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"Mas hoje sei que nunca, nem por um único instante, fui rica de verdade. Eu só tinha as jóias, dinheiro e conta no banco. Ganhei tudo deles, dos ricos. Ou tirei tudo deles, quando tive oportunidade, porque eu era uma garota inteligente, aprendi na vala, na infância, que não devemos ser preguiçosos, temos de pegar, cheirar, morder, esconder tudo o que os outros jogam fora... A gente nunca trabalha o bastante, aprendi isso em menina." [p. 268]
"Era assim que eu me sentia quando pensava nos ricos. Não os odiava por causa do dinheiro, das mansões, das pedras preciosas. Não era uma proletária rebelde, nem uma trabalhadora com consciência de classe, nada disso... Por que não? Porque eu vinha de tais profundezas que sabia de mais coisas que as declamadas do alto dos barris." [p. 309]
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Ainda algumas observações sobre Judit Áldozó, o personagem mais importante do livro De verdade, do Márai (comentado em outro post), sobre quem me surgiram algumas hipóteses e outras tantas questões. Por exemplo: por que o autor teria levado tantos anos para terminar de escrever e publicar essa última parte do romance, justamente aquela que trata da condição proletária? Na verdade, mais do que da condição proletária, já que Judit ultrapassa esta condição inicial de empregada da casa, casa-se com o filho do patrão, fica rica, esbanja o dinheiro dele que agora é seu, despreza-o na cama, separa-se, viaja, conhece outros homens, mora com o melhor amigo do ex-marido na Itália, o escritor Lázár, apaixona-se por um artista meio malandro e conta a ele sua história, essa que então lemos.
A história de Judit é a mais longa, ocupa 143 páginas, contra 119 da mulher Ilonka, 121 páginas do homem, Péter, e apenas 46 são ocupadas pela versão do artista, o amante de Judit.
De todo modo, o que chama a atenção quando acompanhamos a narração e a trajetória de Judit é, primeiro, sua sabedoria, fruto talvez dessa herança de classe: para alguém que morou na vala, literalmente, junto com os ratos que chegavam com a chuva, sua trajetória é espetacular. Ao mesmo tempo que aprendia com os patrões tudo que podia a respeito desse outro mundo onde eles reinavam, ela também ia formando a convicção das diferenças, que havia efetivamente dois mundos distintos para os ricos e para os de sua classe. Isso não diminuía a percepção de Judit, agudíssima, para os valores que a cercavam, seja na esfera da burguesia, seja no seu próprio mundo. Nunca foi uma questão moral para ela roubar do marido rico, o que ela fazia diuturnamente, pois tratava-se de uma contingência da vida: ela precisava resguardar seu futuro, ela encontrava-se no momento em condições de prover-se com esses fundos, tirados ao marido sem que ele soubesse de início, mas isso jamais foi percebido como uma infração. Tal como Paulo Honório, de São Bernardo, não há questão moral face ao direito de posse dos destituídos, dos despossuídos. Judit vai fundo em tudo, não vive pelas bordas ou em cima do muro, mergulha em suas várias etapas de vida, vive-as inteiramente, não se arrepende, não se imola, vai e leva tudo o que quer e de que precisa. Judit é uma aristocrata, como Nietzsche pensa o conceito: sem ressentimentos, nenhum sentimento cristão de culpa ou de amesquinhamento. Ela quer viver, e vive. Se der para ser muito bem, melhor. E deu, e dará, porque ela quer. E porque sim.
[...]
Há um temor recorrente em todo o transe que vive a persongem G.H., de Clarice Lispector, em seu livro magistral. Mais do que a barata, aquilo que hante G.H. é a idéia de uma Judit Áldozó habitando o exíguo quarto da empregada. (isso dá um conto ou um novo post...:)
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Sándor Márai. De verdade. Tradução Paulo Schiller. São Paulo: Cia das Letras, 2008.
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sábado, 5 de julho de 2008
terça-feira, 1 de julho de 2008
De verdade

Terminei de ler De verdade, do Sándor Márai (445 pp) há algum tempo e estou para comentá-lo aqui, mas um tanto sem forças. Porque o livro é mesmo uma obra-prima, sem dúvida, com alguns defeitos que não lhe tiram a grandeza. A obra-prima fica por conta do domínio narrativo, das reflexões que propõe sobre a natureza e a ambiguidade dos vastos sentimentos que nos movem nessa intrincada rede das relações amorosas e, sobretudo, do que constitui a intimidade.
