que as coisas não acontecem como deveriam e vemos então uma DR acachapante, como poucas no cinema. As palavras ditas, represadas há tempos, eclodem com vigor, e as conversas ficam ásperas, duras, sem ternura. Ela cobra coisas que só uma mulher pode cobrar: cuidar das gêmeas quase sozinha por um período em que ele viaja na divulgação de seu livro; não ter referências femininas de peso à altura daquelas que os homens têm (amei o comentário jocoso sobre espelhar-se em Joana D'Arc: quem quer ser queimada na fogueira?), e tantas outras inerentes a uma relação de vários anos; ele faz menção ao ciúme, defende-se quanto a possíveis traições e faz, en passant, uma obervação bem interessante: - ela é louca. Concordo plenamente: nós todas somos, se comparadas ao mundo mental do universo masculino.
A par disso, tem um Ethan Hawke muito bom, com presença cênica mais forte do que a dela, achei, talvez porque mais solto, mais liberto, mais debochado, dentro de uma espécie de physique du rôle do escritor largadão; ela, Julie Delpy, também correspondendo ao personagem, faz uma mulher mais neurótica, mais brigona, mais zangada e impaciente- e um pouco mais chata também: reclama muito, briga muito, cobra muito. De todo modo, um filme que se vê com prazer, e com a atenção alerta, pra não perder os fios daquelas tantas meadas.
Acho que pouca gente, em sã consciência, não gostaria desse filme (Antes da meia noite - Richard Linklater), porque nele há tudo que pode fazer a vida de alguém interessante, e a alegria do espectador: um cenário lindíssimo, já que o casal está passando férias na Grécia dos cartões postais, mas sem a bobice inerente.
Ao contrário, depois de muita conversa entre os dois, sobretudo a respeito da ausência dele na vida do filho, que mora em Chicago e ele em Paris; depois ainda de uma conversa à la table, em eles compartilham uma refeição com a família dos anfitriões, regada a muito papo interessante sobre a vida, as mídias sociais e as várias possibilidades de encontro e desencontros nesses tempos digitais; depois de esquetes divertidos, em que se delineiam temas e tópicos de um futuro livro dele, enfim, depois de acompanhar momentos da vida intensa desse simpático casal, vamos com ele ao que seria uma espécie de brinde - uma noite num hotel, oferecida por um dos amigos.
Claro que as coisas não acontecem como deveriam e vemos então uma DR acachapante, como poucas no cinema. As palavras ditas, represadas há tempos, eclodem com vigor, e as conversas ficam ásperas, duras, sem ternura. Ela cobra coisas que só uma mulher pode cobrar: cuidar das gêmeas quase sozinha por um período em que ele viaja na divulgação de seu livro; não ter referências femininas de peso à altura daquelas que os homens têm (amei o comentário jocoso sobre espelhar-se em Joana D'Arc: quem quer ser queimada na fogueira?), e tantas outras inerentes a uma relação de vários anos; ele faz menção ao ciúme, defende-se quanto a possíveis traições e faz, en passant, uma obervação bem interessante: - ela é louca. Concordo plenamente: nós todas somos, se comparadas ao mundo mental do universo masculino.
A par disso, tem um Ethan Hawke muito bom, com presença cênica mais forte do que a dela, achei, talvez porque mais solto, mais liberto, mais debochado, dentro de uma espécie de physique du rôle do escritor largadão; ela, Julie Delpy, também correspondendo ao personagem, faz uma mulher mais neurótica, mais brigona, mais zangada e impaciente- e um pouco mais chata também: reclama muito, briga muito, cobra muito. De todo modo, um filme que se vê com prazer, e com a atenção alerta, pra não perder os fios daquelas tantas meadas.
sábado, 25 de maio de 2013
Dois : Elena; Terapia de risco
I don't buy it - foi o que pensei ao fim da exibição do filme Elena (Petra Costa), a despeito dos esforços poéticos no terço final, onde se vêem belas imagens de figuras femininas boiando na água. Para mim, ficou uma experiência pessoal demais, uma história muito particular da neura de uma irmã que comete suicídio sem que eu tenha visto uma razão que me tocasse, que me dissesse respeito, a não ser o fato, também muito pessoal, de que a cidade de Nova Iorque pode talvez desorganizar emocionalmente um ser que já está fragilizado, por ter eu mesma vivido uma experiência de desconcerto nos poucos dias que lá passei. O fato é que as cenas finais, de um lirismo explícito, me pareceram uma espécie de exercício poético, e mesmo acadêmico, para 'épater' a audiência e tornar o filme bonito, para emocionar mesmo. O que achei mais interessante, em termos de 'verdade documental' foi a presença da mãe, seu modo de ver a coisa toda, sua personalidade meio fugidia e aérea, sua beleza e verdade ao narrar os sentimentos, as ações da filha. Mas não foi suficiente. O filme me pareceu uma colcha de algumas belas imagens, sem força nas costuras, nem no conjunto das cenas.
