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sábado, 1 de março de 2008

A fera na selva

Nós sabemos que a novela de Henry James (1903) é considerada uma obra prima, um clássico etc, etc, mas acho que o jogo de esconde entre May Bartram e John Marcher envelheceu um pouco. Ficamos muito tempo encurralados por esse efeito suspensivo de algo-que-está-na-iminência-de-acontecer e que só nas últimas páginas liberta-nos com sua revelação, embora já o soubéssemos, claro, menos o John. 

Mas penso que ao final a novela se redime, quando lemos um dos mais belos textos sobre o estado amoroso e sobre a sensibilidade feminina. Nesse momento, não apenas as revelações sobre 'o que encurrala o personagem' acontecem, mas sobretudo a narrativa adquire um tom trágico e visceral, e tudo que antes parecia morno e ralenti agora se mostra intenso face à tragédia real de Bartram - sua percepção gauche quanto ao amor, sua inaptidão para perceber o que de fato importa, sua incapacidade de ver a mulher que o amou ao longo de toda a vida.

O que Marcher, de todo modo, não deixava de perceber era, em primeiro lugar, que a imagem de dolorida paixão apresentada a ele também estava consciente - de alguma coisa que profanava o ar; e em segundo lugar, percebia que, mesmo perturbado, surpreso e horrorizado, no momento seguinte ele olhava para aquela imagem com inveja. Teve lugar então, como conseqüência dessa impressão, logo depois daquele olhar ambíguo, a coisa mais extraordinária que jamais lhe ocorrera - ainda que ele tivesse usado esse qualificativo para outros eventos. O estranho passou, mas o puro clarão de sua dor permaneceu ali, levando nosso amigo a se perguntar, compadecido, que mal, que chaga ela expressava, que ferida incurável. O que é que aquele homem teria possuído para que, com sua perda, sangrasse tanto e ainda sobrevivesse?
Alguma coisa - e isso o atingiu como um golpe cruciante - que ele, John Marcher, não possuía; a prova disso era precisamente o árido fim de John Marcher. Paixão alguma jamais o tocara, pois esse era o sentido da paixão; ele sobrevivera, andara a esmo, definhara, mas onde estava a sua profunda devastação? A imagem que acabava de avistar nomeava, como em letras flamejantes, algo de que ele havia carecido de modo insano e completo, e esse algo que lhe faltara transformava as coisas num rastilho de fogo, fazia-as vibrar numa agonia de palpitações interiores. Tinha visto de fora sua vida, sem aprender intimamente, o modo como uma mulher era pranteada quando tinha sido amada pelo que era; tal foi a força de sua convicção no significado do rosto do estranho, que ainda tremeluzia para ele como uma tocha fumegante. Não chegara até ele, o conhecimento, nas asas da experiência; esbarrara nele, colidira com ele, perturbara-o, com o despudor do acaso, com a insolência de um acidente.
 (A fera na selva, p. 76-7).

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Não sei se a tradução do José Geraldo Couto é especialmente boa, não conheço outra edição, mas sobre esta da Cosacnaify, editora que eu muito prezo, tenho a dizer que:

1) O posfácio do Modesto Carone é uma droga total, ruim de doer e absolutamente dispensável;

2) O trabalho gráfico com as páginas em degradée de prateado tornou quase impossível ler o livro sem uma lupa, e não apenas porque leio com óculos mas porque está uma porcaria mesmo. Publicaram o ensaio imprestável do Carone em papel branquíssimo, ótimo de ler, e a novela vai mudando os tons do prateado até quase não se (v)ler as letras, enfim um mico só.

3) Esse é o segundo erro editorial grave da Cosac, a mon avis. O primeiro foi publicar o livro da Verônica Sttigger, numa edição belíssima, como se o livro merecesse e não fosse um enorme equívoco, como já foi comentado por aqui.

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Henry James. A fera na selva. Trad. José Geraldo Couto. São Paulo: Cosacnaify.