domingo, 21 de fevereiro de 2016
O quarto de Jack
O quarto de Jack (Lenny Abrahamson, 2015). Com Brie Larson, Jacob Tremblay, Joan Allen.
O filme tem origem no livro O quarto, da escritora irlandesa Emma Donoghue, que assina o roteiro e diz não se basear em um caso específico de sequestro, mas no de inúmeras mulheres e crianças mantidas reféns, em várias partes do mundo. O livro faz parte do currículo de leitura em escolas portuguesas, ou seja, possui um conjunto de qualidades que o referendam como exemplar e formador do caráter de jovens, além de ser contado pelo garoto, com senso de humor e ingenuidade, estratégia que também aparece nesta adaptação fílmica, mas talvez sem o mesmo forte rendimento dramático.
O filme tem dois claros momentos: o primeiro, quando Jack acaba de completar cinco anos, e os dois - mãe e filho - se movem no exíguo quarto, de modo a nos fazer compartilhar sua forma de estar ali: móveis e objetos do cotidiano são considerados amigos, que ele cumprimenta e com quem conversa, num recurso anímico que enfatiza a absoluta solidão da criança. Apesar disso, Jack e sua mãe, Joy, perfazem as tarefas do cotidiano com relativa tranquilidade, alegria mesmo, e cabe a nós, espectadores, a sensação claustrofóbica de emparedamento, já que vemos a exiguidade do espaço que os personagens parecem não perceber mais.
O segundo ocorre quando o plano de fuga pensado pela mãe, e empreendido pela criança, acaba dando certo, e os vemos agora no mundo da família, depois de sete anos enclausurada, ela, e desde que nasceu, ele. Aqui, o cerne são as dificuldades inerentes à reconexão com o mundo, para a mãe, e as descobertas que a criança começa a fazer de um universo totalmente desconhecido, que só vislumbrara por escassas imagens de TV .
A história impressiona pela crueldade da situação nela mesma, embora filmicamente ela funcione talvez menos do que no livro, salvo esses momentos em que a emoção se mescla ao sentimento de claustrofobia e, aos poucos, de incredulidade, quando todo o quadro, e a situação, se revelam a nossa compreensão, finalmente.
terça-feira, 16 de fevereiro de 2016
Brooklyn
Brooklyn (John Crowley, EUA, 2015). Com Saiorse Ronan, Domhnall Gleeson, Emory Cohen
Nem foi o filme correto, tampouco a atuação igualmente correta da Saiorse Ronam como Eilis Lacey, que me chamaram a atenção nesse filme que me pareceu exemplarmente regular, mas a imagem de mulher que ele contrói, com pontos de contato e outros de afastamento com relação ao excelente Carol, que se passa também na década de cinquenta, e ainda em cartaz.
Brooklyn explora a vida de uma imigrante irlandesa, uma moça simples e católica, que se muda para o bairro nova-iorquino em busca de uma vida mais rica em experiências, e de emprego. A história flui sem grandes conflitos, nem grandes dramas, salvo os inerentes à vida no exílio: saudades da família, muitas; conquistas profissionais que chegam depois de esforços; amor que chega também de forma simples, sem dramas nem grandes peripécias.
Talvez essa vida sem muitos alardes, esse caminho pela normatividade regulada, e aprovada também pela Igreja, talvez a mediania excessiva, se cabe a antítese, esteja na raiz do contraste que parece haver entre essas duas figuras femininas, tão próximas no tempo em que foram retratadas, e tão distantes uma da outra quanto à figuração de feminino que representam.
Se Carol, personagem de Cate Blanchett, seria antípoda de Eilis Lacey, é possível que Therese Belivet, a personagem de Rooney Mara, seja sua prima-irmã - no que ambas têm de projetos de vida em seus inícios, suas dificuldades, seus sonhos de uma vida melhor, sua vontade de ascender através do trabalho bem feito. Essa proximidade ocorre até mesmo na forma como o tempo medeia as relações amorosas de ambas, em seu vagar, suas pausas, seu ritmo lento.
Mas é a Carol de Blanchett que imprime o vigor, a força, o magnetismo, a segurança, a transgressão e o devir na personagem que, para mim, representa a imagem de mulher que nos traduz, e ainda está em construção, mais de meio século depois. Não apenas no modo como está saindo de seu casamento, mas sobretudo no modo como se liberta da armadilha preparada para que se mantenha presa nele, num dos diálogos mais bonitos e libertadores do filme.