Já Terapia de risco (Steven Soderbergh) traz uma história um tanto confusa, que vai se transformando ao longo da fita, mas continuei achando bem interessante todo o tempo, sobretudo porque tem um bonito Channing Tatum vivendo o marido da protagonista, que passa pouco tempo na tela; um Jude Law muito, muito bom; uma excelente Rooney Mara, que revejo pela primeira vez depois do brilhante Os homens que não amavam as mulheres, e a Catherine Zeta-Jones, convincente. A história é meio maluca, de um assassinato e um golpe que a personagem de Mara dá no psiquiatra vivido por Law, mas que na verdade esconde um astucioso plano para ganhar milhões da indústria farmacêutica, misturada ao colapso financeiro de 2009, enfim, várias vertentes que acabam encontrando-se numa espécie de policial com final bacana. Gostei da Mara, que está com visual diferentíssimo do filme anterior, com jeito de mulherona, e linda, e fiquei me perguntando onde estava essa mulher naquela outra, e gostei sobretudo da atuação de Jude Law, com nuances e forças expressivas.
Já Terapia de risco (Steven Soderbergh) traz uma história um tanto confusa, que vai se transformando ao longo da fita, mas continuei achando bem interessante todo o tempo, sobretudo porque tem um bonito Channing Tatum vivendo o marido da protagonista, que passa pouco tempo na tela; um Jude Law muito, muito bom; uma excelente Rooney Mara, que revejo pela primeira vez depois do brilhante Os homens que não amavam as mulheres, e a Catherine Zeta-Jones, convincente. A história é meio maluca, de um assassinato e um golpe que a personagem de Mara dá no psiquiatra vivido por Law, mas que na verdade esconde um astucioso plano para ganhar milhões da indústria farmacêutica, misturada ao colapso financeiro de 2009, enfim, várias vertentes que acabam encontrando-se numa espécie de policial com final bacana. Gostei da Mara, que está com visual diferentíssimo do filme anterior, com jeito de mulherona, e linda, e fiquei me perguntando onde estava essa mulher naquela outra, e gostei sobretudo da atuação de Jude Law, com nuances e forças expressivas.
sábado, 4 de maio de 2013
Camille Claudel 1915
O filme é decepcionante porque transformou a vida de uma artista inquieta, intensa, forte, dramática, talentosa em um único momento de um único ano dessa vida, expondo basicamente o dia a dia de um manicômio e seus habitantes, talvez para enfatizar a crueldade dos que impuseram aquele mundo à artista. Eu esperava mais. Esperava que o filme discutisse, nem que fosse em flashbacks, as grandes questões que imprimiram intensidade à vida da protagonista - dela, com certeza, se pode dizer que 'sua vida daria um romance', quiçá um filme menos monocromático. Nem mesmo o irmão, o poeta Paul Claudel, vivido por um inexpressivo Jean-Luc Vincent, deixa de ser figurado como um quase beato, impassível diante da dor da irmã. Teria sido necessário aglutinar os outros personagens que fizeram da história de Camille esse beco sem saída, de modo que o espectador compreendesse melhor por que ela foi encarcerada; que papel teve Rodin em seu martírio; de que modo os dois artistas autofagicamente se engalfinharam; sob que condições a mãe, a família, enfim, pode infligir tão cruel castigo à filha. Enfim, sempre houve, e haverá, perguntas demais em torno da vida de Camille - não será esse o filme que vai discuti-las, ou mesmo expô-las.
Como se apresenta, penso que a história serve basicamente à expressão de uma atriz, é um solo de Juliette Binoche, um filme para ela, e não um filme para ou sobre a vida de Camille. Pena. Vendo essa versão, continuo achando mais fiel e interessante o drama Camille Claudel (Bruno Nuytten, 1988), com uma Adjani belíssima e trágica, um Depardieu intenso como Rodin, enfim os personagens que viveram em torno da vida da artista e imprimiram sua marca numa das mulheres mais interessantes e talentosas da passagem do século dezenove para o vinte (1864-1943), cujo enigma se mantém ainda vivo e nos interessa até hoje.
quarta-feira, 1 de maio de 2013
Dez: A visitante francesa; Vai que dá certo; Oblivion; Chamada de emergência; Ginger e Rosa; Bárbara; 2 dias em Nova Iorque; Um bom partido; O abismo prateado
Tentei de várias formas consertar o layout desse post, mas não consigo, tudo volta a ficar assim, acho que teria de re-escrever tudo para endireitá-lo. Então, considero que ele escolheu sua própria forma, e espero que essa forma não seja para todos os outros. Siga assim, então, ao menos se pode ler. Sorry, folks.