Acho que menos do que falar sobre a decadência da burguesia como classe, o livro disseca com minúcia e precisão esse que constitui um dos mais difíceis aspectos das relações afetivas em geral, e seu compartilhar, sejam elas relações eróticas, fraternas, filiais ou o que for. Márai usa a palavra como um bisturi e a frase vai dissecando cada ângulo, cada minúcia, cada vão desses compartimentos que guardam os segredos daqueles que escolhem ficar com alguém, dividir camas e humores, sentimentos, claro, e expectativas, alegrias, lutos, lutas e tréguas. Márai vai ao encontro das firulas, das finesses, dos rodeios que todos construímos para justificar quem somos, por que somos o que somos, por que falhamos com o outro, o que somos para nós e quem somos para o outro.
Tudo isso sob o domínio completo da técnica narrativa, que consiste aqui, primeiro, em sussurrar para o leitor tudo que diz, dizê-lo num registro de confidência, absolutamente perfeito para o propósito do romance, quando nos torna, a nós leitores, cúmplices dos acontecimentos, de cada segredo, como se dispuséssemos de dados únicos sobre o que envolve cada situação, e, nesse gesto, alça-nos a um patamar acima dos 'comuns mortais'. É uma técnica de sedução do leitor que os romancistas do século dezenove usaram à exaustão (incluindo nossos Machado e Alencar), e que tem aqui uma de suas mais altas realizações; depois, em nos fazer ver os vários pontos de vista da mesma situação, como é que cada personagem viveu aquilo que viveu na relação, que sentimentos o moveram, e surpreender-nos com perspectivas tão díspares na análise e compreensão dos mesmos atos.
Acho que mais importante do que tomar como centro dessas diferenças a questão da luta de classes, que o romance igualmente postula, a força da técnica estaria mais, para mim, na emersão das diferenças, nesse painel absurdamente bem escrito e bem conduzido das nuanças dos sentimentos humanos em relação, ao descrever, situar, analisar as motivações, explícitas ou não, para nossos atos e, assim, nos revelar a nós mesmos por caminhos inimaginados.
Uma terceira qualidade que distingue o romance, e o autor, seria sua postura filosófica, na linha da grande tradição do romance russo, por exemplo. Por esse viés, riquíssimo, os acontecimentos não são apenas narrados, ou vividos, mas se tornam exemplares para quem quer que se aproxime da obra. Há algo sendo dito para nós, que diz respeito a nós, contemporaneamente, sobre nosso medo, nossa hipocrisia, nossas relutâncias, os crimes que, nós também, cometemos. Se considerarmos que o romance foi grande parte escrito na década de 40, falar-nos ainda hoje de questões éticas, morais, é um feito e tanto.
Dos defeitos a que me referi, vou comentar apenas um. Embora a gente não consiga largar a leitura, a parte final (com data de 1979), que diz respeito ao artista, o amante de Judit Áldozó, e que foi escrita na mesma época da segunda parte, sob o título “Judit e a fala final”, uma continuação do romance escrita de 1949 a 1978, essa parte do artista e músico me parece dispensável. A impressão que dá é que o escritor se viu na contingência de escrever sob o ponto de vista do todos os envolvidos, mas não apenas a presença do rapaz é menor para os acontecimentos fundamentais, mesmo na vida de Judit, como o que ele diz tem peso menor na estrutura toda, importa menos. Esse, no entanto, é um defeito menor. Afinal, nem mesmo Marx conseguiu descrever com clareza o lugar do artista e da arte na sociedade sem classes que tentou sonhar.
E, sem dúvida, o engenho de Márai vai muito além de qualquer discussão sobre tal lugar em qualquer sociedade.
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Sandor Márai. De verdade. Tradução Paulo Schiller. São Paulo:Cia das Letras, 2008.
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segunda-feira, 16 de junho de 2008
De verdade (II)
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Tinha feito uma grande seleção de excertos da obra, mas quando fui publicar o blog entortou e cortou grande parte. Sobraram esses, bons que só:Não é verdade que o sofrimento nos purifica, nos faz melhores, mais sábios e compreensivos. Nós nos tornamos frios, iniciados e indiferentes. Quando compreendemos, pela primeira vez na vida, o destino, nos tornamos quase serenos. Serenos e solitários no mundo, de um modo singular e assustador.
