quarta-feira, 21 de dezembro de 2016

A chegada

A chegada. Denis Villeneuve, 2016. Com Amy Adams, Jeremy Renner, Forest Whitaker, Michael Stuhlbarg.


E revendo pela segunda vez (porque acho que haverá outras) a gente se encanta, e se vê dentro daquele mundo que parece querer se mostrar o que é - tudo de mentirinha, ou seja, esteticamente comum, tudo tão simples, a 'arquitetura' estética é quase simplória, porque ele prescinde mesmo de pirotecnia, é um sci-fi cheio de sentimentos e sentidos filosóficos profundos. E reverente à mulher. Enfim, uma ficção que rende tributos à mulher, ao sexto sentido da mulher, dando e esse sexto sentido um lugar de proeminência na história, fazendo dele o cerne para a resolução do enigma e do filme - na história, cabe a ela a compreensão da linguagem, a decifração dos signos, dos sentidos, das mensagens, do presente e do futuro. 

Para isso, recebe um dom, ativado por eles, os alienígenas - o dom da percepção, a habilidade de discernir aos poucos o que vai acontecer, a partir da leitura de sua própria história ainda não vivida, mas a que tem acesso. Uma fenda no tempo, ela se constitui; um sexto sentido, ela transpassa. 

Em que momento ela recebe o dom, ou o aprimora? - quando coloca a mão pela primeira vez na barra que separa humanos/não humanos, e que permite ao mesmo tempo uma mediação entre as espécies? Ou quando, já no final, é levada para dentro de uma cápsula menor e lá 'se pare' - ou seja, imerge num espaço/tempo indiscernível, como num parto de-si, de onde sai molhada e sabendo o que fazer?

De todo modo, o filme ganha sempre, até nos momentos mais clichês - por causa dela, pela 'causa' dela, por sua intuição, por sua coragem, sua ousadia, e também (para nós) porque quando ela - professora linguista - começa sua aula, na primeira cena do filme, e inicia uma explicação sobre uma tese a respeito de o Português ter sido uma língua indo-europeia que melhor expressaria a arte, a aula para, e nós queremos saber, eu quero saber. 

Mas o diretor compensa a não resposta, ou melhor, vai além, e transforma a linguagem, uma forma muito especial de linguagem, em comunicação e arte. Palmas para ele, e para toda a equipe - todos excelentes, convincentes, competentes (não é um palíndromo, mas ecoa). Acho que verei de novo.

Por fim, quero muito estar presente daqui a três mil anos, porque: a) quero saber que problema eles enfrentarão; b) quero ajudar. 


sábado, 17 de dezembro de 2016

O anjo de Heleno Godoy

Todo ano, rigorosamente, ele envia um poema natalino para sua lista de amigos. Por alguma razão, que não atino, ele me conservou no coração (e na lista), a despeito de nossa relação de amizade ter existido apenas durante os poucos anos em que trabalhei na Universidade (Federal de Goiás). 

Entramos no mesmo ano (1991), fiquei até 1995, pouco tempo, mas nos respeitávamos e nos admirávamos - eu a ele, muito, com certeza. Uma vez, ele me convidou para conversar com seus alunos de Mestrado sobre A hora da estrela, de Clarice. Amei ter ido, foi uma conversa ótima e frutífera. 

O anjo de Heleno Godoy, poeta goiano dos melhores, a cada ano vai abrindo suas asas para acolher um pedaço do mundo que rui aqui, despenca ali, e percebo que suas ruguinhas adensaram-se neste último encontro, nesta fase terrível de nossa existência, de nosso país. 

Um abraço pra ele, pra Heleno, para nós todos e todas, dessa terra tão devastada. 

"[... a colheita ]
soçobra, a hora espanta, enganos triunfam?
Deixamo-nos reduzir ao que pensávamos
não ser: promessa de haver, sonho acordado,
rosto marcado pela forma como este anjo
vem sempre, sem falha, nesta noite, e nos
impede até o uso de tantas boas palavras. "