**************
**************
O quarteto (Dustin
Hoffman) pertence à rara (embora cada vez menos raro, ainda bem) categoria de
filmes sobre as atribulações nas vidas de pessoas idosas. Seria mesmo um
desperdício deixar de assistir na tela, no teatro ou onde quer que seja a essa
extraordinária Maggie Smith que, praticamente por ela mesma, já vale o filme.
Mas há um ótimo time batendo bola com ela (Tom Courtenay, Billy Connolly,
Pauline Collins, Michael Gambon) e o filme torna-se uma diversão de altíssimo
nível.
A
visitante francesa (Hong Sang-soo), com Isabelle
Huppert, é uma coisa assim, como direi - chatinha? Pois a volta dela em
situações diferentes mostra seu talento, sim, mas não conseguiu me interessar a
ponto de não ficar irritada com tanto vaivém. No final, só torcia pra não ter
mais uma historinha a ser contada, com ou sem o talento da Huppert. Acho que
ela é ótima, mas esse tipo de exercício de interpretação me pareceu um tanto
vaidoso demais.
Vai que
dá certo (Maurício Farias), com Danton Mello,
Lucio Mauro Filho. A gente ri, sim, mas tem um pouco de vergonha desse riso.
Não queria bancar a politicamente correta, mas a leveza com que os guapos
rapazes cometem as infrações e acham uma graça enorme de tudo; o modo
sorrateiro como eles acreditam que o que fizeram não terá consequências e o
final assim meio fingidamente surpreso com a retomada das funções equívocas,
tudo muito naturalizado, tudo bacana - não sei não, achei um tanto frouxo em
tudo, meio esquisito e não sei explicar direito exatamento onde, ou por quê.
Oblivion (Joseph Kosinski), com Tom Cruise, Olga Kurylenko et alii.
Cumpre tudo que promete, mas que é um tantinho confuso, é. E aquele final
absolutamente convencional e piegas, ninguém merece. Mas dá pra assistir até o
fim sem dormir.
Chamada
de emergência (Brad Anderson), com Halle
Berry, Abigail Breslin. Gostei, a Halle está ótima, a moça que era a miss
Sunshine também colabora, e a tensão segura o espectador o tempo todo. Só tenho
restrição à cena final - acho que estou ficando uma senhora moralista, oh
céus.
Ginger e Rosa (Sally Potter), com Elle Fanning,
Alice Englert , além de uma Annette Bening envelhecida e ótima. Fui ver
instigada pela década de sessenta, mas o que se vê é menos uma imersão nessa
época do que uma investigação sobre as dificuldades de uma jovem diante não
apenas do mundo exterior, com a ameaça de hecatombe pela bomba atômica, mas
também de suas próprias divisões e esfacelamentos face às questões da vida em
geral - amizade, família, sociedade, tudo um pouco desmorona em torno dela, que
vai sucumbindo junto. É um filme bonito e triste, vale a pena ser visto.
Bárbara (Christian Petzold) com Nina Hoss, Ronald Zehrfeld. Já vi há
algum tempo, mas lembro da intensidade dessa atriz, Nina Ross, e lembro de que gostei
desse filme cheio de mistérios, suspenses, segredos, coisas inquietantes
acontecendo até tudo ser esclarecido, destinos mudados e finais imprevistos.
Ela, a atriz, é dona completa do filme, e faz um senhor trabalho.
2 dias em
Nova Iorque (Julie Delpy). Julie Delpy,
Chris Rock. A gente ri um pouco, mas as piadas são meio infames. O lugar comum
impera, e nem Chris Rock querendo ser sério, ou a Delpy fazendo-se de francesa
(que ela efetivamente é), misturado àquele humor geral meio grotesco, junto com
as conversas horrorosas do Chris com a imagem do Barack Obama, enfim é tudo
muito esquisito e estapafúrdio, um tanto over e quase nada se salva.
Um bom
partido (Gabriele Muccino). Gerard
Butler, Uma Thurman, Catherine Zeta-Jones, Jessica Biel. Ele - Gerald Butler -
até que está um gato com aquelas rugas e cabelo meio dourado ondulado, mas essa
penca de atrizes lindas, poderosas e talentosas fazendo personagens que só vêem
a sua frente uma transa com o treinador George é um pouco excessivo até para o
Butler. De resto, a Biel faz a contento a mocinha que se separa do marido
perdedor, mas continua uma apaixonada enrustida por ele, embora esteja numa
relação de três anos com um sujeito aparentemente centrado, organizado e o
oposto do ex, como se poderia esperar. Tudo previsível, mesmo o final que parecia
ser um, e continuou sendo o previsto pelo lugar comum - família unida jamais
será vencida.
