sábado, 8 de abril de 2023

PARA LEMBRAR A EXISTÊNCIA DE MARIA DO SOCORRO


 Pequena travessia e desastre 

 Eis uma das histórias de minha infância que ela não me contou, mas eu lembro como se fosse a primeira injeção com dor que tomei na vida.

Voltávamos do pequeno sítio onde habitava a mãe do meu pai, tínhamos ido em busca de alimento, já que o pai estava fora há muitos dias, nas mesas de jogo que ele frequentava como se não houvesse amanhã, sabe-se lá onde.

Voltávamos com minha mãe tangendo o burrico, cabresto puxado por meu irmão, o mais velho de nós, uma filha em cada caçuá, um de cada lado do animal. Eis que, em certo momento, teríamos de atravessar uma pequena ribanceira, passando para o outro lado do rio, que havia secado completamente e era só graveto e pedras, ao longo e ao largo dele.

Meu irmão devia ter uns doze anos, não muito mais que isso, e vinha na frente, com a brava tarefa de descer com o animal de modo que ele mantivesse o equilíbrio e não deixasse cair os caçuás, onde estávamos, eu a irmã caçula. Vínhamos bem, até que se deu o inevitável: o burrico tropeçou nas pedras do caminho, tombou e os cestos caíram sobre nós, eu e a outra filha, sob os gritos desesperados de minha mãe, cujas frases de imenso desespero ainda repercutem longinquamente dentro de mim: perdi minhas filhas, matei minhas filhas, numa exasperação e agonia excruciantes.

Demorou um tempo até que conseguissem, ela e o filho, levantar o animal e desvirar os caçuás, onde acharam as duas meninas vivas, creio que bem, só não sei se com algum ferimento, até aí não vai minha lembrança.

Voltamos para casa, e não foi apenas nesse momento que houve pedra no meio de nosso caminho. Mas caminhamos, e estamos aqui, contando causos dessa mulher extraordinária, minha mãe Maria do Socorro. [Vera Queiroz]

quinta-feira, 16 de março de 2023

Nem só de pão

Da varanda do quinto andar ela viu o homem idoso, muito magro, caminhando com dificuldade, dando um passinho, bem devagar, depois outro, e parar por vários minutos, recuperando o fôlego, para tentar arrancar nova passada, lenta.

Ela já o tinha visto antes, nesse mesmo percurso, de uma ponta a outra do quarteirão, duas calçadas compridas, cuja travessia custava ao homem uma eternidade. Na esquina da rua, ele parou, ficou um tempo em pé, segurando no poste encimado pelo nome da rua. Depois foi-se arrastando e sentou no parapeito do jardim, ofegante.

Ela olhava lá de cima, atenta, curiosa, querendo entender por que tanto esforço naquele corpo magro. Até que ele acendeu o cigarro – era para isso, para fumar escondido, todo esforço e sacrifício daqueles passos trôpegos. O corpo magro, quase esquálido, mostra que a calçada, tortuosa embora, é o espaço inescapável do prazer, e do tormento.

Fuma por um tempo, e levanta, devagar, começando seu caminho de volta. Apoia-se na parede e avança dois passos, para diante da obra no caminho, estaca e descansa longamente em pé - ele fica muito tempo parado no meio da calçada, equilibrando-se.

Dois garotos de uniforme vêm conversando em sua direção, brincando, e ela se angustia – se encostarem nele, o derrubam, e os ossos à mostra se quebrarão. Mas eles se esquivam, pressentem talvez o desastre, e seguem seu caminho. O velho passa do portão onde deveria entrar – ela sabia que ele morava ali, já o observara nesse mesmo percurso antes. Dessa vez ele seguiu, passos cada vez mais trôpegos, até a esquina, e parou. E ficou lá, olhando para o outro lado da rua. Ela pensou: ele quer atravessar, mas não pode – se o fizer, com suas passadas lentíssimas, será atropelado.

Ela segue a cena – ele parado, instável, hesitante, na esquina do prédio e da rua. As pessoas passam por ele, ela teme, vendo lá do alto, que alguém esbarre nele e o derrube. Ela decide descer, ver se ele quer atravessar, ajudá-lo, fazer parar os carros para que seus ossos passem. Desce, chega perto e pergunta: o senhor quer atravessar? Ele responde baixo, voz rouca, quase inaudível, mostrando uma nota de cinco reais: quatro pãezinhos, por favor, e olha em direção à padaria em frente. Ah, era isso. Ela pega o dinheiro, atravessa a rua. Está aflita, sentindo que ele deve estar no limite de suas forças, tanto tempo em pé, pode desabar a qualquer momento.

Ela compra os pães, fala com as moças da padaria sobre ele, aponta do outro lado, diz – como o deixam sair sozinho, tão frágil? A moça no caixa responde: ele sai para fumar escondido.

Ela leva os pães, entrega a ele, pergunta coisas: qual o seu nome? – Abílio. O senhor mora sozinho?  Ele, baixinho, quase inaudível – Com a nora. Pergunta onde ela mora, ela aponta o prédio, diz que o viu da varanda. Ele segura seu braço com força, caminham devagar de volta a seu portão. Antes de chegar, ele pede a sacola com os pães, diz que ali está bom, pode deixá-lo. Ela deixa, mas bate no portão e chama o porteiro: - esse senhor precisa de ajuda, ele mora aqui.

Vera Queiroz

Certa vez, perguntaram ao filósofo Gilles Deleuze por qual razão ele nunca foi filiado a um partido, e aproveitaram também para indagá-lo acerca do que é ser de esquerda. O filósofo deu mais ou menos a seguinte resposta: antes de ser um posicionamento político-partidário, ser de esquerda expressa o modo como nos inserimos na existência.

