
Onze semanas, de Ernani Lemos (Portugal, Chiado Editora, 2015), é um romance sobre a difícil relação entre Claudia e sua filha Meg, que se encontram no momento final da vida da mãe, por conta de uma doença, e a quem a filha jamais perdoou o abandono.
No leito do hospital, vamos acompanhar essa difícil reaproximação entre as duas, a partir de pequenos relatos de Claudia, movidos a emoção e dor, feitos a partir de pedaços de um diário que ela escreveu exatamente para tentar explicar à filha o que estava na base daquele abandono, que segredos envolveram suas escolhas, suas decisões de afastá-la de si por duas vezes, o que praticamente inviabilizou a vida afetiva da filha, que carrega o forte sentimento de rejeição desde sempre, e a sensação de que o amor só pode machucar.
O pacto narrativo organiza-se em torno de um mistério, e esse mistério envolve mãe e filha - já aí temos uma linha de interesse tanto universal, quanto particular: relações familiares conflituosas estão na base das grandes tragédias, de que Édipo seria um dos fortes paradigmas; mais ainda, o mistério promete ser desvendado a partir de uma voz narrativa, a da mãe, que está à beira da morte, vítima de um câncer terminal, o que de imediato deflagra a cumplicidade de mulheres, mães ou não, porque todos nós somos filhos de uma mulher, e sendo filha/filho, há conflito, e a história desde já nos pertence; além disso, o recurso que a mãe utiliza para ir esclarecendo aos poucos os segredos que a filha busca sobre a mãe, sobre seu abandono e, logo, sobre o vazio que constituiu desde sempre sua vida, sua história - esse recurso é ir entregando aos poucos páginas de um diário que ela escreveu, caso um dia a filha viesse procurá-la.
Esse diário "aos pedaços", como a história de ambas as personagens, cria no leitor uma curiosidade crescente por seu desenrolar, e o que ele relata é motivo de conversas entre mãe e filha, de forma que o passado caminha unido ao presente ao longo da leitura do romance, e vai ficando cada vez mais difícil para o leitor abandonar aquela busca, agora de ambas, por um ponto em comum, ou seja, para a descoberta que fazem uma da outra, e do que as separou.
Sim, claro, temos aí vários elementos para uma história que facilmente escorregaria para o piegas, mas essa é uma das ótimas qualidades do romance: muito raramente ocorre um ou outro deslize nesse campo. Via de regra, o que se impõe é uma história muitíssimo bem contada, e muito bem construída, utilizando técnicas narrativas bem exploradas, que levam o leitor ao passado e ao presente, cada vez mais ansioso para ver unidas essas duas pontas do tempo, e essas duas vidas, de que já somos cúmplices, torcemos pelo encontro e, por que não, pela redenção de uma, e o perdão da outra.
Os núcleos narrativos giram em torno, pois, da saga dessa família, composta por Claudia, a mãe; Paul, com quem ela se casa aos 14 anos, já grávida de Meg; Eric, o segundo filho, e um dos polos de afeto de Meg; Sandra, a tia com quem Meg vive alguns anos, e referência de amor materno para ela - todos os personagens imbricam-se nessa falta constituinte da personagem-filha que, de certa forma, conduz a narrativa em torno das perguntas cruciais, dos sentimentos de raiva e ressentimento contra o que ela vê como negligência da mãe - e o vazio inexorável que tais sentimentos produziram nela.
O autor vai nos aproximando aos poucos da história que Claudia vai reconstituindo para a filha, e vemos os personagens mudar, crescer, interagir, tentando entender os segredos, os dramas, as dores, os encontros possíveis e impossíveis, no presente e passado, ao mesmo tempo que as perspectivas de ambas a respeito das situações vão sendo desenoveladas lentamente, de modo que a partir de um certo momento estamos capturados, não há mais como sair daquele mundo narrativo e emocional até que a última página do diário seja lido, a frase que contém o segredo seja escrita e compartilhada, e o mundo possa começar a fazer sentido, enfim, para Meg - e para nós.
O final talvez seja o possível para o momento da personagem, e o mais adequado para a economia do romance, mas ele nos deixa também uma brecha para acreditar que o poodle Azul venha um dia a conviver com o Fred, e torcemos para que isso venha a ocorrer. Afinal, Meg já faz parte de nossa família - a família escolhida.