O abismo prateado (Karim Anouïz). Alessandra Negrini, Thiago Martins, Otto Jr. Acho que o povo na faixa dos trinta vai gostar do filme. Eu confesso pouca paciência para esse tipo de temática - o abandono do marido comunicado à mulher por uma mensagem telefônica - mesmo reconhecendo que a Alessandra Negrini faz um ótimo trabalho - e olha que ela não sai de cena quanse nunca, faz a sofrida e confusa e perdida com muita competência. Mas não me vi atraída pela história, pelo filme ou pelo modo de olhar a situação do Anouiz aqui, embora goste muito do trabalho dele. Talvez seja mesmo só um hiato geracional e o filme seja melhor do que meus olhos puderam ver.
Mais uma observação: há uma cena da Negrini numa boate, dançando catártica e loucamente, que achei bonita - é forte, tudo que ela está vivendo está ali, naquele momento, sendo exorcizado. E a menina que faz a filha do Thiago Martins - ambos meio à deriva na história e na vida (deles e de Violeta), é uma graça de atriz. Vasculhei a rede em busca do nome dela e não encontrei em lugar algum. Ela está na foto acima, ao lado do pai. E aqui:

Mais uma observação: há uma cena da Negrini numa boate, dançando catártica e loucamente, que achei bonita - é forte, tudo que ela está vivendo está ali, naquele momento, sendo exorcizado. E a menina que faz a filha do Thiago Martins - ambos meio à deriva na história e na vida (deles e de Violeta), é uma graça de atriz. Vasculhei a rede em busca do nome dela e não encontrei em lugar algum. Ela está na foto acima, ao lado do pai. E aqui:

segunda-feira, 22 de abril de 2013
Um porto seguro
Está certo - Um porto seguro (Lasse Hallstrom) é mesmo piegas, a protagonista (Julianne Hough) quase dá vexame de tão inexpressiva em sua atuação, mas tem um ótimo (e lindo, claro) Josh Duhamel,e a outra atriz (Cobie Smulders) dá conta direitinho de ser a "amiga" que nos trará surpresas ao final. Mas se tem tantos pontos negativos (e tem), por que gostei do filme? Porque Um porto seguro é mesmo só pra distrair, emocionar e fazer chorar um tantinho. Além disso, tem injustiça contra mulher, ou melhor, marido violento e agressivo, além de alcoólatra, o que dá à mocinha todas as chances de ter o espectador a seu lado, torcendo por ela, mesmo sem entender quase até o final do que ela foge tanto, e mesmo que ela seja tão bonitinha e tão fraquinha como atriz. De todo modo, gostei de ter visto, gostei da pegada de filme sobre o "além" do final - na verdade, seria ótimo se as coisas funcionassem daquela maneira - quase todos nós, que crescemos sob a égide do mundo cristão e seus mitos de salvação, temos certa nostalgia da carta que ela recebe.
E quase sempre gosto dos filmes do Lasse, em seus aspectos redentores e muitas vezes pueris, pra não dizer piegas (mas quem fez dissertação sobre a poesia de Adélia Prado tem seu lado piegas e, mesmo, kitsch - that's me). Assim, vejo sempre que passa na TV Um lugar para recomeçar, acho bom demais. Também gosto muito de Chocolate, Chegadas e partidas; mas não curti Sempre a seu lado, por bobinho demais.
E quase sempre gosto dos filmes do Lasse, em seus aspectos redentores e muitas vezes pueris, pra não dizer piegas (mas quem fez dissertação sobre a poesia de Adélia Prado tem seu lado piegas e, mesmo, kitsch - that's me). Assim, vejo sempre que passa na TV Um lugar para recomeçar, acho bom demais. Também gosto muito de Chocolate, Chegadas e partidas; mas não curti Sempre a seu lado, por bobinho demais.
quinta-feira, 18 de abril de 2013
A criada
Não sei se é porque estou num momento de vida extremamente sensível à questão do trabalho dos cuidadores de idosos, no Brasil existindo sob a esfera do trabalho doméstico, que esse ano deu uma guinada em termos de direitos e deveres dos dois pólos envolvidos - especificamente, eu e a cuidadora de minha mãe. O fato é que vi esse filme chileno - A criada (Sebastián Silva, 2009) - com quase fervor, tendo quase sempre em meu horizonte imaginativo a Clarice da angustiosa imersão no quarto da empregada em A paixão segundo G.H., e muito a Macabéa de A hora da estrela. A protagonista é uma Macabéa num tom um pouco menor (de desespero e carência), em escala um pouco mais humana, mas continua sendo de uma precariedade afetiva absoluta, tocante e intangível. São de uma crueza tão estridente suas maldades, ao mesmo tempo em que ela se mostra tão comovente em suas tentativas para impedir a divisão de 'seu território' de amor e conquista ao longo de uma vida - aquela família que lhe dá tão pouco, que lhe deu tão pouco em vinte anos de trabalho e convivência.
