quarta-feira, 21 de dezembro de 2016

A chegada

A chegada. Denis Villeneuve, 2016. Com Amy Adams, Jeremy Renner, Forest Whitaker, Michael Stuhlbarg.


E revendo pela segunda vez (porque acho que haverá outras) a gente se encanta, e se vê dentro daquele mundo que parece querer se mostrar o que é - tudo de mentirinha, ou seja, esteticamente comum, tudo tão simples, a 'arquitetura' estética é quase simplória, porque ele prescinde mesmo de pirotecnia, é um sci-fi cheio de sentimentos e sentidos filosóficos profundos. E reverente à mulher. Enfim, uma ficção que rende tributos à mulher, ao sexto sentido da mulher, dando e esse sexto sentido um lugar de proeminência na história, fazendo dele o cerne para a resolução do enigma e do filme - na história, cabe a ela a compreensão da linguagem, a decifração dos signos, dos sentidos, das mensagens, do presente e do futuro. 

Para isso, recebe um dom, ativado por eles, os alienígenas - o dom da percepção, a habilidade de discernir aos poucos o que vai acontecer, a partir da leitura de sua própria história ainda não vivida, mas a que tem acesso. Uma fenda no tempo, ela se constitui; um sexto sentido, ela transpassa. 

Em que momento ela recebe o dom, ou o aprimora? - quando coloca a mão pela primeira vez na barra que separa humanos/não humanos, e que permite ao mesmo tempo uma mediação entre as espécies? Ou quando, já no final, é levada para dentro de uma cápsula menor e lá 'se pare' - ou seja, imerge num espaço/tempo indiscernível, como num parto de-si, de onde sai molhada e sabendo o que fazer?

De todo modo, o filme ganha sempre, até nos momentos mais clichês - por causa dela, pela 'causa' dela, por sua intuição, por sua coragem, sua ousadia, e também (para nós) porque quando ela - professora linguista - começa sua aula, na primeira cena do filme, e inicia uma explicação sobre uma tese a respeito de o Português ter sido uma língua indo-europeia que melhor expressaria a arte, a aula para, e nós queremos saber, eu quero saber. 

Mas o diretor compensa a não resposta, ou melhor, vai além, e transforma a linguagem, uma forma muito especial de linguagem, em comunicação e arte. Palmas para ele, e para toda a equipe - todos excelentes, convincentes, competentes (não é um palíndromo, mas ecoa). Acho que verei de novo.

Por fim, quero muito estar presente daqui a três mil anos, porque: a) quero saber que problema eles enfrentarão; b) quero ajudar. 


sábado, 17 de dezembro de 2016

O anjo de Heleno Godoy

Todo ano, rigorosamente, ele envia um poema natalino para sua lista de amigos. Por alguma razão, que não atino, ele me conservou no coração (e na lista), a despeito de nossa relação de amizade ter existido apenas durante os poucos anos em que trabalhei na Universidade (Federal de Goiás). 

Entramos no mesmo ano (1991), fiquei até 1995, pouco tempo, mas nos respeitávamos e nos admirávamos - eu a ele, muito, com certeza. Uma vez, ele me convidou para conversar com seus alunos de Mestrado sobre A hora da estrela, de Clarice. Amei ter ido, foi uma conversa ótima e frutífera. 

O anjo de Heleno Godoy, poeta goiano dos melhores, a cada ano vai abrindo suas asas para acolher um pedaço do mundo que rui aqui, despenca ali, e percebo que suas ruguinhas adensaram-se neste último encontro, nesta fase terrível de nossa existência, de nosso país. 

Um abraço pra ele, pra Heleno, para nós todos e todas, dessa terra tão devastada. 

"[... a colheita ]
soçobra, a hora espanta, enganos triunfam?
Deixamo-nos reduzir ao que pensávamos
não ser: promessa de haver, sonho acordado,
rosto marcado pela forma como este anjo
vem sempre, sem falha, nesta noite, e nos
impede até o uso de tantas boas palavras. "


sábado, 19 de novembro de 2016

Elle

Elle. De Paul Verhoeven, com Isabelle Huppert, Laurent Lafitte, Anne Consigny, Charles Berling, Virginie Efira, Christian Berkel, Judith Magre, Jonas Bloquet.

Há várias portas de entrada para ler esse que me parece o grande filme do ano. Uma delas, a partir da cena em que Michèle, vivida com maestria absoluta por Isabelle Huppert, conta ao vizinho, quase sem preâmbulos, com alguma ironia e um tanto de desdém, o acontecimento brutal e extraordinário, fundador na e de sua infância.

Dele – desse acontecimento - advém em grande medida o modo de ser da personagem: o que lhe foi exigido ao longo da vida para superar aquele acontecimento fica claro no modo como administra com mãos de ferro a empresa de jogos de lutas para videogames, onde lida com jovens criativos, e impõe-se a eles quando surgem impasses. Em certa fase do projeto em andamento, um dos jovens critica o encaminhamento proposto por ela ao trabalho, e será então que a senhora definirá, alto e bom som, quem manda naquele negócio, no que constitui um dos momentos fortes do filme, de onde emerge o mote de uma vida, e com o qual muitas de nós nos identificamos imediatamente: La patrone c’est moi!  

O que nos leva a outra vertente de leitura, aquela que diz respeito ao empoderamento da mulher contemporânea, ao modo como ela transforma as forças opressoras em força em si e para si mesma, centrífuga, para agir no mundo, para impor-se, para sobreviver, para não sucumbir. E isso já está dado, acho, naquela cena que ela narra ao vizinho, a que me referi acima. No incêndio que leva sua casa, ela se lembra de achar uma festa aquela fogueira lambendo tudo, sua alegria infantil com o fogo expandindo-se, talvez como uma criança ao ver as formas móveis e instáveis das figuras que o fogo produz. Não importa, o que fica é que ela fez da destruição um campo de luta e de sobrevivência, com muitas vitórias e algum rescaldo de cinzas em sua alma. 

Há nela essa ausência de sentimentos fortes, uma psicopatia que talvez se possa chamar de “leve”, em face dos acontecimentos que a constituíram. Dessa ausência relativa de sentimentos, de uma certa aridez afetiva ela constrói um império, sua defesa dos bárbaros que a agridem, a violentam, tentam aproveitar-se do que construiu, talvez invejem o capital que acumulou. Mas essa aridez tem furos também, e ao longo do filme, à medida que ela vence seus oponentes, um a um, ela vai-se espraiando em doações de afeto, do afeto possível, esse território tão inóspito quanto infranqueado para ela – ao ex-marido, no convite para explicar ao jovem seu trabalho; ao filho, no convite para fazer o evento da empresa; na possível aceitação final do neto e da nora.

