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sexta-feira, 10 de maio de 2013

Varilux 2013: Prenda-me; Adeus, minha rainha; A datilógrafa


Prenda-me (Jean Paul Lillienfeld), com Sophie Marceau, Miou-Miou, Marc Barbé. Uma mulher (Sophie Marceau) faz uma malinha, sai de casa, joga anel e relógio na lixeira e se encaminha a uma delegacia de madrugada, para se entregar pelo assassinato do marido ocorrido há dez anos, crime que prescreverá no dia seguinte.

Começa aí um tour de force entre ela, em seu desejo implacável de ser presa por ter empurrado do parapeito da varanda o marido violento, espancador, sádico, que a violentou ao longo desses dez anos, e a policial vivida por Miou-Miou, que se recusa a aceitar a culpa e a prisão dessa mulher. Como se não bastasse, o filho vai crescendo sem o pai e vai-se tornando ele também um sádico, espalhando ano após ano retratos do homem ausente pela casa, até cobrir quase todo o espaço com a memória - eu diria - do mal.

Fiquei muito irritada a maior parte do tempo, sem paciência com aquela determinação e sem entender por que uma pessoa fica tão doente, mas tão doente que aceita passivamente ser espancada e ainda por cima conviver por longos anos com uma culpa indevida, porque ela não matou o marido, já que, primeiro, apenas encostou no infeliz e ele caiu quase sozinho, porque estava bêbado; segundo, foi legítima defesa, porque o monstro a estava espancando. Então, torcia pra que a policial vencesse aquela arengação de uma vez por todas. E ela vence, finalmente.

A mulher sai já de manhã, derrotada, mas livre. Só que de repente a policial aparece à porta da delegacia e diz a frase fatal: que pode fazer o boletim de ocorrência com data de ontem, antes da prescrição do crime, que ela pode ser presa ainda, se quiser. A mulher volta, é presa e na cena seguinte e última ela está atrás das grades tendo uma conversa muito importante e esclarecedora com o filho. Nessa conversa entendemos por que ela queria tanto ser presa. Ela realmente precisava desse ato libertador - por paradoxal que seja - porque foi o único pela qual assumiu inteira responsabilidade: ter matado o marido deu sentido aos anos todos de tortura a que fora submetida - ela havia feito alguma coisa a respeito: ela o havia matado. Pena que somente na cena final o espectador sinta-se, finalmente, livre daquele peso.

Adeus, minha rainha (Benoît Jacquot), com Léa Seydoux, Diane Kruger, Virginie Ledoyen. Uma história dos bastidores nos momentos finais da Queda da Bastilha, passada no palácio de Versalhes, mas já nos finalmentes e pelo ângulo basicamente dos serviçais da corte. No caso, a leitora de Maria Antonieta, Sidonie, vivida pela linda e ótima Léa Seydoux, apaixonada por sua ama; a paixão de Antonieta por outra mulher, Gabrielle de Pontiac, uma nobre jovem e bela, que será instada a fugir da França pela própria rainha, já que sua cabeça é a segunda na lista dos que serão enforcados pelos revolucionários.

O filme vai pontuando muito mais os esforços da rainha para proteger sua amada e as nuances do devotamento de sua serva, que culmina com a fuga do país disfarçada com as roupas da amante de Antonieta, Gabrielle. Ao reconhecer-se longe daquela a quem serviu com desvelo e amor, Sidonie vê-se sem identidade, sem saber quem é a partir de então. Achei meio excessivo no tempo, mas interessante.

A datilógrafa (Régis Roinsard), com Roman Duris, Déborah François, Bérénice Béjot. Trata-se de um filme mergulhado nos valores e na cultura da passagem dos anos sessenta para o início dos setenta, e nisso vi o interesse maior, apesar de que poderia ser enxugado, não precisava tanto tempo para contar uma história relativamente boba.