Então aparece, finalmente, uma ajudante que não tem medo dela, que lhe dá um inesperado abraço, mesmo diante da recusa e do repúdio. Macabéa/Raquel fica atônita, não sabe bem o que é aquilo, nunca tinha sentido o afeto ou a compaixão ou a proximidade do amor assim, de repente e gratuitamente. Há uma cena de choro catártico e as coisas parecem fazer mais sentido para ela a partir de então. Vai tentando costurar as pontas de si mesma naquelas linhas novas: compra uma blusa bonita para si, como a que vê no closet da patroa; e outra, bonita e cara, que dá de presente à nova amiga no aniversário. É tudo muito simples, singelo mesmo o embate que ela trava com a falta de... quase tudo. A atriz é magistral, tem uns olhares absolutamente perfeitos para tudo que quer expressar; tem também um ar de abobada-esperta que faz o sorriso do espectador ficar meio sem jeito ou sem gosto por comprender e aceitar aquilo, tentando com ela subir um pouco mais naquela confusa falta de. Achei um filmaço - tudo que se trança nas relações entre copa, cozinha e a sala dos patrões está ali, dito de uma forma que não poderia ser mais eficaz, simples e complexa ao mesmo tempo.
Então aparece, finalmente, uma ajudante que não tem medo dela, que lhe dá um inesperado abraço, mesmo diante da recusa e do repúdio. Macabéa/Raquel fica atônita, não sabe bem o que é aquilo, nunca tinha sentido o afeto ou a compaixão ou a proximidade do amor assim, de repente e gratuitamente. Há uma cena de choro catártico e as coisas parecem fazer mais sentido para ela a partir de então. Vai tentando costurar as pontas de si mesma naquelas linhas novas: compra uma blusa bonita para si, como a que vê no closet da patroa; e outra, bonita e cara, que dá de presente à nova amiga no aniversário. É tudo muito simples, singelo mesmo o embate que ela trava com a falta de... quase tudo. A atriz é magistral, tem uns olhares absolutamente perfeitos para tudo que quer expressar; tem também um ar de abobada-esperta que faz o sorriso do espectador ficar meio sem jeito ou sem gosto por comprender e aceitar aquilo, tentando com ela subir um pouco mais naquela confusa falta de. Achei um filmaço - tudo que se trança nas relações entre copa, cozinha e a sala dos patrões está ali, dito de uma forma que não poderia ser mais eficaz, simples e complexa ao mesmo tempo.
domingo, 7 de abril de 2013
Dois, talvez : A parte dos anjos; O último Elvis
Estou gostando dessa estratégia de ver dois filmes no mesmo dia, e ter entrado na sala errada do Arteplex para ver O último Elvis e me deparar com as cenas finais de A busca foi ótimo, me fez lembrar as peripécias do FestRio. Saí da sala e vi que tinha ainda bastante tempo pro café e pro pão de queijo. Aliás, o novo espaço do Scada Café ficou muito bom, sempre gostei dali por ser mais discreto e também por causa de um atendente que não vi dessa vez, talvez esteja de férias, que eu chamo em meu afeto de 'pessoa almodóvar' - é uma figura meiga e doce, que parece saída de um filme desse cineasta. Nunca conversamos muito, mas quando era mais assídua ali, tipo uma vez por semana, ele me tratava gentilmente e eu gostava (gosto) muito de vê-lo, tenho um afeto gratuito por ele, gosto de seu ar de diva, de sua postura ao mesmo tempo séria e doce, e do fato de que talvez ele queira ser ela - e isso, por essas plagas, sempre é uma ralação a mais.
No Estação Rio vi, primeiro, A parte dos anjos (Ken Loach), cuja direção já prenunciava o filmaço que é. O protagonista, vivido Paul Branningan, é um sujeito que, tendo tudo pra dar errado em sua vida, faz uma coisa certa: tem um filho, mas não é apenas por conta desse filho que ele torce o destino torto que parecia ser sua cruz eterna. Ele encontra pelo caminho alguns anjos, um deles na figura do oficial responsável por sua condicional, que leva o grupo de problemáticas e engraçadas pessoas a visitar uma destilaria de uísque. A partir daí, o rapaz fadado ao insucesso vai costurando as possibilidades de torcer o destino a seu favor, com inteligência e argúcia. É um filme simples, mas tudo se encaixa com perfeição: os valores, a relação dos maus e do bom policial, as chances que percebe e cuja intuição diz a ele para não deixar escapar. E ele não deixa, embora até nos últimos minutos a mala suerte teime em espreitá-lo, em avançar sobre ele. Ele dá uma volta nela, e achamos ótimo.