Uma das cenas mais emblemáticas da obra, em que seu filho a salva de um possível molestamento, que nada tem a ver com o que ele supõe ser, talvez seja uma das chaves para ler essa personagem de altíssima voltagem: ela aceita que ele veja o que pode ver, e aceita o que pode haver de afeto em sua ação – bárbara e protetora. Tudo é isso, não sendo apenas isso, a ambiguidade comandando toda e qualquer tentativa de captura dessa mulher, estranheza absoluta do começo ao fim, que cola em nossa imaginação com a força e a pregnância construídas com minúcias pelo talento de Huppert. Belíssimo trabalho, num filme indispensável.

PS: Mas o tópico nietzscheano da falta de culpa  como força grita sua ausência aqui, e só agora, lendo outros comentários a respeito, me dei conta. Pena.


quinta-feira, 17 de novembro de 2016

FestRio 32016: Dominion; Lost in Paris; MaMa

Dominion. De Steven Bernstein. Com Rhys Ifans, Rodrigo Santoro, John Malkovich, Romola Garai, Zosia Mamet. 

Primeiro uma confissão: fui professora de literatura toda minha vida acadêmica, mas nunca gostei ou participei de saraus literários, pela simples razão de que cada poema, cada livro, cada página de um texto literário pertence à imaginação de quem o lê, de quem dele se apropria. E sempre achei que os saraus servem muito mais à vaidade de quem se 'apresenta' do que à poesia mesma, seja ela dita por um leitor comum, seja pelo autor.

Dito isso, Dominion trata dos últimos dias na vida do poeta galês Dylan Thomas, vivido primorosamente por Rhys Ifans, cuja obra não conheço, mas passei a conhecer um pouco, porque no tempo em que ele viveu (e hoje ainda, creio) se faziam turnês para divulgação de livros considerados best sellers, e as platéias tratavam os artistas da palavra como celebridades. Ele fez uma turnê pelos EUA lendo para jovens universitárias absolutamente enlouquecidas por ele e por sua poesia, ao mesmo tempo em que o filme retrata os últimos momentos dessa viagem, e de sua insaciável imersão no álcool. 


O filme incomoda um pouco nessa exaustiva e extenuante observação de todos os detalhes da descida aos infernos do álcool, tanto mais que o poeta não perde a consciência quase nunca: sofre, fala muito, dá nome à sequência de seus drinques (copos de uísque cheios) e filosofa, até quase o fim, quando chega ao estágio do vômito das próprias fezes.


Quem contracena brilhantemente com ele é nosso ator Rodrigo Santoro, que vive o barman, personagem importante que faz contraponto às falas do poeta, o que Carlos-Rodrigo faz num inglês, para mim, impecável. A horas tantas, e já mais pro fim, chega a estudante que precisa levar o poeta para fazer a palestra, ou ela, a aluna, estará em maus lençóis. Ele não tem condições, está bêbado, e acontece uma cena linda de dança entre ela e Carlos, que me lembrou a clássica cena de Al Pacino em 'Perfume de Mulher' - torço para ela se tornar uma referência, porque achei ótima. Ao final, Carlos se revela mais do que um simples garçom, e saberemos que é também um escritor, e sua função no filme é contrapor-se às falas de um homem que mergulha, cada vez mais fundo, nas impossibilidades de interação com a vida real, essa, no aqui e agora. 


Achei tudo muito bem feito, o ator Rhys Ifans impressiona tanto no apogeu das leituras de seus poemas, quanto na decadência física advinda do alcoolismo; Santoro mostra um desempenho brilhante, de que resulta um filme inquietante, painel claro de uma época em que a palavra escrita, e a poesia, sobretudo, tinha peso, substância, meio irmã que era da filosofia. 
Lost in Paris. De Dominique Abel. Com Fiona Gordon, Dominique Abel, Emmanuelle Riva. 
Trata-se de uma comédia quase pastelão, levada a cabo por seus atores-mestres, a Fiona Gordon e o Dominique Abel, coadjuvados brilhantemente pela diva Emmanuelle Riva. 

Tudo se passa como nas comédias clássicas do gordo e o magro, só que os dois são protagonistas são ambos magérrimos, e a história gira em torno de ida de Fiona para encontrar sua tia, Martha, que envia uma carta à sobrinha dizendo que vai embora para Paris porque, com 88 anos, o serviço social quer mandá-la para uma casa de idosos. Só que ao invés de colocar a carta no box do Correio, ela dá uns passos a mais e a coloca no cestão de lixo. Vêm daí quase todas as peripécias, e são muitas, desde a chegada de Fiona a Paris em busca de uma tia que ela não encontra no endereço, nem em lugar algum, além de ela mesma perder-se em várias e hilariantes circunstâncias pela cidade de Paris. Para ver, e divertir-se com uma história de situações engraçadíssimas.


MaMa. De Julio Medem. Com Penélope Cruz, Luis Tosar, Asier Etxeandia, Teo Planell, Alex Brendembühl.
MaMa vem de mama, seio, mas pode também estar relacionado à mãe, porque é a personagem de Penélope Cruz que brilha inteira nesse papel, onde vive uma mulher que - justamente - perde a mama esquerda para um câncer agressivo, no momento eu que o marido está em férias com uma provável amante. Ao mesmo tempo que cuida do filho na ausência do marido, ela se prepara para fazer uma mastectomia. 

O filme é quase didático no que diz respeito à prevenção e tratamento da doença, e quem já passou pela situação se atira com olhos vorazes e um sentimento mais intenso - acho - nos procedimentos todos. Se há essa pegada meio melodramática, não é ela que dá o tom da história, mas o temperamento ativo e alegre de Magda, no encontro que tem com um olheiro de jogo que vê e gosta do filho dela jogando futebol; nos acontecimentos dramáticos que se sucedem na vida desse homem, cujo papel será cada mais importante para os dois - Magda e seu filho. 

Enfim, a história caminha cruzando vidas e destinos trágicos, mas o fio condutor é a vitalidade, a beleza e força que Magda impõe a seu destino, e ao de sua família, já no final, de algum modo, incluído o de seu oncologista-cirurgião-cantor. Eu gostei muito, e todos os atores me pareceram ótimos, Penélope brilha e ilumina a tela. E o garoto joga um bolaço em campo - se foi de verdade, ou encenado, pouco importa. 


quarta-feira, 16 de novembro de 2016

FestRio 2016 - Raw; Robert Doisneau - through the lens; Personal shopper

Raw, de Julia Ducournau. Com Garance Marillier, Ella Rumpf, Rabah Nait Oufelia, Joana Preiss. (Prêmio FIPRESCI em Cannes)

O filme é estranho, lida com o entrelaçamento entre canibalismo e erotismo de um modo bastante inusitado e original. Basicamente, uma jovem de 16 anos entra na Universidade onde seus pais se formaram em Veterinária, e sua irmã mais velha estuda. Na primeira semana ocorrem trotes variados, e já no primeiro ela ela é obrigada a comer um certo bichinho vivo, se bem me lembro - seu primeiro contato com carne, já que até então fora vegetariana.