A comédia versa sobre uma secretária meio desastrada, excelente datilógrafa, muito rápida nos teclados, que se apaixona pelo jovem patrão, um esportista fracassado, que decide treiná-la para ser campeã mundial do concurso de datilografia (sim, isso existia, e talvez exista ainda na terra das competições). Ela vai vencendo as etapas até chegar à final nos EUA. Ele será convencido de que com amor ela não terá a dureza necessária para ganhar o campeonato, e parte. Ela continuará sozinha sua maratona. No final... bom, o óbvio acontece, claro.
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Talvez não caiba aqui uma sessão nostalgia, mas reconheço inteiramente aquela moça, sou de um tempo em que uma menina pobre aprendia, ao invés do tricô e crochê do tempo da mãe, a datilografia e a estenografia, instrumentos necessários para tentar entrar no mercado de trabalho. Fiz ambos os cursos, embora nunca tenha conseguido usar os caracteres estenográficos. Mas foi o inglês do Ibeu (com bolsa) o fundamental para meu futuro profissional .Ah, e também fiz tricô bem, e bordei.  O filme me fez habitar esse espaço da memória por algum tempo - breve como poeira leve.

quarta-feira, 8 de maio de 2013

Varilux 2013: Aconteceu em Saint-Tropez; Pedalando com Molière

Hoje vi Aconteceu em Saint-Tropez (Danièle Thompson) e Pedalando com Molière (Philippe Le Guay). O segundo acho que chega perto de uma obra-prima, não sei.

O primeiro é uma delícia de 'comédia de erros', imbroglios mil acontecem entre os membros de uma família, cujos 'personagens' são muito peculiares: dois irmãos, com suas mulheres e filhas, opostos um do outro em temperamentos e profissões; duas primas, filhas deles, que se amam como irmãs; a mulher do empresário de diamantes, vivida pela linda e ótima Monica Belluci; a mulher do músico erudito (Kad Merad), que morre logo no início da trama atropelada quando vai comprar um sanduíche de pastrami para o marido, ao final de um concerto. Essa morte ocasiona uma série de desdobramentos na história, quase todos tragicômicos. Por exemplo, o cadáver, por uma série de acontecimentos engraçados, será velado na casa do irmão rico (Eric Elmonisno, muito bom) onde está também acontecendo o casamento da filha dele. Há muitos fios unindo essa família de loucos engraçadíssimos, sobretudo o avô meio senil (Ivry Gitlis), meio escrachado que, como quase todos os velhos experientes, tem noção de que os filhos já o vêem morto a qualquer hora. O final é muito bonitinho, mas totalmente improvável, mesmo numa família daquele calibre, dadas as humanas condições ainda vigentes.

O segundo é basicamente um tour de force esplêndido entre dois atores magistrais: Fabrice Luchini e Lambert Wilson, cujo mote será a encenação da peça O misantropo, de Molière.

Luchini faz um ator, Serge Tanneur, que se retirou do mundo teatral, decepcionado com sua falsidade e hipocrisia, e exilou-se numa pequena cidade da França, Île de Ré, chuvosa e fria na ocasião. Ele será visitado pelo antigo amigo Gauthier, um famoso ator de seriado televisivo, aclamado pelo público e reconhecido por onde vai. Ele visita o antigo colega e o convida para encenar com ele a peça de Molière. Todo (ou quase todo) o filme será então o ensaio feito por esse dois atores, ao longo de cinco dias, ao fim dos quais Tanneur decidirá se volta ou não aos palcos.

O que me pareceu espantosamente bom, ao longo de quase duas horas de filme, foi o entrosamenteo entre os dois atores, a destreza com que eles falam "os versos" da peça de Molière, bem como a vivacidade com que a realidade de cada um vai preenchendo as falas de seus personagehs, sejam eles Alceste ou Philinte (cujos papeis revezam), ou melhor, como cada personagem vai-se infiltrando na postura de cada um deles.

