UM GOLPE DE MESTRE - Sobre um conto de Sérgio Sant'Anna
(Vera Queiroz)
(Vera Queiroz)
Com O monstro não é diferente: trata-se de um conto exemplar quanto à exploração de linguagens que se superpõem, criando um universo multifacetado cujo resultado surpreende e captura o leitor, fascinado pelo constante estranhamento a que é submetido no processo de leitura, em que se mesclam os discursos jornalístico, jurídico e a reflexão filosófica acurada, e onde os rituais de transgressão são descritos de forma minimal, cooptando o leitor e tornando-o cúmplice, de algum modo, desse narrador voyeur e perverso. Inscrito no que a crítica, não sem controvérsias, tem chamado de literatura pós-moderna, o texto de Sant'Anna reflete sobre vários tipos de discurso, reduplicando-os magistralmente, de modo a criar um espelho que refrata textos e gêneros, personagens e consciências que os reduplicam, vozes que falam por si e por outros, subsumidos todos pela hábil manipulação desse mago desconstrutor de realidades.
A narrativa abre-se com uma peça jurídica perfeita. Trata-se de um relatório tendencioso contra o réu, Antenor Lott Marçal, 45 anos, acusado de cometer, junto com a cúmplice, Marieta de Castro, um crime hediondo: o estupro e assassinato da jovem e bela Frederica Stucker, com o agravante de que a vítima sofria de forte deficiência visual. O relatório obedece a todos os imperativos formais e jurídicos, inerentes a tal tipo de peça: há a descrição sumária dos envolvidos e do crime, o onde, o como, o porquê, em quatro parágrafos concisos e exemplares. O aspecto tendencioso mostra-se em recursos de enunciação que sublinham o ponto de vista do narrador, contrário ao réu, em frases como "drogada por seus algozes", "atraiu Frederica para aquela cilada", "surpreenderam dos policiais aos juízes" etc. Em seguida ao relatório, o narrador faz um briefing, em linguagem jornalística, apresentando a entrevista que se vai ler e tecendo comentários sobre o teor da matéria, que atiçam a curiosidade do leitor não apenas sobre os fatos que ele vai conhecer, em sua versão real, porque contada pelo autor, mas porque ele vai entrar em contato com algo possivelmente abominável, conforme insinua o narrador-jornalista, em frases como "o resultado dos encontros [...] surpreendeu até o jornalista habituado a conviver profissionalmente com os mais diferentes tipos de caráter humano" [SANT'ANNA, 1997:607], sugerindo que esse caráter, em particular, é especialmente monstruoso. Técnica jornalística, sem dúvida, mas também recurso literário que se sobrepõe no horizonte de expectativas do leitor, em sua relação com o texto, já que o pacto firmado entre ambos se dá na clave da ficção (pois trata-se aqui de um conto). A partir de então, o que se tem é o desenvolvimento de um outro tipo de expertise discursiva, em que o gênero jornalístico é explorado através da encenação de uma entrevista, supostamente dada pelo protagonista ao jornalista de Flagrante - note-se o campo semântico do nome dado ao jornal, que remete para o instantâneo, para a presentificação do fato, além de dialogar de modo claro com a linguagem policial.
É na entrevista que o leitor vai sendo apresentado a um sujeito (o réu) extremamente lúcido, cujo domínio completo da linguagem e das formas de expressão do pensamento o qualificam para a profissão que exerce: professor de filosofia. Aqui, Sant'Anna explora de forma magistral as contradições que residem na raiz mesma do comportamento humano, em sociedades complexas que, por sua estrutura heterogênea e por suas profundas desigualdades, pelo esgarçamento dos mínimos valores ─ éticos, morais, políticos, sociais ─ tornam-se permeáveis a todo tipo de perversão, na medida em que, quando os indivíduos são submetidos diuturnamente ao rebaixamento de quase todas as formas de dignificação dos valores, das forças morais, dos princípios de vida, o que se vai perdendo também é o contato com a sua própria humanidade, com a capacidade de discernir os limites dos atos sociais. Uma sociedade pervertida produz mais facilmente os perversos, de que Antenor e Marieta figuram como paradigmas. A narrativa dele deixa entrever, ao mesmo tempo, um domínio completo do pensamento, da palavra e da razão ─ professor de filosofia que é ─ e uma cisão profunda quanto aos valores que regem os atos, a determinação, a vontade, as paixões, enfim. O personagem narra, explica, busca compreender, distancia-se para ver melhor, mas continua imerso na aporia irreversível do ato sem sentido, da violência desmedida. O contraste entre a lucidez e o controle absolutos que o protagonista tem, seja da linguagem, em sua melhor retórica, seja dos mecanismos inerentes aos atos dele e de Marieta, contrastam com a incapacidade de ambos em regular suas paixões e vontades, sua incapacidade em colar, aos atos, os valores correspondentes, embora ele possa, a posteriori, reconhecer tais distúrbios, sem nunca, entretanto, chegar a nomeá-los. A racionalização se dá ainda dentro dos parâmetros do sujeito intelectual: desejo de verdade: "Mas outro aspecto importante é que sempre houve em mim, por minha própria formação, esse desejo de buscar a verdade. Eu não me conformava com todas aquelas versões mentirosas infamando Frederica, vinculando-a a drogas, a uma vida dupla". (SANT'ANNA, 1997: 631).
Menos do que o crime que descreve, o que qualifica o monstro a que se refere o título do conto diz respeito a essa incapacidade de colar uma ação hedionda a seu valor moral. O leitor pode nomeá-los, rubricá-los dentro das sociopatias conhecidas – voyeurismo, esquizofrenia, o que talvez seja outra forma de racionalização. Maior que a indignação face ao crime, sua hiperexposição sob forma de alta literatura transborda e fere de morte a doxa, o olhar acostumado, lançando para o abismo nosso bom-mocismo ingênuo. Essa a função das grandes artes: golpear o monstro que espreita toda forma de alienação.
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Nota: Texto escrito para um curso da Faculdade de Direito, há vários anos, quando a autora ainda acreditava que poderia fazer outra faculdade, desta vez para defender os fracos e oprimidos. Chegou ao quarto período e rendeu-se.