sábado, 19 de novembro de 2016

Elle

Elle. De Paul Verhoeven, com Isabelle Huppert, Laurent Lafitte, Anne Consigny, Charles Berling, Virginie Efira, Christian Berkel, Judith Magre, Jonas Bloquet.

Há várias portas de entrada para ler esse que me parece o grande filme do ano. Uma delas, a partir da cena em que Michèle, vivida com maestria absoluta por Isabelle Huppert, conta ao vizinho, quase sem preâmbulos, com alguma ironia e um tanto de desdém, o acontecimento brutal e extraordinário, fundador na e de sua infância.

Dele – desse acontecimento - advém em grande medida o modo de ser da personagem: o que lhe foi exigido ao longo da vida para superar aquele acontecimento fica claro no modo como administra com mãos de ferro a empresa de jogos de lutas para videogames, onde lida com jovens criativos, e impõe-se a eles quando surgem impasses. Em certa fase do projeto em andamento, um dos jovens critica o encaminhamento proposto por ela ao trabalho, e será então que a senhora definirá, alto e bom som, quem manda naquele negócio, no que constitui um dos momentos fortes do filme, de onde emerge o mote de uma vida, e com o qual muitas de nós nos identificamos imediatamente: La patrone c’est moi!  

O que nos leva a outra vertente de leitura, aquela que diz respeito ao empoderamento da mulher contemporânea, ao modo como ela transforma as forças opressoras em força em si e para si mesma, centrífuga, para agir no mundo, para impor-se, para sobreviver, para não sucumbir. E isso já está dado, acho, naquela cena que ela narra ao vizinho, a que me referi acima. No incêndio que leva sua casa, ela se lembra de achar uma festa aquela fogueira lambendo tudo, sua alegria infantil com o fogo expandindo-se, talvez como uma criança ao ver as formas móveis e instáveis das figuras que o fogo produz. Não importa, o que fica é que ela fez da destruição um campo de luta e de sobrevivência, com muitas vitórias e algum rescaldo de cinzas em sua alma. 

Há nela essa ausência de sentimentos fortes, uma psicopatia que talvez se possa chamar de “leve”, em face dos acontecimentos que a constituíram. Dessa ausência relativa de sentimentos, de uma certa aridez afetiva ela constrói um império, sua defesa dos bárbaros que a agridem, a violentam, tentam aproveitar-se do que construiu, talvez invejem o capital que acumulou. Mas essa aridez tem furos também, e ao longo do filme, à medida que ela vence seus oponentes, um a um, ela vai-se espraiando em doações de afeto, do afeto possível, esse território tão inóspito quanto infranqueado para ela – ao ex-marido, no convite para explicar ao jovem seu trabalho; ao filho, no convite para fazer o evento da empresa; na possível aceitação final do neto e da nora.

Uma das cenas mais emblemáticas da obra, em que seu filho a salva de um possível molestamento, que nada tem a ver com o que ele supõe ser, talvez seja uma das chaves para ler essa personagem de altíssima voltagem: ela aceita que ele veja o que pode ver, e aceita o que pode haver de afeto em sua ação – bárbara e protetora. Tudo é isso, não sendo apenas isso, a ambiguidade comandando toda e qualquer tentativa de captura dessa mulher, estranheza absoluta do começo ao fim, que cola em nossa imaginação com a força e a pregnância construídas com minúcias pelo talento de Huppert. Belíssimo trabalho, num filme indispensável.

PS: Mas o tópico nietzscheano da falta de culpa  como força grita sua ausência aqui, e só agora, lendo outros comentários a respeito, me dei conta. Pena.


quinta-feira, 17 de novembro de 2016

FestRio 32016: Dominion; Lost in Paris; MaMa

Dominion. De Steven Bernstein. Com Rhys Ifans, Rodrigo Santoro, John Malkovich, Romola Garai, Zosia Mamet. 

Primeiro uma confissão: fui professora de literatura toda minha vida acadêmica, mas nunca gostei ou participei de saraus literários, pela simples razão de que cada poema, cada livro, cada página de um texto literário pertence à imaginação de quem o lê, de quem dele se apropria. E sempre achei que os saraus servem muito mais à vaidade de quem se 'apresenta' do que à poesia mesma, seja ela dita por um leitor comum, seja pelo autor.

Dito isso, Dominion trata dos últimos dias na vida do poeta galês Dylan Thomas, vivido primorosamente por Rhys Ifans, cuja obra não conheço, mas passei a conhecer um pouco, porque no tempo em que ele viveu (e hoje ainda, creio) se faziam turnês para divulgação de livros considerados best sellers, e as platéias tratavam os artistas da palavra como celebridades. Ele fez uma turnê pelos EUA lendo para jovens universitárias absolutamente enlouquecidas por ele e por sua poesia, ao mesmo tempo em que o filme retrata os últimos momentos dessa viagem, e de sua insaciável imersão no álcool. 