A partir daí ela começa a fazer outras descobertas, tanto as mais óbvias, ligadas ao sexo e à liberdade de morar fora da casa dos pais, ocasião em que dividirá o quarto com um roommate ambiguamente interessante, quanto aquelas relacionadas ao modo como ela atua e se descobre no ato sexual. Isso faz toda a diferença, e constitui o grande estranhamento do filme - aos poucos, sua irmã revela-se também portadora dos mesmos 'traços genéticos', e a cena final encaminha uma possível explicação, embora inverossímil, a meu ver, a partir de uma pergunta óbvia: mas até aquela idade essa filha jamais vira o pai sem camisa?

De todo modo, o filme prende a atenção, é criativo, jovem, e não dá nem um pouco de aflição, como eu supunha. Mesmo tendo sido advertida para fechar os olhos em algumas poucas cenas, não foi necessário, tudo flui dentro do espírito da coisa toda.

PS.: Penso que a saída de várias pessoas do cinema em Cannes, e uma certa celeuma em torno disso, não tem a ver com algumas cenas serem chocantes ou não, como se divulgou - até porque nem são - mas com falta de paciência. Os espectadores mais velhos perdem fácil a paciência com as diatribes de jovens recém ingressos na faculdade, na vida adulta, no sexo, e aprontando todas. Experiências juvenis, que parecem muito, muito longe de nós, penso.

Robert Doisneau: through the lens, de Clémentine Deroudille. DOC
O que esse doc, dirigido e narrado pela neta, tem de interessantíssimo, será o próprio Doisneau, que vamos conhecer sob diversos ângulos, a partir de pequenos filmes nos quais aparece em situações cotidianas, com a família, com os amigos, em especial Jacques Prévert, pelo relato de suas filhas, curadoras de sua obra, mantida na mesma casa em que moraram sempre. 

Vemos com mais precisão algumas de suas fotos magníficas, e redescobrimos com prazer a história por trás de um de seus trabalhos mais icônicos, pelo relato de sua trajetória: a cena de 'O beijo do Hôtel de Ville' foi encenada em alguns lugares, por atores contratados, e percorreu o mundo como símbolo de amor e liberdade.

Outro aspecto de que gostei muitíssimo foi descobrir como ele era na intimidade, seu bom humor, sua inteligência, a serenidade no olhar e um sorriso meio maroto, além de perceber como a família participava intensamente do seu trabalho - todos de algum modo foram clicados pelo artista, quando ele precisava fazer um trabalho e qualquer pessoa da família se adequava ao tema da foto. 


A filha que conta as histórias nos faz rir, e percebemos que o acervo das fotos de Doisneau, de que ambas cuidam, não é uma herança apenas, mas testemunho de suas histórias, de seu cotidiano, do dia a dia do povo simples das ruas, dos subúrbios, captados em momentos precisos e preciosos, únicos, onde a vida pulsa, o gesto único de um acontecimento ímpar brilha, luminoso, claro, como só o olhar de um artista sensível e forte pode fazer surgir por sua câmera, e nos legar, e a que voltamos sempre, e sempre.   
 
Personal Shopper. De Olivier Assays. Com Kristen Stewart, Sigrid Bouaiziz, Lars Eidinger, Nora von Waldstätten, Ty Olwin.
O filme caminha todo o tempo por linhas múltiplas, há três jogos em cena, ao menos: a história dessa personagem de Kristen, personal shopper de uma estrela meio irascível, que quase nunca tem tempo para nada, menos ainda fazer comprar de roupas caríssimas, o que cabe a essa moça, andando de moto pra cima e pra baixo carregando roupas e acessórios de luxo.
Por outro lado, ela perdeu há pouco o irmão gêmeo, com quem dividia um certo dom de contato com o além, de comunicar-se com os mortos. À medida que a história avança, a função de comprista de moça rica vai cedendo a essa obsessão por "ouvir" as possíveis mensagens do irmão morto, que acontecem - nos copos que caem sem ninguém por perto; numa visita que ela faz a uma casa meio erma, imensa, vazia e decadente, onde há cenas de fantasmas que, em vários momentos, molestam Maureen, são agressivos até. Essa casa ela visita porque está à venda e o comprador quer se certificar de que ela está livre de fantasmas.
E há, por fim, uma história policial, quando Maureen começa a receber mensagens em seu celular de um desconhecido que segue todos os seus movimentos, em vários lugares diferentes, inclusive quando ela vai buscar joias caríssimas para sua patroa usar. Essa história é a que vai prevalecer e, de algum modo, dar o tom final ao filme, e ao enredo.
Gostei de tudo, de todas as linhas que atravessam e se cruzam no roteiro, das atuações, sobretudo a de Kristen, mesmo que não tenha sido um grande personagem, talvez por esse imbricamento de tantos elos. Kristen está tão boa, mesmo quando é regular está bem.

terça-feira, 15 de novembro de 2016

FESTRIO2016 - Paterson; Souvenir; É apenas o fim do mundo

Paterson. De Jim Jarmusch. Com Adam Driver, Golshifteh Farahani, Kara Hayward.

É um grande filme porque entremeia imagem e poesia, observando com delicadeza e simplicidade o dia-a-dia de um jovem casal e seu cachorro de estimação, e este funciona como uma espécie de suporte narrativo para o ritmo da vida cotidiana do motorista de ônibus Paterson, que vive na cidade também de nome Paterson, interpretado por Adam Driver com entrega e verdade. 

O que mais me aproximou da proposta foi a poesia, ou seja, o modo como ela (poesia) pode ser vista, sentida, vivenciada, explorada pelo espírito de qualquer um que a deseje, que a cultive, que dela se aproxime com inteligência e sensibilidade pela palavra, ou cujo olhar para o mundo possa ser expresso pela palavra escrita, e pela síntese poética. Não há poetas no Olimpo, apenas, ele pode estar ali, dirigindo um ônibus, ou compondo um rap, ou no corpo e mente de uma criança esperta com quem cruzamos quase sem querer, e que faz versos, e bons. O espírito, o corpo, o pensamento, a sensibilidade para o sentimento do mundo - tais as ferramentas que Jarmusch utiliza para dotar seu protagonista de rara e leve intensidade e beleza.

Quanto aos comentários com viés de gênero, a respeito do papel secundário da mulher no contexto da vida em comum do casal, expresso no tipo meio voado da esposa de Paterson, eu acredito firmemente que ela é fundamental para a poesia dele - sem ela, ele talvez não fosse o poeta que é: ela é livre, inteligente, empreendedora, belíssima, excêntrica, amorosa e reconhece nele O poeta, A poesia quando ele a diz para ela. Essa a minha percepção, e nenhum interesse tenho em ler o filme pelo viés mais raso dessa oposição binária, que não vejo nele. 

Na síntese do diretor, daqui: “O filme é uma celebração dos pequenos detalhes da vida, por mais simples que sejam”, definiu Jarmusch, na entrevista coletiva do festival."

Souvenir. De Bravo Defurne. Com Isabelle Huppert, Kévin Azais, Johan Leysen. 
Celebração da vida da ex-cantora Laura, meio diva, que no momento presente está no ostracismo e trabalha numa fábrica de patês. 