Já O último Elvis é um exemplar do que o cinema argentino tem de bom - tocante, forte, expõe uma certa cafonice na figura de um latino que cultua Elvis a ponto de não ter dúvidas de que é Elvis. Sua realidade de cover, no entanto, é dura; sua vida pessoal é cheia de buracos: a ex-mulher o despreza; a filha tem um tanto de vergonha dele; os cachês de suas apresentações não são pagos - e a vida vai seguindo, de fracasso em fracasso, até que um acidente grave deixa a ex-mulher em coma e ele tem de cuidar da filha. Ela aprende a compreender o trabalho do pai, passa a minimamente respeitá-lo e quando isso acontece já está na hora de a filha voltar para a mãe, que ficou bem, afinal. E é hora igualmente dele realizar o sonho de uma vida: fazer a viagem que sempre sonhou, entrar na casa "dele", do Elvis que ele acredita ser, e fechar o ciclo de suas apresentações do mesmo modo que seu "alter-ego". O filme é triste, melancólico, mas quando o ator John McInerny solta a voz para cantar as canções do ídolo, não desgrudamos olhos e ouvidos: ficamos hiptonizados por sua voz e pelas lembranças de um passado que - parece - teima em não querer morrer jamais.
PS: Escrito metade há uma semana, terminado hoje.
No Estação Rio vi, primeiro, A parte dos anjos (Ken Loach), cuja direção já prenunciava o filmaço que é. O protagonista, vivido Paul Branningan, é um sujeito que, tendo tudo pra dar errado em sua vida, faz uma coisa certa: tem um filho, mas não é apenas por conta desse filho que ele torce o destino torto que parecia ser sua cruz eterna. Ele encontra pelo caminho alguns anjos, um deles na figura do oficial responsável por sua condicional, que leva o grupo de problemáticas e engraçadas pessoas a visitar uma destilaria de uísque. A partir daí, o rapaz fadado ao insucesso vai costurando as possibilidades de torcer o destino a seu favor, com inteligência e argúcia. É um filme simples, mas tudo se encaixa com perfeição: os valores, a relação dos maus e do bom policial, as chances que percebe e cuja intuição diz a ele para não deixar escapar. E ele não deixa, embora até nos últimos minutos a mala suerte teime em espreitá-lo, em avançar sobre ele. Ele dá uma volta nela, e achamos ótimo.
Já O último Elvis é um exemplar do que o cinema argentino tem de bom - tocante, forte, expõe uma certa cafonice na figura de um latino que cultua Elvis a ponto de não ter dúvidas de que é Elvis. Sua realidade de cover, no entanto, é dura; sua vida pessoal é cheia de buracos: a ex-mulher o despreza; a filha tem um tanto de vergonha dele; os cachês de suas apresentações não são pagos - e a vida vai seguindo, de fracasso em fracasso, até que um acidente grave deixa a ex-mulher em coma e ele tem de cuidar da filha. Ela aprende a compreender o trabalho do pai, passa a minimamente respeitá-lo e quando isso acontece já está na hora de a filha voltar para a mãe, que ficou bem, afinal. E é hora igualmente dele realizar o sonho de uma vida: fazer a viagem que sempre sonhou, entrar na casa "dele", do Elvis que ele acredita ser, e fechar o ciclo de suas apresentações do mesmo modo que seu "alter-ego". O filme é triste, melancólico, mas quando o ator John McInerny solta a voz para cantar as canções do ídolo, não desgrudamos olhos e ouvidos: ficamos hiptonizados por sua voz e pelas lembranças de um passado que - parece - teima em não querer morrer jamais.
PS: Escrito metade há uma semana, terminado hoje.
segunda-feira, 25 de março de 2013
Sobre artes e seus impactos
Ver dois filmes no mesmo dia, em horários seguidos, e estando com a vida meio enrolada, às vezes dá um samba meio doido.
Pois então, A caça (Thomas Vinterberg) tem aquela força dos filmes sem saída, das situações irremediáveis, em que alguém entra sem sequer imaginar num alçapão e mesmo conseguindo sair, cheio de lanhuras, jamais será o mesmo. O filme é absurdamente bom porque o espectador sabe o tempo todo que aquilo tudo é um pesadelo, e quer contar a todo mundo, quer ajudar, dizer, explicar, mas fica sentado na cadeira, grudado, assistindo à derrocada daquele homem, preso àquela vila - por que ele não vai embora, não larga aquela droga de cidade e de gente, depois que se sabe do relatório da polícia? Porque o buraco é mais embaixo, sempre é: aquele é o lugar dele, aquelas são as pessoas que ele conheceu a vida toda, esse é o seu mundo. Será preciso resolver-se ali - e com eles. E resolvem-se os impasses, as coisas parecem entrar nos eixos. Parecem. Porque, lembra-nos Drummond, 'de tudo fica um pouco'. E o tiro que quase o acerta na caçada entre amigos será esse resíduo imorredouro, mancha indelével com a qual ele terá de conviver vida afora, sem ter qualquer responsabilidade por sua mácula. E o ator, Mads Mikkelsen, não poderia ter feito melhor o seu trabalho - convincente ao extremo em sua aparente dureza.