Carol organiza um conjunto de valores, de forças, de temas e de situações que constitui ainda hoje um desafio para a vasta maioria de nós. Mas sem sua coragem e energia estaríamos todas muito aquém dos direitos que vimos desde então arduamente conquistando, e alargando.
segunda-feira, 15 de fevereiro de 2016
O filho de Saul
O filho de Saul (László Nemes, Hungria, 2015). Com Géza Röhrig, Levente Molnár, Urs Rechn, Todd Charmont, Sándor Zsótér.
Um dos filmes mais difíceis que já vi não apenas nos últimos anos, mas em minha vida. Uma experiência estética angustiante, em razão da câmera histérica que não para um segundo de se movimentar em torno desse homem, desse rosto, desse desespero que constitui a insana tentativa para salvar o corpo de um garoto que ele acredita ser seu filho - esse é o traço estético-formal que mais tem chamado a atenção de todos, críticos e espectadores.
Mas é o que se ouve por trás, o que se vê de relance, o que se percebe como sombra, gritos, correrias, dores lancinantes - é do que está em segundo plano que o filme trata, e essa, para mim, foi a angústia cortante que me trespassou ao longo da projeção. A horas tantas, não via mais o homem, mas os cenários que ele percorreu, entrando e saindo dos fornos, pedaços de gente sendo puxadas, filas imensas de pessoas indo 'fazer a desinfecção', covas e tiros e mortos e vivos e pedaços e tudo num amontoado delirante, de que aquele homem me pareceu a metonímia: louco, olhando sem se deter, focado em outro ponto de fuga, em outro lugar dentro dele, irracionalmente duro para fazer cumprir o ritual de um enterro quando a seu lado, atrás, em frente, sob qualquer ângulo, só havia morte e pó.
Uma experiência única, duríssima e desesperante, de devastação.
____
Uma crítica muito boa, aqui:
http://brasil.elpais.com/brasil/2016/01/14/cultura/1452782405_801210.html
Um dos filmes mais difíceis que já vi não apenas nos últimos anos, mas em minha vida. Uma experiência estética angustiante, em razão da câmera histérica que não para um segundo de se movimentar em torno desse homem, desse rosto, desse desespero que constitui a insana tentativa para salvar o corpo de um garoto que ele acredita ser seu filho - esse é o traço estético-formal que mais tem chamado a atenção de todos, críticos e espectadores.
Mas é o que se ouve por trás, o que se vê de relance, o que se percebe como sombra, gritos, correrias, dores lancinantes - é do que está em segundo plano que o filme trata, e essa, para mim, foi a angústia cortante que me trespassou ao longo da projeção. A horas tantas, não via mais o homem, mas os cenários que ele percorreu, entrando e saindo dos fornos, pedaços de gente sendo puxadas, filas imensas de pessoas indo 'fazer a desinfecção', covas e tiros e mortos e vivos e pedaços e tudo num amontoado delirante, de que aquele homem me pareceu a metonímia: louco, olhando sem se deter, focado em outro ponto de fuga, em outro lugar dentro dele, irracionalmente duro para fazer cumprir o ritual de um enterro quando a seu lado, atrás, em frente, sob qualquer ângulo, só havia morte e pó.
Uma experiência única, duríssima e desesperante, de devastação.
____
Uma crítica muito boa, aqui:
http://brasil.elpais.com/brasil/2016/01/14/cultura/1452782405_801210.html
segunda-feira, 8 de fevereiro de 2016
Amy
Amy (Asif Kapadia, 2015).
Com Amy Winehouse, Tony Bennett, Peter Doherty. (Netflix)
Vi com tristeza e perplexidade como uma menina frágil, criada aparentemente sem grandes necessidades materiais, torna-se peça numa engrenagem brutal, inclusive para seu próprio pai, que me pareceu a pior pessoa para ela, até mais do que o namorado-veneno.
Quando ele a aconselha, a pedido dela, e pela primeira vez, que ela não precisa se internar para tratar-se do problema com álcool, ele assina ali a sentença de morte da filha. Nem ela mesma sabia que precisava tanto daquela figura, que se ausentou de sua vida cedo, retorna quando ela começa a fazer sucesso, e depois vai sugando sua energia, trocando-a por vinte dinheiros.