Um dia ela conhece um jovem boxeador, novo funcionário na fábrica desiludido com as lutas, e ele a reconhece, em razão de um programa famoso de TV, e pela paixão que seu pai nutre pela voz e as canções dela. Isabelle Huppert interpreta a cantora, e seu ar meio blasé, meio decadente imprime veracidade à história de uma vida meio raté, meio ressurgida não apenas pela vontade e persistêcia do jovem admirador, mas pelo engate amoroso que acontece entre eles. Um filme bom, que se vê entre o riso e o prazer.

Mais detalhes, em francês, sobre o filme, aqui

 É apenas o fim do mundoDe Xavier Dolan. Com Léa Seydoux, Marion Cotillard, Vincent Cassel, Nathalie Baye, Gaspard Ulliel.

Achei um dos maiores desastres da carreira desse que considero um diretor especial, original, forte, idiossincrático, meio Almodóvar, com voz própria e talento indiscutível.

Não tenho a menor ideia do que houve para que esse filme não conseguisse chegar a lugar algum - elementos de filmes anteriores dele, muito bons, e bem realizados, aparecem de novo aqui (conflitos familiares, impossibilidade de ser entendido pelas pessoas à volta, mãe forte e auto-centrada etc, etc) mas agora de forma totalmente amorfa, sem que nada se encontre com coisa alguma, nessa encenação de uma morte que se quer anunciada, mas nem isso o protagonista consegue dizer. Ele entra no filme quase mudo, e sai do mesmo jeito, não sem antes protagonizar um desastre - o próprio filme. Pena.


quinta-feira, 20 de outubro de 2016

FESTRIO 2016: A vida de uma mulher; Paraíso; Divinas Divas; O monstro do armário



A vida de uma mulher. De Stéphane Brizé. Com Judith Chemia, Jean-Pierre Darroussin, Yolande Moreau, Swann Arlaud, Nina Meurisse.

Filme bem feitíssimo, longuíssimo, cuja temática me repele um pouco, porque fico impaciente com filmes de época cuja protagonista tem o centro de seu mundo voltado para um casamento com alguém que tenha tantos bens quanto a família dela, que é ingênua e acredita no amor, e com o tempo e as aprontações do marido, um cretino sem tamanho, ela vai percebendo que a vida é mesmo muito injusta com a mulher, sobretudo no início do século XIX. Então, é só ver padecimentos, e o tanto de caminho que herdamos, e que ainda temos que andar. Fim.

Paraíso. De Andrei Konchalovsky. Com Julia Vysotskaya, Christian Clauss, Phillippe Duquesne.

Um dos filmes mais impressionantes que já vi sobre holocausto, e sua forte estranheza reside em tratar de um novo ângulo a questão que já foi abordada em tantas outras produções. 

Aqui, não vemos diretamente os acontecimentos, mas a incessante atividade de alguns personagens, que traficam coisas, objetos, identidades, tudo que foi tomado dos prisioneiros enquanto iam ou se encontravam prestes a ir para as câmaras de gás. O choque é ver ao fundo das cenas centenas de pessoas indo como gado para a morte, e em grandes closes, imensos rostos de outros judeus que negociam objetos, tudo que pode ser trocado, vendido, enquanto o genocídio fica como pano de fundo dessa traficância, o que, de certo modo, expõe ainda mais fundamente o horror. 

O filme explora também de modo inusual um caso de amor, ou de paixão, entre um nazista aristocrata e uma sedutora russa, acusada de esconder crianças judias na França ocupada. Ao ser capturada, ela acaba sendo vista por esse homem, cujo desejo por ela revemos em flash backs, em que se contrasta a vida livre e sedutora dos ricos e belos naquele tempo, com o estado atual dela, e dele. Essa mulher, Olga, já era desejada então, e o encontro com o antigo admirador vai-lhe render alguns privilégios, além da sujeição ao sexo. Enfim, um filme potente, com closes fortes o tempo todo, um ritmo intenso, filmado em preto branco, o que lhe confere a intensidade do que me pareceu uma obra de arte. 

Divinas Divas, de Leandra Leal. DOC com Rogéria, Jane Di Castro, Divina Valéria, Camille K, Eloina dos Leopardos, Fujika de Halliday, Marquesa e Brigitte de Búzios.

Achei muito bom o tom geral desse documentário sobre nossas grandes divas queens, sobretudo pelo modo como  Leandra Leal aproxima-se delas - não é piegas, não condescende, ao contrário, é bonito, tocante, mesmo sem se que ela permita envolver-se demais por sua história pessoal e profissional, muito ligada ao surgimento delas no Teatro Rival, que a diretora herdou de seu avô, e onde a maioria das estrelas começou sua carreira. 

Achei bonito e digno também a história de cada uma, como elas conseguiram superar não apenas circunstâncias pessoais de preconceito, mas a barra pesada que foi para todos nós, mas para elas especialmente, o período da ditadura, de que todos fomos contemporâneos.

 
O monstro do armário, de Jack Arnold. Com Richard Carlsson, Julia Adams, Richard Denning, Antonio Moreno.

Já foi visto há muito tempo, não lembro de detalhes, mas sei que gostei.    

quinta-feira, 13 de outubro de 2016

FestRio 2016 - Os belos dias de Aranjuez; Loving; Voyage of time; O ornitólogo

Os belos dias de Aranjuez, de Win Wenders, com Reda Kateb, Sophie Semin, Jens Harzer, Nick Cave.

Entendi finalmente a importância do 3D para Wenders – aqui, esse modo de filmar torna-se imprescindível, um achado mesmo. O filme é muito bom, um legítimo Wenders no sentido de que é cinema de arte, sem concessões, e ocorre do seguinte modo: um escritor senta-se em sua mesa de trabalho, acompanhamos seu processo de escrita e seu olhar para fora da sala, e da máquina de escrever, e vemos um casal conversando - são os personagens que ele está criando, presentificando-se no filme que vemos.

Eles conversam sentados em torno de uma mesa redonda, e a sua volta um jardim deslumbrante, absolutamente local de todas as delícias da beleza natural, expande-se a nosso olhar por graça e obra do 3D, nunca antes visto dessa maneira por mim - cada detalhe das plantas, das cores, da brisa que faz esvoaçar folhas, flores, tudo é paradisíaco. 

A conversa gira em torno de histórias da vida de ambos, cujos termos são previamente combinados, como encenadas num palco, como falas de personagens de um teatro. Eles falam de sua infância, dos amores, da primeira vez etc - ela, mais que ele. Essas conversas não são entrelaçadas, são meio soltas – ela fala dela, ele ouve, depois ele fala sobre a experiência dele em Aranjuez, mas não há relação entre o que ela diz, e o que ele responde, ou melhor, ele não responde, ele encena sua fala. 

