Elle. De Paul Verhoeven, com Isabelle Huppert,
Laurent Lafitte, Anne Consigny, Charles Berling, Virginie Efira, Christian
Berkel, Judith Magre, Jonas Bloquet.
Há várias portas de entrada para ler
esse que me parece o grande filme do ano. Uma delas, a partir da cena em que Michèle,
vivida com maestria absoluta por Isabelle Huppert, conta ao vizinho, quase sem
preâmbulos, com alguma ironia e um tanto de desdém, o acontecimento brutal e extraordinário,
fundador na e de sua infância.
Dele – desse acontecimento - advém em
grande medida o modo de ser da personagem: o que lhe foi exigido ao longo da
vida para superar aquele acontecimento fica claro no modo como administra com
mãos de ferro a empresa de jogos de lutas para videogames, onde lida com jovens
criativos, e impõe-se a eles quando surgem impasses. Em certa fase do projeto em andamento, um dos jovens critica o encaminhamento proposto por ela ao
trabalho, e será então que a senhora definirá, alto e bom som, quem manda naquele negócio, no que constitui um dos
momentos fortes do filme, de onde emerge o mote de uma vida, e com o qual
muitas de nós nos identificamos imediatamente: La patrone c’est moi!
O que nos leva a outra vertente de
leitura, aquela que diz respeito ao empoderamento da mulher contemporânea, ao
modo como ela transforma as forças opressoras em força em si e para si mesma, centrífuga,
para agir no mundo, para impor-se, para sobreviver, para não sucumbir. E isso já
está dado, acho, naquela cena que ela narra ao vizinho, a que me referi acima. No
incêndio que leva sua casa, ela se lembra de achar uma festa aquela fogueira
lambendo tudo, sua alegria infantil com o fogo expandindo-se, talvez como uma
criança ao ver as formas móveis e instáveis das figuras que o fogo produz. Não
importa, o que fica é que ela fez da destruição um campo de luta e de sobrevivência,
com muitas vitórias e algum rescaldo de cinzas em sua alma.
Há nela essa
ausência de sentimentos fortes, uma psicopatia que talvez se possa chamar de “leve”, em face dos acontecimentos que a constituíram. Dessa ausência relativa de
sentimentos, de uma certa aridez afetiva ela constrói um império, sua defesa
dos bárbaros que a agridem, a violentam, tentam aproveitar-se do que construiu, talvez invejem o capital que acumulou. Mas essa aridez tem furos também, e ao longo do filme,
à medida que ela vence seus oponentes, um a um, ela vai-se espraiando em
doações de afeto, do afeto possível, esse território tão inóspito quanto
infranqueado para ela – ao ex-marido, no convite para explicar ao jovem seu trabalho; ao
filho, no convite para fazer o evento da empresa; na possível aceitação final do
neto e da nora.
Uma das cenas mais emblemáticas da
obra, em que seu filho a salva de um possível molestamento, que nada tem a ver
com o que ele supõe ser, talvez seja uma das chaves para ler essa personagem de
altíssima voltagem: ela aceita que ele veja o que pode ver, e aceita o que pode
haver de afeto em sua ação – bárbara e protetora. Tudo é isso, não sendo apenas
isso, a ambiguidade comandando toda e qualquer tentativa de captura dessa
mulher, estranheza absoluta do começo ao fim, que cola em nossa imaginação com
a força e a pregnância construídas com minúcias pelo talento de Huppert. Belíssimo trabalho, num filme indispensável.
PS: Mas o tópico nietzscheano da falta de culpa como força grita sua ausência aqui, e só agora, lendo outros comentários a respeito, me dei conta. Pena.
PS: Mas o tópico nietzscheano da falta de culpa como força grita sua ausência aqui, e só agora, lendo outros comentários a respeito, me dei conta. Pena.