[p. 44]
Existem momentos na vida em que vemos tudo com clareza, sentimos a própria força, as possibilidades, vemos a condição ante a qual éramos medrosos ou fracos. São os momentos de mudança. Essas coisas chegam sem aviso, como a morte, ou a conversão. [p.51]
Havia dezesseis anos vivia, rodava, andava em círculos, numa jaula como aquela ou parecida, uma fera delicada, cujo nome era paixão e espera. Eu entrara na jaula, e nós nos encarávamos. Não, aquela mulher não demandava nenhuma bugiganga que a recompensasse, que a seduzisse. Ela exigia tudo, a vida toda, o destino com todos os perigos. E sabia esperar. [p. 94]
Assim nos olhávamos. O que mais dava medo era a boca. Macia e magoada. A boca de uma fera nobre que tinha perdido o hábito de comer carne. [p.99]
Você me pergunta o que é a verdade, a cura, a capacidade de encontrar a alegria. Eu vou lhe dizer, meu caro. Vou lhe dizer com duas palavras. Humildade e autoconhecimento. Esse é o segredo. [p.139]
Há muitas espécies de mágoa entre as pessoas. Sabe, as pequenas diferenças... um conhece alguma coisa porque foi mais bem-nascido, teve a oportunidade de espiar o segredo delicado que é a verdadeira cultura... o outro apenas aprendeu a lição. Acontece. A vida passa até aprendermos isso. [p.141]
Veja, na vida existem também grandes satisfações e alegrias. Chegam tarde, de uma forma distorcida e inesperada. Mas chegam. Quando na minha casa atual, a casa de meus pais, depois de dois casamentos e duas separações eu fiquei só, senti pela primeira vez na vida o alívio triste de quem chegou ao fimde alguma coisa, alcançou o que queria. Sabe, como alguém que, condenado à prisão perpétua, de repente é libertado porque a pena foi comutada em virtude de seu bom comportamento... e pela primeira vez em décadas ele dorme sem ter medo do guarda que durante a ronda noturna espreita pela vigia da porta... A vida proporciona também alegrias assim. Custam caro, mas por fim a vida as oferece.
[p. 149]
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De verdade. Sándor Márai. Tradução Paulo Schiller. São Paulo: Cia das Letras, 2008.
terça-feira, 3 de junho de 2008
sobre dinheiro e não
Esse é um post antigo, que eu não aproveitei então e o faço agora.
Tenho uma incompetência atávica com relação a dinheiro: não sei guardar, não sei economizar, não sei cuidar nem dizer não, enfim, um desastre total.
Quando era mais pobre, vivia com a maior naturalidade pendurada em dívidas de cheque especial e de cartão e não dava a menor bola pra isso, achava natural (claro que naquele tempo os juros eram menos extorsivos do que agora). De todo modo, há algum tempo venho me dispondo a aprender sobre o que não sei, incluindo as questões financeiras. De repente, se me puser a ler sobre dinheiro (por isso o link para o dinheirama.com) e sobre como me tornar uma 'gestora' (caramba!), vou acabar economizando. Se apenas aprender a me relacionar melhor com o metal não tão vil já estará de bom tamanho.
Sobre o assunto, o livro do Sándor Márai oferece observações absolutamente pertinentes:
"O homem rico nunca consegue se apegar com tanta disposição vigilante e torturada aos costumes sociais, à ordem, às regras de conduta, à reverência burguesa, a tudo o que significa a justificativa da existência da pequena burguesia em todos os momentos da vida, quanto o chefe de escritório, que faz questão de preservar o desejo de morar melhor, de se manter na moda, de conservar os ditames da vida social em paralelo com a renda de cada classe social... O rico se dispõe a certas aventuras, se dispõe a pôr uma barba postiça e fugir com o pé no estribo, por mais ou menos tempo, da prisão solene e entediante das posses. Tenho uma convicção secreta de que o rico sente tédio o dia inteiro. Porém o burguês, que apenas ocupa um posto, que não tem dinheiro, ambiciona com o heroísmo de um cavaleiro cruzado a ordem à qual pertence, o nível e os princípios burgueses. Precisa deles, precisa provar alguma coisa até o fim da vida." [p. 141]
E mais uma, que não tem a ver com dinheiro, mas é perfeita:
"Veja, na vida existem também grandes satisfações e alegrias. Chegam tarde, de uma forma distorcida e inesperada. Mas chegam. Quando na minha casa atual, a casa de meus pais, depois de dois casamentos e duas separações eu fiquei só, senti pela primeira vez na vida o alívio triste de quem chegou ao fim de alguma coisa, alcançou o que queria. Sabe, como alguém que, condenado à prisão perpétua, de repente é libertado porque a pena foi comutada em virtude de seu bom comportamento..." [p.149]
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Sándor Márai. De verdade. Tradução Paulo Schiller. São Paulo: Cia das Letras, 2008.