O filme incomoda um pouco nessa exaustiva e extenuante observação de todos os detalhes da descida aos infernos do álcool, tanto mais que o poeta não perde a consciência quase nunca: sofre, fala muito, dá nome à sequência de seus drinques (copos de uísque cheios) e filosofa, até quase o fim, quando chega ao estágio do vômito das próprias fezes.


Quem contracena brilhantemente com ele é nosso ator Rodrigo Santoro, que vive o barman, personagem importante que faz contraponto às falas do poeta, o que Carlos-Rodrigo faz num inglês, para mim, impecável. A horas tantas, e já mais pro fim, chega a estudante que precisa levar o poeta para fazer a palestra, ou ela, a aluna, estará em maus lençóis. Ele não tem condições, está bêbado, e acontece uma cena linda de dança entre ela e Carlos, que me lembrou a clássica cena de Al Pacino em 'Perfume de Mulher' - torço para ela se tornar uma referência, porque achei ótima. Ao final, Carlos se revela mais do que um simples garçom, e saberemos que é também um escritor, e sua função no filme é contrapor-se às falas de um homem que mergulha, cada vez mais fundo, nas impossibilidades de interação com a vida real, essa, no aqui e agora. 


Achei tudo muito bem feito, o ator Rhys Ifans impressiona tanto no apogeu das leituras de seus poemas, quanto na decadência física advinda do alcoolismo; Santoro mostra um desempenho brilhante, de que resulta um filme inquietante, painel claro de uma época em que a palavra escrita, e a poesia, sobretudo, tinha peso, substância, meio irmã que era da filosofia. 
Lost in Paris. De Dominique Abel. Com Fiona Gordon, Dominique Abel, Emmanuelle Riva. 
Trata-se de uma comédia quase pastelão, levada a cabo por seus atores-mestres, a Fiona Gordon e o Dominique Abel, coadjuvados brilhantemente pela diva Emmanuelle Riva. 

Tudo se passa como nas comédias clássicas do gordo e o magro, só que os dois são protagonistas são ambos magérrimos, e a história gira em torno de ida de Fiona para encontrar sua tia, Martha, que envia uma carta à sobrinha dizendo que vai embora para Paris porque, com 88 anos, o serviço social quer mandá-la para uma casa de idosos. Só que ao invés de colocar a carta no box do Correio, ela dá uns passos a mais e a coloca no cestão de lixo. Vêm daí quase todas as peripécias, e são muitas, desde a chegada de Fiona a Paris em busca de uma tia que ela não encontra no endereço, nem em lugar algum, além de ela mesma perder-se em várias e hilariantes circunstâncias pela cidade de Paris. Para ver, e divertir-se com uma história de situações engraçadíssimas.


MaMa. De Julio Medem. Com Penélope Cruz, Luis Tosar, Asier Etxeandia, Teo Planell, Alex Brendembühl.
MaMa vem de mama, seio, mas pode também estar relacionado à mãe, porque é a personagem de Penélope Cruz que brilha inteira nesse papel, onde vive uma mulher que - justamente - perde a mama esquerda para um câncer agressivo, no momento eu que o marido está em férias com uma provável amante. Ao mesmo tempo que cuida do filho na ausência do marido, ela se prepara para fazer uma mastectomia. 

O filme é quase didático no que diz respeito à prevenção e tratamento da doença, e quem já passou pela situação se atira com olhos vorazes e um sentimento mais intenso - acho - nos procedimentos todos. Se há essa pegada meio melodramática, não é ela que dá o tom da história, mas o temperamento ativo e alegre de Magda, no encontro que tem com um olheiro de jogo que vê e gosta do filho dela jogando futebol; nos acontecimentos dramáticos que se sucedem na vida desse homem, cujo papel será cada mais importante para os dois - Magda e seu filho. 

Enfim, a história caminha cruzando vidas e destinos trágicos, mas o fio condutor é a vitalidade, a beleza e força que Magda impõe a seu destino, e ao de sua família, já no final, de algum modo, incluído o de seu oncologista-cirurgião-cantor. Eu gostei muito, e todos os atores me pareceram ótimos, Penélope brilha e ilumina a tela. E o garoto joga um bolaço em campo - se foi de verdade, ou encenado, pouco importa. 


quarta-feira, 16 de novembro de 2016

FestRio 2016 - Raw; Robert Doisneau - through the lens; Personal shopper

Raw, de Julia Ducournau. Com Garance Marillier, Ella Rumpf, Rabah Nait Oufelia, Joana Preiss. (Prêmio FIPRESCI em Cannes)

O filme é estranho, lida com o entrelaçamento entre canibalismo e erotismo de um modo bastante inusitado e original. Basicamente, uma jovem de 16 anos entra na Universidade onde seus pais se formaram em Veterinária, e sua irmã mais velha estuda. Na primeira semana ocorrem trotes variados, e já no primeiro ela ela é obrigada a comer um certo bichinho vivo, se bem me lembro - seu primeiro contato com carne, já que até então fora vegetariana.