Há uma espécie de guerra entre os dois, não apenas de egos, mas de talentos - tanto no palco do teatro que fingem, quanto no 'palco' da tela. Ao final - li que o Lambert Wilson não gostou do desfecho escolhido - fica-se sem saber se o personagem de Luchini incorporou de vez o misantropo da peça que ensaiava, ou se o ensaio serviu para que o misantropo que ele efetivamente era fizesse afinal sua morada definitiva naquele ser. Acho viáveis as duas possibilidades. Mesmo vê-lo encarando o horizonte sem fim, numa praia deserta de gente ou de bicho, e recitando seu ódio à humanidade, deixa no espectador um gosto de: bem feito, quem mandou ser tão maldoso? Ou: Nossa, ninguém nunca foi tão só no mundo.

Varilux 2013: Além do arco-íris; Uma dama em Paris

Mais dois filmes ótimos vistos ontem - Além do arco-íris (Agnès Jaoul) e Uma dama em Paris (Ilmar Raag).

O primeiro é uma história que retoma o conto de fadas às avessas. Dirigida pela mesma atriz que faz a mãe de uma das meninas em Feito gente grande, Agnès Jaoul, que também trabalha no filme como uma atriz que produz peças infantis, usando em seu trabalho a varinha mágica dos contos maravilhosos que, de algum modo, fará a narrativa funcionar.
Na trama, uma jovem apaixona-se à primeira vista por um jovem músico, cujo pai trata-o com frieza e distância, é muito racional e a quem uma cartomante há anos previra a morte para muito em breve. Há também um crítico de arte, muito rigoroso e respeitado, que um dia vem a conhecer o jovem músico e aprecia muito suas composições, sugerindo que o grande Horowitz poderá tocar seu último concerto. Esse mesmo crítico vem a conhecer a jovem apaixonada pelo músico, numa situação em que ela está perdida em uma bifurcação da floresta e ele sugere-lhe um desafio sobre o caminho a tomar, dependendo de ela ser pragmática ou romântica. O filme, então, aproxima todos esses personagens por algum viés, seja ele do amor, do trabalho, da descoberta, da solidariedade ou do medo. Ao final, o que parecia ser de um jeito, acaba se transformando em outra coisa. Muito interessante, sobretudo a dureza com que a mocinha acaba descobrindo que o caminho romântico desejado não corresponde exatamente à realidade, conforme o tapa que recebe do ex-amante pra acordar de um porre. O filme segura o espectador em todas as situações, e a Jaoul sobressai em cena por conta da intensidade do olhar, sobretudo, e da rapidez na expressão verbal - certos tiques de linguagem permanecem conosco ainda depois (não sei repetir porque são sons, não palavras, ou parecem).

Uma dama em Paris seria talvez o menos dinâmico do conjunto, acho que porque as ações basicamente acontecem dentro do apartamento onde mora Frida, a estoniana que vive há muitos anos em Paris e parece ter tido uma vida cheia de aventuras e liberdade sexual, razão por que seus compatriotas próximos a detestam. Hoje ela é uma mulher idosa muito solitária, muito enfezada e muito rebelde, que se recusa a aceitar ajuda da cuidadora, chamada pelo ex-amante porque ela já tentara se matar. O papel é vivido por uma decadente e perfeita Jeanne Moreau. Perfeita porque o papel é mesmo o de uma mulher que já foi muito livre e encontra-se hoje em decadência física, embora brigando contra isso. A Moreau segura o papel, com seu talento e aquelas roupas lindas e elegantes, mas conta muito também a atriz Laine Mäge, que faz a cuidadora, muito boa. Ela também tem a função de flanar por Paris e assim nos mostrar alguns encantos da cidade - mas não há um olhar turístico nela, há o olhar de quem veio para ficar, ou seja, é comedido, não é deslumbrado. No final, a velha dama tem a atitude mais acertada para todos, e resume uma das facetas mais interessantes não apenas de sua personalidade - a liberdade -, mas igualmente um dos traços culturais com que são identificados os franceses: não há como ser fiel ou monogâmico no amor.