Já Francisco Brennand (Mariana Brennand Fortes), dirigido pela neta do artista, me parece um documentário necessário, uma espécie de balanço de uma vida dedicada à construção de uma obra. Tudo é obra e tudo é arte na existência desse homem, agora com 86 anos (um ano menos que minha mãe), as mãos trêmulas, mas a voz forte, o pensamento claro e coerente. Há nele uma ponta de vaidade pelo que construiu, o que me parece muitíssimo coerente com a magnitude de sua entrega, e de seu legado. Acho que o trabalho dele é pessoalíssimo, grandiloquente, há um mundo de referências arcaicas, mitologias pessoais e universais que se espraiam em pinturas e esculturas grandiosas, fortes. E há homenagens a poetas, versos e retratos de outros artistas inscritos em murais, colagens, desenhos, roteiros - vida e arte, trançadas e traçadas até o limite. Hermila Guedes narra o filme, mas no final dá um testemunho da força do artista, quando se percebe em sua voz e em seu diálogo com ele uma certa humildade no tom, uma forma de falar diferente da locutora que ouvíramos até então. Isso me pareceu um tributo a mais, uma reverência, talvez. Um: estou diante de:
E aproveitando o mundo criado pelo primeiro filme, observo que esse universo de vilarejo, com suas mazelas características, me lembrou muito A festa de Babette, o livro, não o filme. Há no filme uma atmosfera gótica, um mundo quase fantasmal que cria um interesse forte no espectador - o contraste entre a atmosfera noturna, os personagens em sua velhice espectral numa cidade espectral face à vivacidade do banquete que Babette oferece a eles rende um filme extremamente inquietante, quase bizarro em sua estranha beleza. Já no livro desaparece esse contraste, e fica a linguagem quase clássica de Karen Blixen, sua habilidade para criar uma personagem cuja grandeza reside no contraste entre sua função na casa das irmãs, seu comportamento de humilde serviçal, e sua arte - a percepção aguda de que faz arte, e grande arte, é memorável: "Pobre?, disse Babette. Sorriu para si mesma ao ouvir isso. "Não, nunca vou ser pobre. Já lhes disse que sou uma grande artista. Uma grande artista, madames, nunca é pobre. Temos algo, madames, a respeito do qual as outras pessoas não fazem a menor ideia." (p. 53).
Era isso que se ouvia na voz de Hermila; é disso que se trata com relação a Brennand; foi isso que Mikkelsen me fez igualmente compreender.
Pois então, A caça (Thomas Vinterberg) tem aquela força dos filmes sem saída, das situações irremediáveis, em que alguém entra sem sequer imaginar num alçapão e mesmo conseguindo sair, cheio de lanhuras, jamais será o mesmo. O filme é absurdamente bom porque o espectador sabe o tempo todo que aquilo tudo é um pesadelo, e quer contar a todo mundo, quer ajudar, dizer, explicar, mas fica sentado na cadeira, grudado, assistindo à derrocada daquele homem, preso àquela vila - por que ele não vai embora, não larga aquela droga de cidade e de gente, depois que se sabe do relatório da polícia? Porque o buraco é mais embaixo, sempre é: aquele é o lugar dele, aquelas são as pessoas que ele conheceu a vida toda, esse é o seu mundo. Será preciso resolver-se ali - e com eles. E resolvem-se os impasses, as coisas parecem entrar nos eixos. Parecem. Porque, lembra-nos Drummond, 'de tudo fica um pouco'. E o tiro que quase o acerta na caçada entre amigos será esse resíduo imorredouro, mancha indelével com a qual ele terá de conviver vida afora, sem ter qualquer responsabilidade por sua mácula. E o ator, Mads Mikkelsen, não poderia ter feito melhor o seu trabalho - convincente ao extremo em sua aparente dureza.
