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terça-feira, 20 de novembro de 2007

Reparação

Reparação, do Ian McEwan,é um romance extraordinário. Quando, não há muito, tivemos decretado o fim das grandes narrativas, sejam históricas ou ficcionais, o autor retoma o fio da meada da grande tradição do romance moderno e escreve uma saga contada pela perspectiva de três narradores distintos, que vivenciam o mesmo acontecimento fundador e desestabilizador, cujos desdobramentos sobre a vida de cada personagem serão a matéria do que se vai ler.
O homem escreve que é um escândalo, e acho que ele realmente toma a Virginia Woolf como fonte e modelo de seu estilo, e o diz explicitamente ao longo da narrativa em dois momentos: por ocasião de uma reflexão de Briony acerca do novo texto que havia escrito e quando ela recebe uma longa carta da editora justificando por que seu texto estava sendo rejeitado:

"Ah, se ela pudesse reproduzir a luz límpida de uma manhã de verão, as sensações de uma criança olhando por uma janela, a curva e a descida do vôo de uma andorinha sobre a lagoa! O romance do futuro seria totalmente diferente dos que existiram no passado. Briony tinha lido As ondas de Virginia Woof três vezes, e achava que uma grande transformação estava ocorrendo na própria natureza humana; apenas a ficção, um novo tipo de ficção, poderia captar a essência dessa mudança." (p. 336);

"Algo de singular e inexplicado é apreendido. No entanto, por vezes nos pareceu haver uma presença um pouco excessiva das técnicas de Virginia Woolf. O momento presente cristalino em si é, sem dúvida, um tema merecedor, especialmente no caso da poesia; ele permite que o escritor exiba seu talento, mergulhe nos mistérios da percepção, apresente uma versão estilizada dos processos de pensamento, permite a exploração das circunstâncias imprevisíveis do seu íntimo etc. Quem haverá de questionar a validade dessa experimentação? Porém esse tipo de prosa pode resvalar no preciosismo quando falta um movimento para frente. Em outras palavras, nossa atenção teria sido cativada ainda mais se houvesse uma correnteza subjacente de simples narrativa. É preciso haver um desenvolvimento." (p. 373).

Com fina ironia, McEwan rende o tributo incontornável a Woolf, mas diz também onde ancorar seu traço pessoal e particular: na narrativa, no plot, na história a ser contada, porque é preciso contar uma história e isso o autor faz de forma magistral, além de criar personagens inesquecíveis. Quando Briony comete afinal seu crime, eu me alinhei imediatamente ao lado dos que jamais a perdoarão, como Cecilia e Robbie, mesmo conhecendo que a ignomínia é um traço humano, demasiado humano, ao longo da vida de qualquer um, e mesmo tendo compreendido todas as nuanças de seu temperamento: a difícil passagem da infância à puberdade; a inveja (mesmo que intangível) do amor da irmã; a exacerbação da vaidade daquele que cria, sobretudo daquele que escreve; a extrema sensibilidade, aguçada pelos excessos permitidos à filha caçula, enfim, Briony é uma personagem complexa e rica em sutilezas, o que impede que sua ação seja lida maniqueisticamente, ou as ações de quaisquer outros personagens, mas nem por isso a reparação me parece possível, ou a cooptação do leitor. Acho que nem mesmo ela pede isso, e o romance se escreve face a essa impossibilidade.

Quanto às engrenagens do "movimento para frente" mencionado acima, uma das mais contundentes é a da guerra, de que se ocupa Robbie por longo tempo na segunda parte. É interessante que o tributo à ação no romance se dê exatamente por aquilo que algumas vertentes da crítica feminista consideram o mundo male por excelência - a guerra, se se pensa que Woolf também é uma das grandes autoras da teoria crítica feminista, sobretudo com Um teto todo seu. Confesso, por outro lado, que pulei algumas passagens mais candentes dessa parte, não por serem ruins, mas por serem excessivas em sua força (descritiva e narrativa), compondo figuras dignas de Jeronimus Bosch. Na verdade, o mundo da guerra não me interessa em nada, sob nenhum de seus aspectos.
Por fim, considero o final do livro um achado extremamente sofisticado, porque recoloca em foco a questão visceral do fato literário per se e, à maneira de um Machado de Assis ultra-moderno, nos faz especular sobre as fronteiras entre o real e o ficcional.

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Ian McEwan. Reparação. Tradução de Paulo Henriques Britto. São Paulo: Cia das Letras, 2002.

sábado, 11 de agosto de 2007

De McEwan, Virginia Woolf et alii

Uma discussão no site http://www.todoprosa.com.br/ sobre qual seria o livro mais superestimado da literatura brasileira rendeu minha contestação de que o binômio Guimarães Rosa e Clarice Lispector seriam “autores terminais, que não produzem estilos tributários daquilo que inventaram”. 

