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sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008
O ameaçado
Jorge Luis Borges - "O Ouro dos Tigres" (1972)
Génesis IV: 8
Foi no primeiro deserto. Dois braços lançaram uma grande pedra. Não houve um grito. Houve sangue.
Houve pela primeira vez a morte.
Já não me lembro se fui Abel ou Caim.
___
O ameaçado
É o amor. Terei de me esconder ou de fugir.
Crescem as paredes da sua prisão, como num sonho atroz. A bela
[máscara mudou, mas como sempre é a única. De que me
[servirão os meus talismãs: o exercício das letras, a vaga
[erudição, a aprendizagem das palavras que o agreste Norte
[usou para cantar os seus mares e as suas espadas, a serena
[amizade, os corredores da Biblioteca, as coisas vulgares, os
[hábitos, o jovem amor da minha mãe, a sombra militar dos
[meus mortos, a noite intemporal, o sabor do sonho?
Estar contigo ou não estar contigo é a medida do meu tempo.
O cântaro já se quebra na fonte, o homem já se levanta à voz das
[aves, os que olham pelas janelas já se escureceram, mas a
[sombra não trouxe a paz.
É, sei já bem, o amor: a ansiedade e o alívio de ouvir a tua voz,
[a espera e a memória, o horror de viver no sucessivo.
É o amor com as suas mitologias, com as suas pequenas magias
[inúteis.
Há uma esquina por onde não me atrevo a passar.
Já me cercam os exércitos, as hordas.
(Este quarto é irreal; ela não o viu.)
O nome de uma mulher denuncia-me.
Dói-me uma mulher em todo o corpo.
____
O ouro dos tigres
Até à hora do amarelo ocaso
Quantas vezes terei olhado já
O poderoso tigre de Bengala
Ir e vir pelo caminho destinado
Por trás das suas grades, desse ferro,
Sem suspeitar que eram o seu cárcere.
Depois viriam outros tigres,
O tigre de fogo de Blake;
Depois viriam outros ouros,
O metal amoroso que era Zeus
Ou o anel que a cada nove noites
Engendra nove anéis e estes outros nove
Sem nunca haver um fim.
Com os anos partiram, já se foram
As outras belas cores
E agora só me restam
A vaga luz, a inextricável sombra
E o ouro do princípio.
Ó poentes, ó tigres, ó fulgores
Da épica e do mito,
Ó ouro mais precioso, o teu cabelo
Por que estas mãos anseiam.
____
Jorge Luis Borges. Obras completas, vol. II. Tradução Fernando Pinto do Amaral. Círculo de Leitores, 1989.
Em http://um-buraco-na-sombra.netsigma.pt/p_mundo/index.asp?op=4&p=2540
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