O momento mais cruel desse desamor ocorre quando ela está tentando pela enésima vez se organizar, ter paz, descansar, já muito famosa e rica, o pai vai visitá-la numa ilha linda, e a filma incansavelmente, pede selfies dela com fãs, a menina-mulher um fiapo de gente, e ele implacável, sugando tudo que podia dela, que lhe pede clemência, e ele ignora. Minha conclusão: pais a gente tem o direito de escolher, mas nem sempre consegue, e alguns são tóxicos para os filhos.
De resto, o doc é um retrato realista e cruel do que a mídia pode fazer contra uma celebridade despreparada para o sucesso repentino, que se coloca à mercê dos comentários mais vis, mais baixos, como os que alguns apresentadores de programas de humor estadunidenses fazem com ela. Ninguém quis realmente ajudá-la, nem ela mesma, e depois que a engrenagem de shows e o espetáculo da mídia chegou ao ápice, ela mesma se encarregou de falecer publicamente, e dói vê-la num dos últimos shows, que ela não conseguiu fazer, de tão chapada. Muito tristes - vida, filme.
Mas a voz e as canções persistem, e seguem conosco.
Vi com tristeza e perplexidade como uma menina frágil, criada aparentemente sem grandes necessidades materiais, torna-se peça numa engrenagem brutal, inclusive para seu próprio pai, que me pareceu a pior pessoa para ela, até mais do que o namorado-veneno.
Quando ele a aconselha, a pedido dela, e pela primeira vez, que ela não precisa se internar para tratar-se do problema com álcool, ele assina ali a sentença de morte da filha. Nem ela mesma sabia que precisava tanto daquela figura, que se ausentou de sua vida cedo, retorna quando ela começa a fazer sucesso, e depois vai sugando sua energia, trocando-a por vinte dinheiros.
O momento mais cruel desse desamor ocorre quando ela está tentando pela enésima vez se organizar, ter paz, descansar, já muito famosa e rica, o pai vai visitá-la numa ilha linda, e a filma incansavelmente, pede selfies dela com fãs, a menina-mulher um fiapo de gente, e ele implacável, sugando tudo que podia dela, que lhe pede clemência, e ele ignora. Minha conclusão: pais a gente tem o direito de escolher, mas nem sempre consegue, e alguns são tóxicos para os filhos.
De resto, o doc é um retrato realista e cruel do que a mídia pode fazer contra uma celebridade despreparada para o sucesso repentino, que se coloca à mercê dos comentários mais vis, mais baixos, como os que alguns apresentadores de programas de humor estadunidenses fazem com ela. Ninguém quis realmente ajudá-la, nem ela mesma, e depois que a engrenagem de shows e o espetáculo da mídia chegou ao ápice, ela mesma se encarregou de falecer publicamente, e dói vê-la num dos últimos shows, que ela não conseguiu fazer, de tão chapada. Muito tristes - vida, filme.
Mas a voz e as canções persistem, e seguem conosco.
quinta-feira, 4 de fevereiro de 2016
O regresso
O regresso, Alejandro González Iñárritu (2016). Com Leonardo DiCaprio, Tom Hardy, Domhnall Gleeson etc.
Depois de ver O regresso, a gente sai do cinema pensando que o Iñárritu, ao imaginar o filme, pensou de imediato em Leonardo DiCaprio, e também lembrou de parodiar o verso célebre de Drummond: 'Vai, Leo, ter seu Oscar na vida'. Porque o filme é do Leo, para o Leo, com a alma do Leo, e suas vísceras, quase literalmente. Nem importa mais se ele ganha ou não a estatueta. Acho que o público já deu - eu dou.
Depois de ver O regresso, a gente sai do cinema pensando que o Iñárritu, ao imaginar o filme, pensou de imediato em Leonardo DiCaprio, e também lembrou de parodiar o verso célebre de Drummond: 'Vai, Leo, ter seu Oscar na vida'. Porque o filme é do Leo, para o Leo, com a alma do Leo, e suas vísceras, quase literalmente. Nem importa mais se ele ganha ou não a estatueta. Acho que o público já deu - eu dou.
O filme marca-se por cenas deslumbrantes, em meio a florestas, árvores esplendorosas, altas, belíssimas, por onde os homens se caçam, se perdem, se matam, se acham, se perseguem, se protegem. E por rios, descidas violentas de águas, descidas em remanso, carregando ou não cadáveres, ou feridos. Há também montanhas geladas, e nevascas, e um céu para onde o Hugh Glass, personagem de DiCaprio, olha com certa frequência, de onde sua amada morta lhe sussurra caminhos, modos de se achar naquelas vastidões, ou brenhas.