A pessoa de direita parte, antes de tudo, do seu ego. Ela vive no interior de um círculo no qual estão seus interesses, suas propriedades (já possuídas ou apenas desejadas), suas ambições, suas pretensões, suas opiniões... Mas também ocupam o círculo estreito do ego seus medos, seus ressentimentos , seus fantasmas, suas feridas mal curadas. O homem de direita imagina que esse círculo estreito é o centro do mundo, de tal modo que tudo o que existe fora desse círculo, no espaço e no tempo, é para ele só “narrativa”. Daí seu desprezo pela ciência, pela história, pela sociologia e pela filosofia, e seu medo paranoico dos outros povos e suas maneiras diferentes de viver, medo esse traduzido na expressão “globalismo comunista”.
Pode parecer paradoxal, mas apenas seres que vivem num círculo existencial estreito adaptam-se a existirem no interior de um rebanho ou massa. Pois o rebanho não é um conjunto heterogêneo de singularidades, rebanho são indivíduos aprisionados a si mesmos e que se agregam em celas contíguas.
Ser existencialmente de esquerda, ao contrário, é partir daquilo que Espinosa chama de o Absolutamente Infinito. A percepção de esquerda se abre ao que não pode ser cercado ou contido, para que a mente e o coração ligados a tal percepção permaneçam sempre abertos.
É a partir do infinito aberto que o ser existencialmente de esquerda compreende que desse infinito fazem parte o cosmos, o nosso planeta, as outras nações, o nosso país, a nossa cidade, o nosso bairro , o outro e, enfim, a sua pessoa.
Ser de esquerda é não se colocar como primeiro ou último numa concorrência, mas como parte singular de realidades mais amplas e horizontadas (como ensina também Manoel de Barros). Ser de esquerda não é apenas compreender teoricamente isso, mas sobretudo agir a partir dessa percepção. E dessa percepção podem nascer não apenas ações empáticas, solidárias, generosas, dignas, justas , corajosas e revolucionárias, pois dessa percepção também podem nascer poemas, músicas , artes e educação não menos revolucionárias.     
[Elton Luiz Leite de Souza ]

domingo, 12 de março de 2023

 Entre Mulheres 

[Sarah Polley, dir. Com Rooney Mara, Frances McDormand, Claire Foy, Jessie Bucley, Ben Whishaw]


Assisti ao filme mais extraordinário dos últimos tempos - Entre mulheres, onde vi nossa pré-história como seres humanos mulheres, sob o signo de uma violência e de uma vileza tão absolutas que não pode ser dito por outro nome que não: estupor. Sobretudo porque a história contada parece uma lenda muito antiga, que não nos peretence mais e, no entanto, o filme retrata acontecimentos que se pasaram em 2010, quando eu já tinha 60 anos! E as personagens, aquelas mulheres/nós-mulheres, estavam discutindo calmamente, quase silenciosamente, um tanto perdidas, talvez, se fugiam ou se se deixavam violar, esquartejar, drogar, estuprar, mutilar por seus maridos, senhores de uma comunidade menonita. 

O que as religiões têm feito contra a mulher não tem como historicizar, nem perdoar, não tem, mas acho que a Sarah Polley, a diretora brilhante de tantos outros filmes (*), que rege um cast de atrizes estupendas, faz um recorte muito especial para falar, gritar, esconjurar, expor de forma dilacerada o que ainda precisa ser banido de qualquer sociedade que se diga civilizada: o ódio à mulher.


(*) Gosto especialmente de: Longe dela (2010); A vida secreta das palavras (2007); Minha vida sem mim (2004); O peso da água (2002).


domingo, 5 de março de 2023

Fruta [25/02/2023]

Fruta

Enquanto eu perguntava o preço do mamão, o vendedor mostrava a qualidade dos produtos, arrumados na larga bancada de madeira, junto com outras frutas, expostas ao longo da calçada em frente ao largo do machado, e já foi tirando o mamão do montinho, expondo sua qualidade, valorizando o produto. Foi quando uma menina, doze anos talvez, vindo por trás dele segurando um pêssego, sussurrou algo bem perto de seu ouvido e, nesse instante, houve um olhar de ambos, muito rápido, em minha direção. Mas não foi o olhar dele, nem o relance de olhos dela para mim, que denunciou o abuso. Foi a sombra de um sorriso muito leve, muito sutil, quase sem querer, que ele jogou em minha direção – um esgar que me atravessou como lâmina, tão rápido e tão perfurante, que quando dei por mim ela já havia saído com seu pêssego, ele já embrulhava os mamões e eu pagava, me afastando lenta, o corpo muito mais pesado, tonta de tantas descobertas em um átimo de segundo. 

Ali havia um crime que ninguém jamais puniria, talvez, algo que os quatro anos sob a égide do desgoverno genocida, miliciano, misógino, insensível, violento e inimigo de todas as minorias sociais autorizaram, e o mais reles dos homens sentia-se livre, quase saltitante, para violar quem quer que fosse em troca de uma fruta. Nada mais o impedia de traficar comida com crianças, com vulneráveis, com idosos, com aqueles que serão sempre, em qualquer sistema opressivo, os deserdados da terra. Com o afrouxamento das regras de controle sociais, os famintos dessa sociedade estão à mercê das bestialidades todas, porque não contam mais com a proteção real e verdadeira do aparato do Estado que coíba a invasão dos corpos, das casas, das vidas - desses, que estão quase sempre à beira de.