A partir daí ela começa a fazer outras descobertas, tanto as mais óbvias, ligadas ao sexo e à liberdade de morar fora da casa dos pais, ocasião em que dividirá o quarto com um roommate ambiguamente interessante, quanto aquelas relacionadas ao modo como ela atua e se descobre no ato sexual. Isso faz toda a diferença, e constitui o grande estranhamento do filme - aos poucos, sua irmã revela-se também portadora dos mesmos 'traços genéticos', e a cena final encaminha uma possível explicação, embora inverossímil, a meu ver, a partir de uma pergunta óbvia: mas até aquela idade essa filha jamais vira o pai sem camisa?

De todo modo, o filme prende a atenção, é criativo, jovem, e não dá nem um pouco de aflição, como eu supunha. Mesmo tendo sido advertida para fechar os olhos em algumas poucas cenas, não foi necessário, tudo flui dentro do espírito da coisa toda.

PS.: Penso que a saída de várias pessoas do cinema em Cannes, e uma certa celeuma em torno disso, não tem a ver com algumas cenas serem chocantes ou não, como se divulgou - até porque nem são - mas com falta de paciência. Os espectadores mais velhos perdem fácil a paciência com as diatribes de jovens recém ingressos na faculdade, na vida adulta, no sexo, e aprontando todas. Experiências juvenis, que parecem muito, muito longe de nós, penso.

Robert Doisneau: through the lens, de Clémentine Deroudille. DOC
O que esse doc, dirigido e narrado pela neta, tem de interessantíssimo, será o próprio Doisneau, que vamos conhecer sob diversos ângulos, a partir de pequenos filmes nos quais aparece em situações cotidianas, com a família, com os amigos, em especial Jacques Prévert, pelo relato de suas filhas, curadoras de sua obra, mantida na mesma casa em que moraram sempre. 

Vemos com mais precisão algumas de suas fotos magníficas, e redescobrimos com prazer a história por trás de um de seus trabalhos mais icônicos, pelo relato de sua trajetória: a cena de 'O beijo do Hôtel de Ville' foi encenada em alguns lugares, por atores contratados, e percorreu o mundo como símbolo de amor e liberdade.

Outro aspecto de que gostei muitíssimo foi descobrir como ele era na intimidade, seu bom humor, sua inteligência, a serenidade no olhar e um sorriso meio maroto, além de perceber como a família participava intensamente do seu trabalho - todos de algum modo foram clicados pelo artista, quando ele precisava fazer um trabalho e qualquer pessoa da família se adequava ao tema da foto. 


A filha que conta as histórias nos faz rir, e percebemos que o acervo das fotos de Doisneau, de que ambas cuidam, não é uma herança apenas, mas testemunho de suas histórias, de seu cotidiano, do dia a dia do povo simples das ruas, dos subúrbios, captados em momentos precisos e preciosos, únicos, onde a vida pulsa, o gesto único de um acontecimento ímpar brilha, luminoso, claro, como só o olhar de um artista sensível e forte pode fazer surgir por sua câmera, e nos legar, e a que voltamos sempre, e sempre.   
 
Personal Shopper. De Olivier Assays. Com Kristen Stewart, Sigrid Bouaiziz, Lars Eidinger, Nora von Waldstätten, Ty Olwin.
O filme caminha todo o tempo por linhas múltiplas, há três jogos em cena, ao menos: a história dessa personagem de Kristen, personal shopper de uma estrela meio irascível, que quase nunca tem tempo para nada, menos ainda fazer comprar de roupas caríssimas, o que cabe a essa moça, andando de moto pra cima e pra baixo carregando roupas e acessórios de luxo.
Por outro lado, ela perdeu há pouco o irmão gêmeo, com quem dividia um certo dom de contato com o além, de comunicar-se com os mortos. À medida que a história avança, a função de comprista de moça rica vai cedendo a essa obsessão por "ouvir" as possíveis mensagens do irmão morto, que acontecem - nos copos que caem sem ninguém por perto; numa visita que ela faz a uma casa meio erma, imensa, vazia e decadente, onde há cenas de fantasmas que, em vários momentos, molestam Maureen, são agressivos até. Essa casa ela visita porque está à venda e o comprador quer se certificar de que ela está livre de fantasmas.
E há, por fim, uma história policial, quando Maureen começa a receber mensagens em seu celular de um desconhecido que segue todos os seus movimentos, em vários lugares diferentes, inclusive quando ela vai buscar joias caríssimas para sua patroa usar. Essa história é a que vai prevalecer e, de algum modo, dar o tom final ao filme, e ao enredo.
Gostei de tudo, de todas as linhas que atravessam e se cruzam no roteiro, das atuações, sobretudo a de Kristen, mesmo que não tenha sido um grande personagem, talvez por esse imbricamento de tantos elos. Kristen está tão boa, mesmo quando é regular está bem.