Num certo momento, ela se empolga com a questão do amor, do sentido do amor para a mulher que ela é, e diz umas coisas muito estranhas, para mim, sobre a majestade do amor submisso, de um tipo de amor de mulher que se entrega a um homem e que diz ‘sim’ a uma espécie de submissão, ou seja, tudo que nós, mulheres, hoje, refutamos. Mas no contexto de tudo que diz, do modo como vê esse ato como entrega total, acho que faz sentido. Na verdade, tudo é tão puramente encenado ali, que fica difícil trazer as experiências relatadas por ambos para a vida real, ou lhes emprestar nossos valores. E há vários níveis de encenação: o escritor que escreve e ouve músicas de Nick Cave, que depois aparece ele mesmo tocando uma canção romântica; a conversa entre o homem e a mulher, cujos temas e o modo de abordagem foram pactuados entre eles, teatro, portanto; há todo o tempo em cima da mesa do escritor uma pequena maquete da cenografia onde ocorre a conversa do casal: uma mesa redonda e duas cadeiras vazias. 

Enfim, o filme é puramente arte, encenação, e deslumbramento causado pela paisagem capturada por essa técnica em 3D, em seu pleno estado de arte: cada folha, cada flor, cada planta, tudo tem vida, é pulsante, lindíssimo - tive vontade várias vezes de fotografar as flores, ou de comê-las. 

Gostei muito de 'Loving' (Jeff Nichols. Com Ruff Nega, Joel Edgerton, Michael Shannon, Marton Csokas) porque trata da primeira família interracial na Virgínia, que luta durante mais de 10 anos na justiça, e ganha na Suprema Corte, o direito ao casamento, e consequentes direitos civis. As duas horas do filme passam leve, nada atrapalha nosso interesse pelo sucesso daqueles dois. Filme ótimo, inteiro em seus valores e bem conduzido sempre.

Já 'Voyage of time: Life's journey', super esperado Doc do Terrence Malick, me pareceu um percurso longo por todos os cantos do planeta, com imagens estonteantes, de beleza acachapante, de ar, terra, fogo, mar, com privilégio desse último, de seus seres estranhos e magníficos, alguns dos quais já vistos em Docs do National Geographic, via Netflix. Um detalhe: a voz narrativa é bela, mas repete-se bastante sua interpelação à mãe terra; e nós, humanos, quando aparecemos, não estamos bem na fita. Na verdade, somos os scumbags of the earth. Ressalto ainda que a fotografia é de uma qualidade desconcertante - tudo se vê nos mínimos detalhes, até lágrima em pedra (rs).

O ornitólogo, de João Pedro Rodrigues. Com Paul Hamy, Xelo Cagiao, João Pedro Rodrigues, Han Wen, Chan Suan. Trata-se de um filme franco-português meio inacreditável, que trata do seguinte: um estudioso de aves está observando cegonhas negras, espécie em extinção. Em certo momento ele entra no caiaque, para ir embora, e se distrai olhando mais uma vez seus pássaros queridos. Acontece o que a gente já sabe: o rio tem rios corredeiras, o caiaque vira, e ele será encontrado mais tarde, desacordado, por duas chinesas meio loucas, que estão perdidas na mata. A partir daqui, senhores, eu não posso dizer que a coisa flui, porque a perdição do homem foi a perdição do filme.


A gente entende que a proposta talvez tenha sido a de construir uma fábula sobre a transformação do homem sob situações difíceis, extremas, mas a coisa toda degringola de tal maneira, vira uma história sem pé nem cabeça, e ao final a redenção acontece, meio que na marra, ou seja, infringindo todas as leis de uma lógica qualquer, ou de uma certa verossimilhança, mesmo fílmica. A paisagem é muito bonita, mesmo, mas esse filme foi visto depois do deslumbre de fotografia do filme de Malick, então achei meio embaçadas até mesmo as cores dos vastos ambientes que, me parece, constituem suas melhores qualidades.

FestRio 2016 - Capitão Fantástico; A canção do por do sol; Nocturama

Capitão Fantástico, de Matt Ross, com Miggo Mortensen, Ann Dowd, Charlie Shotwell, Elijah, Stevenson, Erin Moriarty, Galen Osier e outros.
Um filme ótimo, cheio de valores nobres no modo como o pai decide criar os cinco filhos no meio da floresta, depois que sua mãe parte em busca de tratamento para TOC. Ele mantém todos ocupadíssimos, com agenda para várias atividades, que devem ser cumpridas como se na escola estivessem. Na verdade, a educação deles é esmeradíssima, semelhante aos valores clássicos, em que mente e corpo são adestrados em seus limites, para melhor saúde da alma e do corpo. Até que uma notícia trágica os leva de volta à cidade e alguns problemas tornam-se incontornáveis. É bonito ver como a liberdade e a transparência podem, idealmente, unir e tornar forte uma família, frutificar em seres interessantes e possantes. O filme é pra cima, bonito, e nos comove, nos dá esperanças.

A canção do por do sol, de Terence Davies, com Agyness Deyn, Peter Mullan, Kevin Guthrie. Trata-se de um filme longuíssimo, a  história de uma moça, Chris, cheia de afazeres na fazenda onde nasceu, cujo pai é violento, bate no irmão com fúria, até o dia em que ele parte, ela cresce, seu pai morre (e precisava mesmo, era um cão), ela conhece um rapaz de nome Ewan, eles se casam, são felizes por um tempo até que a eclosão da Primeira Guerra leva o rapaz aos campos de batalha, de onde ele volta uma vez extremamente violento, e depois o vemos ser fuzilado por deserção. O filme é rigorosamente isso, mas tem para salvá-lo em suas duas longas horas uma paisagem deslumbrante do campo, do milharal, das imensidões. Então, para mim, o filme valeu pela fotografia, a história não me disse nada.

Nocturama, de Bertrand Bonello, com Finnegan Oldfield, Vincent Rottiers, Hamza Meziani, só vi até talvez a metade porque fiquei impaciente com o vaivém dos personagens, cada um fazendo uma coisa em um lugar diferente, sem aparente ligação. Mas a história gira em torno de um grupo de jovens da periferia que realiza uma série de ataques em Paris, e o modo de encenar o encontro dos jovens, pelo menos até onde vi, me irritou, porque é aquela coisa meio elétrica de focar um fazendo uma coisa, depois outro, e assim segue, as coisas são filmadas soltas, para mais tarde, provavelmente, fazer sentido. Eu logo perdi o interesse, e não pude saber como aqueles fios soltos se juntaram e deram um curto circuito geral, hélas.

