
Por exemplo, comentando com sua mulher Clara (as cartas são dirigidas a ela, de quem ele vive separado mas com quem mantém laços de afeto e cumplicidade) sobre um conjunto de reproduções de Van Gogh que uma conhecida havia trazido de Amsterdã (cerca de 40), ele observa a pequena nota biográfica junto ao índice das telas, um modelo de síntese, a partir do qual ficamos sabendo que Van Gogh fora
"Marchand, e quando de algum modo, depois de três anos, compreendeu que não era nada disso, modesto professor escolar na Inglaterra.
Depois a decisão: tornar-se religioso. Vai para Bruxelas, a fim de aprender grego e latim. Mas para que o desvio? Não há, em algum lugar, homens que não exijam nem grego nem latim de seus oradores? Assim ele se torna o que chamamos de evangelista, e vai para a região do carvão, narrando o evangelho para as pessoas. Enquanto narra, começa a desenhar. E, por fim, nem mesmo percebe como se cala e apenas continua desenhando. E desde então ele não faz mais nada, até a sua última hora, até que decida parar com tudo, talvez porque não tivesse podido pintar por semanas; parece-lhe natural desistir de tudo, principalmente da vida". [p.38]
Sobre o trabalho, simplesmente, que precisa ser feito, Rilke observa:
Sinto o mesmo que Van Gogh em certo ponto deve ter sentido, e este sentimento é intenso e grande: que tudo ainda está por fazer: tudo. [...] Van Gogh podia fazer um Interieur d'Hôspital e pintava, nos dias mais inquietos, os mais inquietos objetos. Como, senão assim, ele teria suportado? Temos de chegar a esse ponto e, eu bem o sinto, não por obrigação. Pelo discernimento, pelo prazer, pelo não-poder-adiar, considerando o quanto está por fazer. [p.40]
E este insight:
Vivemos tão mal porque chegamos sempre inacabados ao presente, incapazes e dispersos em tudo. [p.31]
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Rainer Maria Rilke. Cartas sobre Cézanne. Tradução e prefácio Pedro Sussekind. Rio de Janeiro: 7Letras, 2006.