terça-feira, 15 de novembro de 2016

FESTRIO2016 - Paterson; Souvenir; É apenas o fim do mundo

Paterson. De Jim Jarmusch. Com Adam Driver, Golshifteh Farahani, Kara Hayward.

É um grande filme porque entremeia imagem e poesia, observando com delicadeza e simplicidade o dia-a-dia de um jovem casal e seu cachorro de estimação, e este funciona como uma espécie de suporte narrativo para o ritmo da vida cotidiana do motorista de ônibus Paterson, que vive na cidade também de nome Paterson, interpretado por Adam Driver com entrega e verdade. 

O que mais me aproximou da proposta foi a poesia, ou seja, o modo como ela (poesia) pode ser vista, sentida, vivenciada, explorada pelo espírito de qualquer um que a deseje, que a cultive, que dela se aproxime com inteligência e sensibilidade pela palavra, ou cujo olhar para o mundo possa ser expresso pela palavra escrita, e pela síntese poética. Não há poetas no Olimpo, apenas, ele pode estar ali, dirigindo um ônibus, ou compondo um rap, ou no corpo e mente de uma criança esperta com quem cruzamos quase sem querer, e que faz versos, e bons. O espírito, o corpo, o pensamento, a sensibilidade para o sentimento do mundo - tais as ferramentas que Jarmusch utiliza para dotar seu protagonista de rara e leve intensidade e beleza.

Quanto aos comentários com viés de gênero, a respeito do papel secundário da mulher no contexto da vida em comum do casal, expresso no tipo meio voado da esposa de Paterson, eu acredito firmemente que ela é fundamental para a poesia dele - sem ela, ele talvez não fosse o poeta que é: ela é livre, inteligente, empreendedora, belíssima, excêntrica, amorosa e reconhece nele O poeta, A poesia quando ele a diz para ela. Essa a minha percepção, e nenhum interesse tenho em ler o filme pelo viés mais raso dessa oposição binária, que não vejo nele. 

Na síntese do diretor, daqui: “O filme é uma celebração dos pequenos detalhes da vida, por mais simples que sejam”, definiu Jarmusch, na entrevista coletiva do festival."

Souvenir. De Bravo Defurne. Com Isabelle Huppert, Kévin Azais, Johan Leysen. 
Celebração da vida da ex-cantora Laura, meio diva, que no momento presente está no ostracismo e trabalha numa fábrica de patês. 

Um dia ela conhece um jovem boxeador, novo funcionário na fábrica desiludido com as lutas, e ele a reconhece, em razão de um programa famoso de TV, e pela paixão que seu pai nutre pela voz e as canções dela. Isabelle Huppert interpreta a cantora, e seu ar meio blasé, meio decadente imprime veracidade à história de uma vida meio raté, meio ressurgida não apenas pela vontade e persistêcia do jovem admirador, mas pelo engate amoroso que acontece entre eles. Um filme bom, que se vê entre o riso e o prazer.

Mais detalhes, em francês, sobre o filme, aqui

 É apenas o fim do mundoDe Xavier Dolan. Com Léa Seydoux, Marion Cotillard, Vincent Cassel, Nathalie Baye, Gaspard Ulliel.

Achei um dos maiores desastres da carreira desse que considero um diretor especial, original, forte, idiossincrático, meio Almodóvar, com voz própria e talento indiscutível.

Não tenho a menor ideia do que houve para que esse filme não conseguisse chegar a lugar algum - elementos de filmes anteriores dele, muito bons, e bem realizados, aparecem de novo aqui (conflitos familiares, impossibilidade de ser entendido pelas pessoas à volta, mãe forte e auto-centrada etc, etc) mas agora de forma totalmente amorfa, sem que nada se encontre com coisa alguma, nessa encenação de uma morte que se quer anunciada, mas nem isso o protagonista consegue dizer. Ele entra no filme quase mudo, e sai do mesmo jeito, não sem antes protagonizar um desastre - o próprio filme. Pena.