segunda-feira, 10 de outubro de 2016

FESTRIO 2016 - Eu, Daniel Blake

     Assisti no domingo, e acho imperativo ver "Eu, Daniel Blake", do Ken Loach - magistral, vencedor da Palma de Ouro de Cannes com louvor. Um painel sucinto e perfeito do que está posto para nós depois do golpe. Lá, como cá, tiraram e tirarão ainda mais nosso chão, e nossa dignidade.
     O filme trata de vida de um marceneiro, ou seja, um trabalhador de ofício, logo, algo que está entre a arte e a grande produção. Ele tem orgulho do que faz, o que em si já o distingue do trabalhador assalariado comum. Esse homem, Daniel Blake, sofre um ataque cardíaco, está em processo de recuperação, e enquanto acompanhamos seu périplo em busca da ajuda financeira do Estado, a que tem direito, ele se depara com uma jovem, Katie, e seus dois filhos, despejados do apartamento onde moravam em Londres e, sem opção, enviados para nova moradia, nessa outra cidade, New Castle, distante da família, da escola dos filhos.
     Quem conhece o universo de Kafka vai entender rapidamente o nonsense das situações vividas por Blake pelos meandros da burocracia estatal, que não está ali para ajudá-lo, mas para apagar seu nome do sistema de 'necessitados', numa política de massacre dos direitos trabalhistas que recém divisamos, a partir do golpe político-midiático-parlamentar instalado no país. Apesar de todas as adversidades, o homem aproxima-se dessa família de modo solidário e ativo, ajuda no que pode e como pode - são todos náufragos de um barco célere que os leva contra as altas ondas, os rochedos, e eles - os pobres, os sem emprego, os sem salário, os que têm fome - lutam como podem para sobreviver.
     O filme é de uma simplicidade acachapante e, por isso mesmo, de uma força devastadora. Aplaudimos no final, pela síntese perfeita que Loach nos oferece do mundo a ruir não apenas para uma Europa castigada, mas para nós, os periféricos, os que ainda vão provar com mais intensidade do pão amargo que os tempos nos trouxeram.
     E eu, que vivi 20 anos de minha juventude numa ditadura, que vivi também o arrocho do governo psdbista de FHC, eu saí triste e cabisbaixa. Me sinto cansada para os novos tempos, e as próximas lutas.


sábado, 8 de outubro de 2016

FESTRIO 2016 - Certas Mulheres; O mistério da Costa Coral

Dois filmes interessantes vistos ontem:

Certas Mulheres, de Kelly Reichardt, com as excelentes Michelle Williams, Kristen Stewart, Laura Dern e uma quarta extraordinária atriz, Lily Gladstone, que fala pouquíssimo, mas cujo olhar e atuação marcam intensamente o espectador, ou essa espectadora, embora pouca gente mencione seu nome. O filme trata de um momento, ou momentos, na vida dessas quatro mulheres, suas atividades e a forma como resolvem os problemas que lhes aparecem, em geral no campo profissional, e na vida familiar. Elas são pessoas comuns, e ao mesmo tempo singulares, porque inteiras no modo de estar na vida, íntegras consigo mesmas, e imprimem uma certa soberania a seus atos, os comuns, aqueles que praticamos, de um modo ou de outro, quase sem nos darmos conta. A diretora recorta e olha com atenção e perspicácia para essas mulheres, afirma e enfatiza a força dos gestos simples, das buscas, dos afetos, de suas possibilidades e desencontros. Tudo de forma delicada, sem alardes, quase num sussurro. Excelente filme.

O segundo foi um filme estranhíssimo, O mistério da Costa Chanel, do francês Bruno Dumont, um com Juliette Binoche, Fabricio Luchini, Valeria Tedesco, Brandon Lavieville e outros, cuja história parece muito simples :  uma família burguesa vai passar o verão em sua mansão no norte da França, em Baía Slack, e para atravessar o mar na maré baixa, precisam da ajuda de barqueiros pobres da região, que os carrega no colo, ou em barquinhos. Daí alguns visitantes começam a desaparecer, e um policial estranhíssimo porque imensamente roliço, a ponto de descer as dunas rolando, e seus ajudantes, começam a investigar tais desaparecimentos. Isso rende as cenas mais engraçadas, mas há ainda toda uma encenação quase grotesca no exagero dos atores do núcleo de burgueses: todos são caricatos, atuam para acentuar suas distorções de classe, e não sei se esse excesso resulta no que propõe. Eu, particularmente, achei chatas aquelas cenas super-mega-over dos integrantes do clã. Mais esquisito ainda é o núcleo oposto, o das pessoas simples quem servem aos burgueses – dizer que eles são canibais talvez ajude a entender o quão bizarro tudo parece ser. Para completar esse mundo de estranhezas alguns personagens voam – isso mesmo, literalmente voam, sem quê, nem por quê. Esse o filme que vi. Nem belo, nem chato. Esquisito, estranho. 

terça-feira, 6 de setembro de 2016

Onze semanas


Onze semanas, de Ernani Lemos (Portugal, Chiado Editora, 2015), é um romance sobre a difícil relação entre Claudia e sua filha Meg, que se encontram no momento final da vida da mãe, por conta de uma doença, e a quem a filha jamais perdoou o abandono.

No leito do hospital, vamos acompanhar essa difícil reaproximação entre as duas, a partir de pequenos relatos de Claudia, movidos a emoção e dor, feitos a partir de pedaços de um diário que ela escreveu exatamente para tentar explicar à filha o que estava na base daquele abandono, que segredos envolveram suas escolhas, suas decisões de afastá-la de si por duas vezes, o que praticamente inviabilizou a vida afetiva da filha, que carrega o forte sentimento de rejeição desde sempre, e a sensação de que o amor só pode machucar. 

O pacto narrativo organiza-se em torno de um mistério, e esse mistério envolve mãe e filha - já aí temos uma linha de interesse tanto universal, quanto particular: relações familiares conflituosas estão na base das grandes tragédias, de que Édipo seria um dos fortes paradigmas; mais ainda, o mistério promete ser desvendado a partir de uma voz narrativa, a da mãe, que está à beira da morte, vítima de um câncer terminal, o que de imediato deflagra a cumplicidade de mulheres, mães ou não, porque todos nós somos filhos de uma mulher, e sendo filha/filho, há conflito, e a história desde já nos pertence; além disso, o recurso que a mãe utiliza para ir esclarecendo aos poucos os segredos que a filha busca sobre a mãe, sobre seu abandono e, logo, sobre o vazio que constituiu desde sempre sua vida, sua história - esse recurso é ir entregando aos poucos páginas de um diário que ela escreveu, caso um dia a filha viesse procurá-la. 

Esse diário "aos pedaços", como a história de ambas as personagens, cria no leitor uma curiosidade crescente por seu desenrolar, e o que ele relata é motivo de conversas entre mãe e filha, de forma que o passado caminha unido ao presente ao longo da leitura do romance, e vai ficando cada vez mais difícil para o leitor abandonar aquela busca, agora de ambas, por um ponto em comum, ou seja, para a descoberta que fazem uma da outra, e do que as separou. 

Sim, claro, temos aí vários elementos para uma história que facilmente escorregaria para o piegas, mas essa é uma das ótimas qualidades do romance: muito raramente ocorre um ou outro deslize nesse campo. Via de regra, o que se impõe é uma história muitíssimo bem contada, e muito bem construída, utilizando técnicas narrativas bem exploradas, que levam o leitor ao passado e ao presente, cada vez mais ansioso para ver unidas essas duas pontas do tempo, e essas duas vidas, de que já somos cúmplices, torcemos pelo encontro e, por que não, pela redenção de uma, e o perdão da outra.

