Li o Ensaio sobre a cegueira e observo que esse é um caso único em minha experiência com a literatura de um livro ser indicado por um post, que por sua vez existe em função de um filme - tudo isso vem do blog do Meirelles, o diário da filmagem de Blindness, pelo qual estou/estamos, seus leitores, apaixonados. Achei no início que o blog pudesse ganhar do livro, mas estava cega, claro. São coisas diferentes e cada um com seu cada qual.
O blog do Meirelles é precioso e o livro do Saramago é muito bom, o problema é que não consigo agora pensar nas cenas do livro sem ver a Julianne Moore fazendo a mulher do médico, o Mark Rufallo como o médico, fingindo de cego e conversando com o Meirelles, o Danny Glover como o velho da venda preta e por aí vai (só não imagino ainda o cão das lágrimas, mas vi nele meu antigo cachorro de relance). Além disso, entrei na paranóia de que ele não vai conseguir filmar aquilo, é muita loucura junta, muita craca, muida dor, muita sujeira e muito desalento e esses atores são marcados demais para fazer o 'qualquer um' que os caracteriza no livro. Enfim, vamos confiar que quem descreve tão bem seu ofício, além de escrever como o faz o Meirelles, vai nos dar o melhor filme para obra tão singular.
Outra coisa que tem me acontecido depois que li o livro é que fico esperando que os pobres que me cercam e que vivem próximos a minha rua surjam de repente como uma leva incontida de cegos e famintos e desvalidos, andando a ermo pra lá e pra cá, sem rumo ou direção, sem norte, sem nada. Fico agora mais assustada, tenho imagens agora muito fortes e firmes sobre o que seria o apocalipse.
Se é verdade que nenhum leitor fica o mesmo depois que é tocado por um grande e forte livro, essa obra do Saramago tem poderes assombrosos, no duplo sentido de ser uma estória extraordinária com uma prosa literária à altura.
Tem defeitos o livro? Sim, tem. No começo achava mesmo que não ia decolar, que o viés de parábola enfraquecia a obra, e há momentos em que uma certa repetição de cenas (quando as normas no manicômio são anunciadas, por exemplo) ou quando o narrador se empolga com alguma idéia filosófica e a desenvolve além da conta, a obra se enfraquece em alguns momentos. Além de que impliquei um pouco com o gesto político do autor de manter a grafia e a sintaxe do português de Portugal, e daí tudo que penso sobre o livro, penso com sotaque lusitano, mas agora tudo bem, não ligo mais.
De todo modo, à medida que se avança na leitura, o viés dramático se adensa e somos inteiramente subjugados pela força avassaladora das imagens, dos personagens, das cenas. Não há como não vagar com aqueles homens e mulheres, não há como não se irmanar, não há como não chorar por eles e com eles, não há como não cegar com cada um e torcer para que o mistério dessa cegueira se aclare para que possamos, nós também, enxergar enfim.
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