segunda-feira, 2 de junho de 2008
De verdade
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Outro dia a Mônica Waldvogel, no programa Saia Justa, sugeriu a leitura do livro De verdade, do Sándor Márai, de quem eu não conhecia nada até então. O que me chamou a atenção de imediato foi o modo como ela falou desse trabalho - embora fosse um comentário rápido, os olhos da moça brilharam intensamente, a gente percebia que havia amor, mais que isso, fervor, ao falar do escritor e da obra. Eu confiei nesse brilho e no dia seguinte me pus a procurá-lo na Argumento (foi em busca desse livro que ocorreu o episódio do mel).
Bom, eu costumo sublinhar trechos, palavras, pensamentos enfim, nos livros que estou lendo, vício antigo de quem leu durante anos a trabalho, além de dobrar as pontinhas das páginas assinaladas. Pois bem, eu ainda estou na página 168 das 445 do livro e as dobrinhas das páginas estão quase uma sim outra não. De repente, quase todo o livro será dobrado, porque se trata de uma obra-prima extraordinária, que fala comigo, para mim, de mim sobre quase tudo que importa na vida, e eu fico besta de ver como é que eu nunca havia posto meus olhos sobre esse autor e sobre este livro (resposta: muito provavelmente, porque fiquei limitada, ao longo de minha vida acadêmica, a leituras obrigatórias de crítica e ficção canônica brasileiras, além de obras de autoras mulheres, objeto de outras tantas pesquisas devidas).
O livro é uma obra-prima (publicada uma parte em 1940 e a parte final em 1979), e o parágrafo inicial já diz muitíssimo de sua estrutura:
"Veja aquele homem. Espere, não olhe agora, vire-se para mim, vamos conversar. Eu não gostaria que ele olhasse para cá, que me visse, não gostaria que me cumprimentasse. Agora pode olhar de novo... O homem baixo, atarracado, com o casaco de pele de gola de marta? Não, nada disso. Aquele alto, pálido, de sobretudo preto, conversando com a garçonete magra. Está pedindo a ela que embrulhe cascas de laranja cristalizada." [p. 11].
Assim como Guimarães Rosa em seu Grande Sertão, ou mesmo A hora e a vez de Augusto Matraga, em que se trabalha o artifício da confidência, de contar os 'casos fabulosos', aqui também Márai estabelece de pronto um viés de cumplicidade com o leitor já em "Veja aquele homem". Evidentemente, precisa mais que um apelo para transformar o interesse e a curiosidade iniciais em obra de valor, mas ao correr da leitura o leitor vai-se tornando muito mais que um voyeur dos acontecimentos - ele ficará refém não apenas das vidas ali encenadas, mas da sabedoria que percorre cada observação, cada reflexão dos vários narradores. São pensamentos atualíssimos, questões nossas, de hoje, e foram escritos, em sua maior parte, na década de 40!
Alguns trechos:
"Não acredito que a família 'traga felicidade'. Nada traz felicidade. Porém a família é uma tarefa tão grande, diante de nós mesmos e também do mundo, que por ela vale a pena suportar as preocupações desnecessárias, as paixões inúteis da vida. Não acredito em famílias 'felizes'." [p. 134]
"No fundo da nossa alma vive a memória de um mundo luminoso, ensolarado, lúdico, em que a obrigação é divertimento, o esforço é agradável e racional. Talvez os gregos, sim, talvez eles fossem felizes... Mataram-se uns aos outros e aos estrangeiros, sofreram guerras terrivelmente longas e sangrentas, mas ainda assim resistiu neles uma espécie de sentimento comunitário bem-humorado e transbordante, porque eram todos cultos, no sentido mais profundo, não escrito, da palavra, inclusive os fabricantes de panelas...." [p. 136]
"Se um homem como ele, que zela e representa todos os valores de uma cultura, desmorona, não é apenas ele que se extingue, mas com ele se extingue um pedaço do mundo em que vale a pena viver." [p. 118]
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De verdade. Sándor Márai. Tradução do húngaro de Paulo Schiller. São Paulo: Cia das Letras, 2008.
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