A GATINHA ESQUISITA (Das Merkwurdige Katzchen, Alemanha, 2013. Dir:Ramon Zurcher Com:Leon Alan Bewiersdorf, Lea Draeger)
Obra prima inconteste – o diretor filmou, do começo ao fim, todo o
universo existencial, psicológico e filosófico das obras literárias de Clarice
Lispector, a escritora brasileira que fotografa com a palavra cada milímetro
das sensações que perpassam o cotidiano das relações entre as pessoas e o
mundo, os objetos familiares, os pequenos acontecimentos, seja ele olhar nos
olhos de um búfalo no zoológico, seja o esvoaçar de uma pena no ar, ou o
cruzamento fortuito de alguém no bonde com o olhar de um cego. Todos os contos
de Laços de família estão aqui; todo
o clima de A paixão segundo GH está
aqui, até mesmo cenas que se lêem em Clarice estão filmadas como se transpostas
para a tela – e isso independe de o diretor conhecer ou não a obra da autora
brasileira, porque é um modo de estar no mundo que os aproxima, flagrantes da
existência cotidiana que em ambos adquirem estatuto de obra de arte – sob a
palavra, uma; sob as imagens, outro.
Essa é a primeira vez que vejo
na tela uma obra literária em sua perfeita forma, ou seja, um filme feito de sopros, de sensações e
observações intensas sobre o mínimo, os
objetos comuns, as situações cujos significados residem nas impressões que
causam, expressas por pequenas, contínuas e intensas epifanias, como se o cotidiano fosse pleno de riquezas, de
sentidos que nos oprimem e nos excitam, como se a vida fosse esse diuturno
brilho do singular e do comum, do banal, de onde se extraem as pepitas, o que
comove, o que existe, o que pasma simplesmente por estar vivo, e pulsar e
existir para nossos olhos.
Há cenas antológicas, como a da mulher que faz a mãe e tem uma relação
difícil com o gato, e coloca o pé sobre o bichano, no vão da porta,
aproximando-o lentamente do animal, como se fora esmagá-lo – dura um átimo e
uma eternidade, porque ali estão resumidos todos os nossos desejos ancestrais
de um dia ter esmigalhado um gato, um besouro, uma mosca, um inseto, um tudo;
ou quando essa mesma mulher-mãe toma o leite onde há um pelo do gato, já quase
no final do filme e da refeição com os amigos – ele toma o leite, e essa cena
tem o mesmo sentido de comer a barata n’A
paixão – uma redenção, talvez, em meio à culpa de que não se sabe bem o
motivo, mas que está lá, sempre premente, e presente.
Há quase todo o tempo, igualmente, frases brilhantes, interessantíssimas,
muitas vezes emoldurando uma situação comum, como quando a menina pergunta
sobre os lóbulos dos pulmões:
_ Que são lóbulos?
_ São as asas dos pulmões. Para que voem, quando necessário.
Ou quando uma das filhas está olhando pela janela, provavelmente vendo
lá fora o cão da casa, e observa para o rapaz, que parece ser o marido, ou
namorado:
_ Não queria ser um cão preto no verão.
_ Ainda não é verão.
_ Queria ser um no outono?
_ Aí, sim.
CRIANÇA DE DEUS (Child Of God, James Franco, 2013). Com Scott Haze, James Franco, Jim Parrack, Tim Blake Nelson
O filme é muito bom, na verdade um tour de force do ator Scott Haze, que leva o filme inteiro em sua interpretação brutal, na pele de um homem que perdeu o pai aos dez anos e, vivendo a esmo e no ermo da cidadezinha, vai-se tornando cada vez menos um homem, e cada vez mais um sujeito doente de solidão, que o leva aos poucos a uma forma de loucura, mas com um sentido agudo de sobrevivência, buscando descobrir como sair das situações difíceis que aquela sua existência comporta. A partir de um certo momento, esse estado esgarça-se, e ele se aproxima de práticas mais bestiais, e será desse lugar, em que todos os sentidos retesam-se para garantir a sobrevivência, que ele se vê um quase selvagem, matando a sangue frio para manter sua recém descoberta possibilidade amorosa: a necrofilia.
O filme é muito bom, na verdade um tour de force do ator Scott Haze, que leva o filme inteiro em sua interpretação brutal, na pele de um homem que perdeu o pai aos dez anos e, vivendo a esmo e no ermo da cidadezinha, vai-se tornando cada vez menos um homem, e cada vez mais um sujeito doente de solidão, que o leva aos poucos a uma forma de loucura, mas com um sentido agudo de sobrevivência, buscando descobrir como sair das situações difíceis que aquela sua existência comporta. A partir de um certo momento, esse estado esgarça-se, e ele se aproxima de práticas mais bestiais, e será desse lugar, em que todos os sentidos retesam-se para garantir a sobrevivência, que ele se vê um quase selvagem, matando a sangue frio para manter sua recém descoberta possibilidade amorosa: a necrofilia.