Os núcleos narrativos giram em torno, pois, da saga dessa família, composta por Claudia, a mãe; Paul, com quem ela se casa aos 14 anos, já grávida de Meg; Eric, o segundo filho, e um dos polos de afeto de Meg; Sandra, a tia com quem Meg vive alguns anos, e referência de amor materno para ela - todos os personagens imbricam-se nessa falta constituinte da personagem-filha que, de certa forma, conduz a narrativa em torno das perguntas cruciais, dos sentimentos de raiva e ressentimento contra o que ela vê como negligência da mãe - e o vazio inexorável que tais sentimentos produziram nela.

O autor vai nos aproximando aos poucos da história que Claudia vai reconstituindo para a filha, e vemos os personagens mudar, crescer, interagir, tentando entender os segredos, os dramas, as dores, os encontros possíveis e impossíveis, no presente e passado, ao mesmo tempo que as perspectivas de ambas a respeito das situações vão sendo desenoveladas lentamente, de modo que a partir de um certo momento estamos capturados, não há mais como sair daquele mundo narrativo e emocional até que a última página do diário seja lido, a frase que contém o segredo seja escrita e compartilhada, e o mundo possa começar a fazer sentido, enfim, para Meg - e para nós. 

O final talvez seja o possível para o momento da personagem, e o mais adequado para a economia do romance, mas ele nos deixa também uma brecha para acreditar que o poodle Azul venha um dia a conviver com o Fred, e torcemos para que isso venha a ocorrer. Afinal, Meg já faz parte de nossa família - a família escolhida.

quinta-feira, 1 de setembro de 2016

Aquarius

Aquarius - Dir. Kleber Mendonça Filho, 2016. Com Sonia Braga, Maeve Jinkings, Irandhir Santos, Humberto Carrão, Carla Ribas.

Aquarius é obrigatório, agora para maiores de 16 anos, porque é um filme raro, uma pedra preciosa, uma gema valiosa: um filme sobre a maturidade de uma mulher, sobre os laços, entrelaçamentos e guardados afetivos que permanecem na vida e na memória dessa senhora, belissimamente vivida, com sobriedade e sabedoria, por Sonia Braga e seus cabelos deslumbrantes, sua arte, doçura, talento, força, garra.

O filme é todo importante, tem um tempo diferente, longo, mas absolutamente necessário, porque esse tempo diz respeito às sensações, às emoções, aos sentimentos presentes e passados, sendo também um tempo de vinha que matura, como aquele momento em que ela diz  que está "tentando matar aquela garrafa de vinho" e faz outra coisa.

Percebe-se nitidamente que os atores todos abraçaram-se àquele projeto - de dentro do Edifício Aquarius projeta-se um filme que emana afeto, olhares intensos, fraternos, cúmplices entre todos os integrantes - há sorrisos, abraços, tragadas, conversas, danças; há desejos, cenas outrora-agora entre amantes, seres intensamente vivos, presentes, atuantes nas vidas de antes, e nas vidas dos que estão aqui, agora. 

E Clara - presente forte que Sonia Braga construiu e nos ofertou, nesse momento tão necessário em que se tenta cercar o país de arides e deserto, em que os cupins e suas ranhuras aparecem sobre nossas mesas, casas, paredes. Ela nos diz que é possível chamar Irandhir/Roberval, o bombeiro de terno coração e sorriso irrepreensível: ele ajudará, e outros, e outras.

Clara não está só, e tudo é muito bom de ver.

quinta-feira, 4 de agosto de 2016

Não só de pão

Nem só de pão

Da varanda do quinto andar ela viu o homem idoso, muito magro, caminhando com dificuldade, dando um passinho, bem devagar, depois outro, e parar por vários minutos, recuperando o fôlego, para tentar arrancar nova passada, lenta.

Ela já o vira antes, nesse mesmo percurso, de uma ponta a outra do quarteirão, duas calçadas compridas, cuja travessia custava ao homem uma eternidade. Na esquina da rua, ele parou, ficou um tempo em pé, segurando no poste encimado pelo nome da rua. Depois foi-se arrastando e sentou no parapeito do jardim, ofegante.

Ela olhava lá de cima, atenta, curiosa, querendo entender por que tanto esforço naquele corpo magro. Até que ele acendeu o cigarro – era para isso, para fumar escondido, todo esforço e sacrifício daqueles passos trôpegos. O corpo magro, quase esquálido, mostra que a calçada, tortuosa embora, é o espaço inescapável do prazer, e do tormento.

Fuma por um tempo, e se levanta, devagar, começando o caminho de volta. Apoia-se na parede e avança dois passos, para diante da obra no caminho, estaca e descansa longamente em pé - ele fica longamente parado no meio da calçada, equilibrando-se.

Dois garotos de uniforme vêm conversando em sua direção, brincando, e ela se angustia – se encostarem nele, apenas triscarem nele, o derrubam, e os ossos à mostra se quebrarão. Mas eles se esquivam, pressentem talvez o desastre, e seguem seu caminho. O velho passa do portão onde deveria entrar – ela sabia que ele morava ali, já o observara nesse mesmo percurso antes. 

Dessa vez ele seguiu, passos cada vez mais trôpegos, até a esquina, e parou. E ficou lá, olhando para o outro lado da rua. Ela pensou: ele quer atravessar, mas não pode – se o fizer, com suas passadas lentíssimas, será atropelado.

Ela segue a cena – ele parado, instável, hesitante, na esquina do prédio e da rua. As pessoas passam por ele, ela teme, vendo lá do alto, que alguém esbarre nele e o derrube. Ela decide descer, ver se ele quer atravessar, ajudá-lo, fazer parar os carros para que seus ossos passem. Desce, chega perto e pergunta: o senhor quer atravessar? Ele responde baixo, voz rouca, quase inaudível, mostrando uma nota de cinco reais: quatro pãezinhos, por favor, e olha em direção à padaria em frente. Ah, era isso. Ela pega o dinheiro, atravessa a rua. Está aflita, sentindo que ele deve estar no limite de suas forças, tanto tempo em pé, pode desabar a qualquer momento.

Ela compra os pães, fala com as moças da padaria sobre ele, aponta do outro lado, diz – como o deixam sair sozinho, tão frágil? A moça no caixa responde: ele sai pra fumar escondido.