Já Francisco Brennand (Mariana Brennand Fortes), dirigido pela neta do artista, me parece um documentário necessário, uma espécie de balanço de uma vida dedicada à construção de uma obra. Tudo é obra e tudo é arte na existência desse homem, agora com 86 anos (um ano menos que minha mãe), as mãos trêmulas, mas a voz forte, o pensamento claro e coerente. Há nele uma ponta de vaidade pelo que construiu, o que me parece muitíssimo coerente com a magnitude de sua entrega, e de seu legado. Acho que o trabalho dele é pessoalíssimo, grandiloquente, há um mundo de referências arcaicas, mitologias pessoais e universais que se espraiam em pinturas e esculturas grandiosas, fortes. E há homenagens a poetas, versos e retratos de outros artistas inscritos em murais, colagens, desenhos, roteiros - vida e arte, trançadas e traçadas até o limite. Hermila Guedes narra o filme, mas no final dá um testemunho da força do artista, quando se percebe em sua voz e em seu diálogo com ele uma certa humildade no tom, uma forma de falar diferente da locutora que ouvíramos até então. Isso me pareceu um tributo a mais, uma reverência, talvez. Um: estou diante de:
E aproveitando o mundo criado pelo primeiro filme, observo que esse universo de vilarejo, com suas mazelas características, me lembrou muito A festa de Babette, o livro, não o filme. Há no filme uma atmosfera gótica, um mundo quase fantasmal que cria um interesse forte no espectador - o contraste entre a atmosfera noturna, os personagens em sua velhice espectral numa cidade espectral face à vivacidade do banquete que Babette oferece a eles rende um filme extremamente inquietante, quase bizarro em sua estranha beleza. Já no livro desaparece esse contraste, e fica a linguagem quase clássica de Karen Blixen, sua habilidade para criar uma personagem cuja grandeza reside no contraste entre sua função na casa das irmãs, seu comportamento de humilde serviçal, e sua arte - a percepção aguda de que faz arte, e grande arte, é memorável: "Pobre?, disse Babette. Sorriu para si mesma ao ouvir isso. "Não, nunca vou ser pobre. Já lhes disse que sou uma grande artista. Uma grande artista, madames, nunca é pobre. Temos algo, madames, a respeito do qual as outras pessoas não fazem a menor ideia." (p. 53).
Era isso que se ouvia na voz de Hermila; é disso que se trata com relação a Brennand; foi isso que Mikkelsen me fez igualmente compreender.
terça-feira, 19 de março de 2013
A busca

Acho que todos nós temos algum tipo de rasura, em algum momento, ao menos, nessa complicada trajetória da relação pai/mãe/filho, dependendo a intensidade dessa fissura na vida de cada um da percepção que se tenha de ter recebido mais ou menos amor na infância.
O belíssimo filme A busca (Luciano Moura) captura de forma terna, lírica, enfática, certeira e emocionante um momento de crise nessa trajetória da relação de um pai, sobretudo, e seu filho.
Trata-se de um filme sobre encontrar o pai, o amor do pai, que parece rompido, numa cadeia que vai do filho Pedro, vivido suavemente por Brás Moreau Leme, passando por Theo Gadelha, no desempenho excepcional de Wagner Moura, ao avô excluído, que quer reintegrar-se à família, vivido pelo talento consagrado de Lima Duarte, na cena que fecha o filme - pequena, forte e emocionante.
O trabalho do Wagner emociona, não apenas porque ele fica o tempo todo na tela, em closes fortes e expressivos, mas sobretudo porque ele nos torna cúmplices dessa vontade de compreender o movimento do filho - para onde foi, o que foi fazer, com quem está, onde está, se está. Refazer o caminho do filho, em sua busca, será também refazer-se, ir topando com o desconhecido e com o inesperado de que a vida é feita, e que ele, Theo, já esquecera. Momentos intensos no rastro do filho (e do filme): o parto que ele faz de uma moça amiga de seu filho, na beira de um rio de águas geladas, num acampamento neo-hippie; a carona que dá a um grupo de jovens indo a uma rave, quando parece relembrar o jovem que foi; a tentativa frustrada de atravessar o rio no bote; reconhecer o desenho do filho na oficina; avistar Pedro andando a cavalo, morro acima, uma das cenas mais bonitas e poéticas do filme - ele, morro acima, tranquilo, como alguém perdido e achado ao mesmo tempo, aquele jeito de menino sério e tenaz. E continua na sequência do pai emparelhar a moto com o cavalo e não ser reconhecido pelo filho. Tudo é bonito, tudo tem força, tudo é intenso e terno para mim.
O final é um achado, e não ligo a mínima que haja um tantinho de pieguice na reunião dos três: pai, filho e neto. Não tem como ser diferente no contexto dessa busca. Parece justo que o filho leve o pai a re-encontrar-se com seu passado, com sua história, com suas raízes - é para isso que existem as crises, as dores, as perdas. Queria muito ter visto os três conversando, tomando café da manhã, olhando uns para os outros. Queria que não terminasse ali. Enfim, tudo muito bom, do começo ao fim.
(E como se não bastasse, já tinha levantado pra sair quando ouço uma canção ao mover dos créditos, na voz portentosamente suave de Arnaldo Antunes. Paro, volto, sento de novo. Ouço. É uma espécie de psiu que ela faz para mim; um sublinhado; um asterisco; umas aspas que ela abre na percepção da história. Diz: 'olhe, veja, escute, preste atenção - sou eu, eu. Me ame do jeito que eu sou, não do jeito que você quer que eu seja'. É perfeita.).
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