O modo como o diretor James Franco apresenta sua história não permite ao espectador julgar as ações desse (quase) homem de um ponto de vista das normas sociais – ele é acompanhado pela câmera, pulando e caçando, evacuando e matando um bicho aqui e ali para alimentar-se, de modo que quando ele mata um homem quase sem pensar, e depois a mulher, não há aparentemente nenhuma mudança brusca – o pássaro morto mata sua fome de comida; a mulher morta mata sua fome de sexo e de amor. Assim, acompanhamos sua descida na escala humana, em direção ao seu estado mais duro e mais brutal, ao mesmo tempo em que vai descendo para o mais fundo da caverna, achando os buracos onde se abrigar e guardar o que ama - a mulher, os bichos de pelúcia. Mas perder é de sua natureza de ser híbrido - entre bicho e gente, então ele perde o braço. Mas não a vida. Essa segue a trilha dentro das pedras, por um caminho que só os íntimos da natureza conhecem, e ergue-se por fim em meio a uma campina vasta – essa cena final, em que ele corre e grunhe de alegria, mostra um ser que caminha para um lugar indecidível na escala humana.
Um grande filme, em que se percebe como Franco foi certeiro ao deixar seu ator agir, e filmá-lo quase como o documentário de uma loucura anunciada. E sem esse ator, sem essa entrega absurda e visceral do ator ao personagem, não haveria o filme sobre a gestação de uma insanidade, passo a passo. Muito bom, e muito terrível.
A SALVAÇÃO (Kristian Levring, 2014). Com: Mads Mikkelsen, Eva Green, Jeffey Dean Morgan, Eric Cantona.
É um ótimo faroeste, clássico, dos bons, com o talento de Mads Mikkelsen, com aquela expressão dura e concentrada, e a incrível interpretação de Eva Green no papel de uma mulher muda (porque lhe cortaram a língua), mas que fala pelos olhos mais do que elenco todo, fiquei impressionada com a força dela, mesmo já a conhecendo de alguns episódios em Penny Dreadful. Ela está soberba, sem falar, e quase sem piscar, puro ódio concentrado - muito bom.
ACEITA CARTÃO? (Julian Gilbey, 2014). Ed Speleer, Will Poulter.
Achei mediano, dá pra ver se não houver grandes expectativas - filme de trambiqueiros, como já vimos tantos produzidos pela matriz norte americana, e só o sotaque britânico não o diferencia deles, mas soa bem aos ouvidos, porque gosto do sotaque
PASSO EM FALSO (Starred Up, Reino Unido, 2013. Dir:David Mackenzie Com:Jack O’Connel, Rupert Friend)
Embora pertença a um gênero em que a violência comanda, e eu quase nunca me encontre num filme onde a testosterona dita quase tudo, gostei desse porque os dois personagens, pai e filho, se estraçalham ao mesmo tempo por ser o que são, e por desejarem ser diferentes, ou seja, a violência que os constitui é uma parede, por onde passam, a fórceps, a memória de um desejo de afeto, de amor, de família. Achei bruto tudo, mas muito emocionante o esforço desses homens para se encontrarem em algum lugar no mundo dos afetos. Muito intenso.
A MOÇA DA BICICLETA (Girl On A Bicycle. EUA/Alemanha, 2013. Dir:Jeremy Leven Com:Louise Manot, Vincenzo Amato)
Vi esse filme e amei. Uma comédia romântica super agradável, com cenas simples, às vezes engraçadas, tudo correto e fácil e bom. Num final de domingo, é um presente.
SOBRE AQUELE NOSSO VERÃO (Very Good Girls, EUA, 2013. Dir:Naomi Forner Com: Elisabeth Olsen, Dakota Fanning) NOTA 6,5
Dakota com a mesma expressão trágica excessivamente dura, por querelas de amor juvenil, nada a acrescentar, a não ser as cenas de rebelião das jovens que agora acontecem quando tiram a roupa toda e nadam nuas, ou tiram a blusa e ficam de sutiã e calcinhas quando fazem as pazes. Uau!
COERÊNCIA (Coherence, EUA, 2013. Dir:James Ward Byrkit Com:Emily Baldoni, Maury Sterling, Nicholas Brendon)
Filme em que se pode ficar até o fim dos tempos tentando entender as teorias da física que lhe dão suporte; outro tanto para entender os acontecimentos do próprio filme. Mas nada disso tira o interesse dessa ficção científica, que nos deixa grudados na cadeira até sua última cena – quando concluímos a compreensão por um: como?
ENCONTROS, DESENCONTROS, REENCONTROS (Une Rencontre, França, 2014. Dir:Lisa Azuelos Com: Sophie Marceau, François Cluzet, Lisa Azuelos)
Uma história de amor clássica, com todos os ingredientes para fazer o espectador feliz: um casal de protagonistas belíssimo, ótimos atores, uma história de amor impossível e atração irresistível por outra mulher, e a decisão final dele de não trair o casamento, a despeito da paixão e fascínio intensos. Muito bom, e bem feito.
LUA DE MEL (Honeymoon, EUA, 2014. Dir:Leigh Janiak Com:Rose Leslie, Harry Treadaway)
Filme B de terror, quase todo tempo psicológico, e meio bobo, sobretudo o rapaz, que chega a constranger pela falta de entendimento do que está acontecendo. Fiquei olhando até o fim, mas até os sessenta minutos somos cozinhados em banho maria naquela situação, que pressentimos qual seja, menos o rapaz, claro, até que nos minutos finais a mulher finalmente... Bem, a gente vê, mas achei muito sem graça. Pode ser que a exibição ruim do online tenha prejudicado o filme, já que o escuro de várias cenas (para contrapor à tal luz etc) ficou quase invisível algumas vezes. De todo modo, achei muito distante de Coherence.