E se fundamenta no embate entre a força de um homem, vivido por Leo, claro, contra a traição dos pares, que se tornam inimigos; contra os elementos da natureza (nevasca, frio, chuva) e contra a fúria dos animais, aqui representada pela já notória cena de luta entre ele e um urso grande, muito grande, de onde o personagem sai em frangalhos, mas vivo (é ficção, aventura, e invenção, claro). E onde, basicamente, começa sua viagem épica. Pois trata-se de uma jornada épica, de um homem solitário, em busca de vingança contra a traição e em busca de redenção para o filho.
Por isso, é também um filme de cenas estonteantes, de uma violência bruta, bárbara, e duas sobretudo marcam o espectador: a já mencionada luta com o urso, e o agasalho cavalar que ele se oferece a horas tantas, sob forte nevasca. Queria eu poder explicar melhor do que se trata, porque é muito incrível, mas prometi ser menos 'spoilenta', e calo-me. Mas tudo é grandioso ali, e ele vale muito as duas horas e meia. De ação, heroísmo, e muito sangue.
terça-feira, 2 de fevereiro de 2016
Que viva Eisenstein!
‘Que Viva Eisenstein! - 10 Dias que
Abalaram o México’ (Peter Greenaway). Com Elmer Bäck, Luiz Alberti, Stelio Savante, Maya
Zapata.
http://mochilabrasil.uol.com.br/blog/dia-de-muertos-mexico
Pelo trailer, não dava para ver do que o
filme trata, verdadeiramente, e que me pareceu ser a iniciação sexual desse personagem
Eisenstein, que já chega no quarto do hotel em México tirando toda a roupa, ficando
peladão diante dos funcionários e das funcionárias - esses, meio sem saber o que fazer
face ao pênis movente. Por aí já se tem a medida do laissez-faire em que se transformará o tempo – muito mais do que
dez dias – em que o artista tenta fazer um filme, diz que está fazendo, fala
sobre isso com algumas pessoas, elas também meio à deriva na fita, porque o que
importa mesmo, o plot e o cerne do interesse deste filme que vemos, é a relação
que se estabelece entre o meio infantil, em termos afetivos, e totalmente
alucinado, em termos existenciais, Eisenstein, vivido com a precisão dos perdidos, por Bäck, e o rapaz que será seu
acompanhante durante todo o tempo ali, o ótimo Luiz Alberti, com seu olhar ironicamente penetrante.
O filme vagueia meio sem direção em
vários momentos (aliás, Frida Kahlo e Diego Rivera estão na porta do hotel para
saudar o visitante ilustre, sumindo em seguida da tela, e do filme), talvez para
expressar a vanguarda do diretor-personagem, mas é muito firme no propósito de
nada esconder quando se trata da relação sexual explícita, erótica, forte e singelamente
transgressora entre esses dois homens. Parece ter sido o fiat lux de sua
existência, e o filme aposta firmemente no caráter educativo do sexo, ou seja,
em sua função de trazer um conhecimento e uma experiência transcendentais e
fundamentais àquele que vem de um país comunista, com regras extremamente
severas quanto ao uso erótico do corpo, e do sexo entre homens.
Muito interessante também o foco na
naturalidade com que a cultura mexicana lida com a morte, não apenas a pequena
morte do orgasmo, mas a grande morte, através da ludicidade e fantasias que
servem para cooptá-la, fazendo a ligação entre o mundo dos vivos e o dos mortos.
Eisenstein acolhe aquela cultura, em tudo oposta à sua, e entrega-se ao novo
com a mesma fome com que se descobre amante. O filme, em síntese, vale mais
por seu caráter de Bildungsroman, no
sentido erótico, do protagonista, do que por seu possível perfil de um diretor
genial. Esse ficou confuso, e talvez tenha sido a melhor expressão do próprio
Eisenstein, who knows.
Notas:
1) Talvez seja hora de rever o único
outro filme que vi de Greenaway, isso já faz muitos e muitos anos: ‘O
cozinheiro, o ladrão, sua mulher e o amante’ (1989).
2)
No blog abaixo achei comentário e descrição interessantes sobre as
caveiras e as comemorações que ocorrem no Dia dos Mortos em México:
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