segunda-feira, 6 de maio de 2013

Varilux 2013: Camille Claudel 1915; Anos incríveis; Os sabores do palácio; Feito gente grande

Nem percebi e já estamos de novo compartilhando filmes ótimos nesse Festival. Gosto de ouvir a língua francesa, de observar como essa cultura tem aspectos interessantes, insights bem diferentes das mega produções com recursos tecnológicos de última geração, a que estamos acostumados no cinemão - de que gosto também, diga-se de passagem. Mas é bom poder partilhar esse outro universo mental, cheio de delicadezas e de outras energias. Há senões também, claro, e pelo menos dois filmes franceses recentes, do Festival ou não, me irritaram um pouco por seu viés meio excessivo no culto às divas - ou assim compreendi.

Vi quatro filmes até agora. O primeiro, Camille Claudel 1915, já comentei aí embaixo.

Anos incríveis (Michel Leclerc) é uma comédia divertida sobre um grupo de amigos anarquistas que cria um canal de TV com fins revolucionários. A graça do filme está na tarefa quixotesca desses jovens meio radicais, meio à margem, de vencer o sistema a partir de esquetes quase mambembes, e nas tentativas de furar o bloqueio do principal canal aberto. Tudo é um tanto gauche, esmolambado, mas o humor está exatamente nesse descompasso entre as regras vigentes da cultura de massa e a enorme pretensão, tão própria aos jovens, de mudar tudo com tão poucos recursos. Emmanuelle Béart faz uma apresentadora daquele tipo de programa apelativo e sensacionalista, e parece mesmo fisicamente decadente, combinando à perfeição com seu personagem.

Os sabores do palácio (Christian Vincent), com Catherine Frot vivendo uma cozinheira cheia de charme, vigor e personalidade, traz vários presentes ao espectador, todos  relacionados ao preparo com esmero de pratos arrasadores - sim, a horas tantas parece até covardia, e claro que dá vontade de comer todas aquelas maravilhas, produzidas pela talentosa artista. Acho que há um pequeno parentesco com A festa de Babette, nesse lugar único em que a cultura francesa se diferencia, ou seja, na reverência absoluta com que compreende e atualiza a gastronomia como forma de arte. E também uma sutil notação sobre as consequências dessa cozinha para os mortais corpos que não estejam em ótimo estado: os médicos impõem restrições aos alimentos que o Presidente poderá consumir a partir de um certo momento. E assim, há também curvas na estrada de Hortense, não é um filme polarizado apenas na cozinha, embora ela seja seu foco e seu dínamo. As razões pelas quais ela está agora, no tempo presente, cozinhando prum bando de marmanjos numa estação gélida da Antártica vai-se revelando aos poucos, enquanto conhecemos sua interessante história, apresentada em flash back.

Feito gente grande (Carine Tardieu), com Agnès Jaoul, Denis Podalydès, Isabelle Carré é um filmaço com duas crianças estupendas, não apenas duas atrizes ótimas, mas duas personagens inesquecíveis. O filme é delicado e belo, ao mesmo tempo que as duas meninas arrasam com seu humor um tanto escatológico. Há solidão, alegrias, fantasmas difíceis de lidar, incompreensões, sofrimentos - é como se o diretor filmasse abaixado, na mesma altura das meninas, olhando com elas os sentimentos mais fortes, os baques, as faltas, as dúvidas, a presença constante da morte, sempre na perspectiva delas, com sua imprecisão, mas também com sua energia enorme em direção inelutável à vida - sempre mais vida, mesmo quando a grande dama passa entre elas. É muito bonito, muito terno, muito alegre e triste também. Ou seja, um ótimo filme, e ainda tem a Isabella Rossellini fazendo uma terapeuta na medida perfeita. Bom demais.