Ela leva os pães, entrega a ele, pergunta coisas: qual o seu nome? – Abílio. O senhor mora sozinho? Ele, baixinho, quase inaudível – Com a nora. Pergunta onde ela mora, ela aponta o prédio, diz que o viu da varanda. Ele segura seu braço com força, caminham devagar de volta a seu portão. Antes de chegar, ele pede a sacola com os pães, diz que ali está bom, pode deixá-lo. Ela deixa, mas bate no portão e chama o porteiro: - esse senhor precisa de ajuda, ele mora aqui. 


quarta-feira, 27 de julho de 2016

O monstro - leitura de um conto de Sérgio Sant'Anna

UM GOLPE DE MESTRE - Sobre um conto de Sérgio Sant'Anna 
                       (Vera Queiroz)

Há uma relação estreita entre os procedimentos narrativos que organizam a obra de Sérgio Sant'Anna, desde o livro inicial de contos Os sobreviventes, de 1969, chegando até o romance Um crime delicado (1998): em todas as novelas, contos e romances aparece o visceral desejo de experimentação da linguagem ficcional, e em cada uma das obras o autor radicaliza a pesquisa sobre os processos de narração, empenhando-se na criação de um estilo absolutamente original, que lhe tem conferido um lugar ímpar no cânone brasileiro, e diversos prêmios literários, entre eles três Jabutis.


Com O monstro não é diferente: trata-se de um conto exemplar quanto à exploração de linguagens que se superpõem, criando um universo multifacetado cujo resultado surpreende e captura o leitor, fascinado pelo constante estranhamento a que é submetido no processo de leitura, em que se mesclam os discursos jornalístico, jurídico e a reflexão filosófica acurada, e onde os rituais de transgressão são descritos de forma minimal, cooptando o leitor e tornando-o cúmplice, de algum modo, desse narrador voyeur e perverso. Inscrito no que a crítica, não sem controvérsias, tem chamado de literatura pós-moderna, o texto de Sant'Anna reflete sobre vários tipos de discurso, reduplicando-os magistralmente, de modo a criar um espelho que refrata textos e gêneros, personagens e consciências que os reduplicam, vozes que falam por si e por outros, subsumidos todos pela hábil manipulação desse mago desconstrutor de realidades.

A narrativa abre-se com uma peça jurídica perfeita. Trata-se de um relatório tendencioso contra o réu, Antenor Lott Marçal, 45 anos, acusado de cometer, junto com a cúmplice, Marieta de Castro, um crime hediondo: o estupro e assassinato da jovem e bela Frederica Stucker, com o agravante de que a vítima sofria de forte deficiência visual. O relatório obedece a todos os imperativos formais e jurídicos, inerentes a tal tipo de peça: há a descrição sumária dos envolvidos e do crime, o onde, o como, o porquê, em quatro parágrafos concisos e exemplares. O aspecto tendencioso mostra-se em recursos de enunciação que sublinham o ponto de vista do narrador, contrário ao réu, em frases como "drogada por seus algozes", "atraiu Frederica para aquela cilada", "surpreenderam dos policiais aos juízes" etc. Em seguida ao relatório, o narrador faz um briefing, em linguagem jornalística, apresentando a entrevista que se vai ler e tecendo comentários sobre o teor da matéria, que atiçam a curiosidade do leitor não apenas sobre os fatos que ele vai conhecer, em sua versão real, porque contada pelo autor, mas porque ele vai entrar em contato com algo possivelmente abominável, conforme insinua o narrador-jornalista, em frases como "o resultado dos encontros [...] surpreendeu até o jornalista habituado a conviver profissionalmente com os mais diferentes tipos de caráter humano" [SANT'ANNA, 1997:607], sugerindo que esse caráter, em particular, é especialmente monstruoso. Técnica jornalística, sem dúvida, mas também recurso literário que se sobrepõe no horizonte de expectativas do leitor, em sua relação com o texto, já que o pacto firmado entre ambos se dá na clave da ficção (pois trata-se aqui de um conto). A partir de então, o que se tem é o desenvolvimento de um outro tipo de expertise discursiva, em que o gênero jornalístico é explorado através da encenação de uma entrevista, supostamente dada pelo protagonista ao jornalista de Flagrante - note-se o campo semântico do nome dado ao jornal, que remete para o instantâneo, para a presentificação do fato, além de dialogar de modo claro com a linguagem policial.


É na entrevista que o leitor vai sendo apresentado a um sujeito (o réu) extremamente lúcido, cujo domínio completo da linguagem e das formas de expressão do pensamento o qualificam para a profissão que exerce: professor de filosofia. Aqui, Sant'Anna explora de forma magistral as contradições que residem na raiz mesma do comportamento humano, em sociedades complexas que, por sua estrutura heterogênea e por suas profundas desigualdades, pelo esgarçamento dos mínimos valores ─ éticos, morais, políticos, sociais ─ tornam-se permeáveis a todo tipo de perversão, na medida em que, quando os indivíduos são submetidos diuturnamente ao rebaixamento de quase todas as formas de dignificação dos valores, das forças morais, dos princípios de vida, o que se vai perdendo também é o contato com a sua própria humanidade, com a capacidade de discernir os limites dos atos sociais. Uma sociedade pervertida produz mais facilmente os perversos, de que Antenor e Marieta figuram como paradigmas. A narrativa dele deixa entrever, ao mesmo tempo, um domínio completo do pensamento, da palavra e da razão ─ professor de filosofia que é ─ e uma cisão profunda quanto aos valores que regem os atos, a determinação, a vontade, as paixões, enfim. O personagem narra, explica, busca compreender, distancia-se para ver melhor, mas continua imerso na aporia irreversível do ato sem sentido, da violência desmedida. O contraste entre a lucidez e o controle absolutos que o protagonista tem, seja da linguagem, em sua melhor retórica, seja dos mecanismos inerentes aos atos dele e de Marieta, contrastam com a incapacidade de ambos em regular suas paixões e vontades, sua incapacidade em colar, aos atos, os valores correspondentes, embora ele possa, a posteriori, reconhecer tais distúrbios, sem nunca, entretanto, chegar a nomeá-los. A racionalização se dá ainda dentro dos parâmetros do sujeito intelectual: desejo de verdade: "Mas outro aspecto importante é que sempre houve em mim, por minha própria formação, esse desejo de buscar a verdade. Eu não me conformava com todas aquelas versões mentirosas infamando Frederica, vinculando-a a drogas, a uma vida dupla". (SANT'ANNA, 1997: 631).


Menos do que o crime que descreve, o que qualifica o monstro a que se refere o título do conto diz respeito a essa incapacidade de colar uma ação hedionda a seu valor moral. O leitor pode nomeá-los, rubricá-los dentro das sociopatias conhecidas – voyeurismo, esquizofrenia, o que talvez seja outra forma de racionalização. Maior que a indignação face ao crime, sua hiperexposição sob forma de alta literatura transborda e fere de morte a doxa, o olhar acostumado, lançando para o abismo nosso bom-mocismo ingênuo. Essa a função das grandes artes: golpear o monstro que espreita toda forma de alienação.

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SANT'ANNA, Sérgio. O Monstro. In: Contos e novelas reunidos. Cia das Letras:1997, p.606-640.

Nota: Texto escrito para um curso da Faculdade de Direito, há vários anos, quando a autora ainda acreditava que poderia fazer outra faculdade, desta vez para defender os fracos e oprimidos. Chegou ao quarto período e rendeu-se.