Ao contrário, sugiro que o mais importante legado de ambos, além da própria obra, é claro, diz respeito aos novos limites que impuseram à linguagem literária brasileira. "Não se trata de escrever como Clarice ou como Rosa, de ser seus epígonos, mas de ter consciência, ou mesmo de ter quase no inconsciente literário de quem vai escrever em português, que um caminho, aquele caminho, foi aberto, explorado e levado àqueles limites. Isso denota a riqueza de uma literatura e abre caminhos novos para os que hão de vir, porque a língua foi expandida, mostrou até onde ela poderia ter ido e foi. Mutatis mutandis, penso que não haveria o Ian McEwan e seu fantástico Na praia, por exemplo, sem a Virginia Woolf antes dele.

E é sobre esse último mote - o Na praia e a Virginia Woolf - que gostaria de observar o seguinte: o livro é absolutamente extraordinário, é um pequeno concentrado (128 páginas) de boas qualidades literárias: narrador onisciente e onívoro, além de ágil em seus saltos por tempos e lugares indispensáveis para a compreensão e construção dos personagens; personagens densos e complexos, mas ao mesmo tempo próximos de nossos medos mais comezinhos, além de serem nossos antecessores na difícil arte das "passagens": da adolescência para a idade adulta, da vida de solteiro para o casamento, da virgindade para a primeira relação. 

Tudo acontece de forma íntima, como se o narrador auscultasse mentes e os mais recônditos sentimentos, tudo é esquadrinhado para nos levar a esse acontecimento único e inelutável: o encontro desses dois seres em sua noite de núpcias, ao mesmo tempo em que se tece o painel do que foi conquistado, sobretudo pelas mulheres, mas não apenas, nesses últimos cinquenta anos (a estória acontece em torno da década de 50-60), em termos sexuais.

Dá um certo orgulho de ter pertencido a essa geração de mulheres que deu corpo àqueles primeiros movimentos surgidos em 1920, mas que ainda hesitava nos idos de 50, e que a partir de 70 pagou caro pelas conquistas de que já não podia abrir mão, ajudada pela pílula: o direito à sexualidade livre, a emancipação pelo trabalho, a autonomia pessoal. A personagem do romance encarna um momento dessa trajetória e, como sói acontecer, ela tem a proposta mais avançada para o impasse de suas vidas e de sua relação, embora ele, o agora marido, só vá perceber isso mais à frente, quando os acontecimentos de 68 fizerem ruir os escombros dessa paisagem. Leio Florence, a protagonista, como uma Virginia Woolf que não precisou matar-se. Em tudo elas são irmãs: na extremada sensibilidade artística; no sentimento de inadequação para as relações sexuais, embora o amor possa ser vivido e reconhecido; no diapasão entre a vivência das sensações cotidianas e a realidade mesma.
Penso que no casamento entre Virginia e Leonard Woolf houve um dia uma conversa como essa ou, pelo menos, uma vontade dessa conversa, e um pouco dela ecoa nos diários de Virginia, sobretudo quando fala na importância de Leonard em sua vida:

Você sabe que eu te amo. Muito, muito mesmo. E sei que você me ama. Nunca duvidei disso. Amo estar ao seu lado e quero passar a vida com você, e você diz que sente o mesmo por mim. Tudo devia ser muito simples. Mas não é -- estamos numa encrenca, como você disse. Mesmo com todo esse amor. Também sei que a culpa é toda minha, e ambos sabemos por quê. Deve estar bem claro para você agora que...
"Ela vacilou; ele tentou falar, mas ela levantou a mão.
"Que eu não tenho jeito, absolutamente nenhum jeito, para o sexo. Não é só que não sou boa de cama, parece que não preciso disso como os outros, como você precisa. Simplesmente não faz parte de mim. Não gosto de sexo, não gosto de pensar em sexo. Não faço a menor idéia do porquê, mas não acho que vá mudar. Não imediatamente. Pelo menos, não consigo me imaginar mudando. E, se eu não disser isso agora, vamos passar a vida nos debatendo, e isso vai te fazer muito infeliz, e a mim também. (McEwan, 2007: 118).

McEwan só pode perscrutar as mais íntimas motivações de Florence, só pode criar essa personagem e esse narrador tão atento a sutilezas, a percepções quase invisíveis, atento à capa de algodão que recobre os acontecimentos grandes e pequenos do cotidiano, ele só pode fazer isso porque Virginia Woolf antes dele refinou o estilo íntimo e pessoal, aguçou os ouvidos e a sensibilidade para ouvir e representar essa mulher inquieta e insatisfeita existencialmente, mas também e sobretudo sexualmente, e trouxe para o romance inglês figuras precursoras de Florence, de que Clarissa Dalloway seria paradigma, mas também Lilly Briscoe e tantas outras.


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Ian McEwan. Na praia. Trad. Bernardo Carvalho. São Paulo: Cia das Letras, 2007.