segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

Depois da chuva

Depois da Chuva. Claudio Marques, Marília Hughes, 2015. 


Depois da chuva parece um filme movido a carreira, a correria, talvez porque a trilha sonora à la Chico Science e outros agitados do mangue é quase um personagem, já que os jovens se comunicam também através do rock e dos sons que ouvem, poesia incluída.  

A história mesmo é um tanto confusa, o roteiro é deliberadamente disperso, para se acertar com a instabilidade que se vê na história do país, recém saído de uma ditadura que silenciou uma geração, e na tela a geração de jovens, bem jovens, sonha sonhos belos, enevoados, inebriados, destemperados, um pouco alucinados - como o momento histórico, como o momento pessoal, coletivo, e nacional. 
Um filme muitíssimo interessante, com um jovem ator muito bom fazendo o aluno-poeta-rimbaud-anarquista, sem amor de mãe, e lutando bravamente para encontrar um sentido - qualquer sentido na confusão reinante da pós-ditadura.

Uma cena já me parece antológica: o grupo reinterpretando um tango (Negue, que Nelson Gonçalves tornou imorredoura dor de cotovelo nacional) na festa da escola, aos berros, aos gritos, Caio quase engolindo o microfone, num canto de guerra contra toda ordem morna e chocha, ou seja, um aceno violento pra vida.

E a trilha é formidável - embora eu não tenha a menor ideia do que seja aquele ritmo, sobretudo o que toca na rave da fábrica, quase ao final - rock alternativo?

quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

Mais um ano (republicado)

Mais um ano. Mike Leigh (FestRio 2012) - Nota 9,5

Um filme de 2010 que só agora pudemos ver, onde Mike Leigh faz um trabalho de mestre, num filme belíssimo, tocante, transparente em sua leitura da solidão e da natureza humanas. 
É generosa sua forma de lidar com as carências de afeto, de calor e de amizade de alguns personagens, sobretudo quando retrata uma mulher madura que ainda não se deu conta inteiramente de quem é, e não consegue aceitar completamente o nível de suas reais necessidades afetivas.

Ela pertence àquele rol de seres muito perdidos, cujos anos vividos parecem não ter ensinado o suficiente sobre esse dado estrutural e fundante de nossa humanidade: somos e estamos sós, embora alguns de nós consigam fazer-se acompanhar durante um percurso da vida, longo ou breve, pelo ente amado, pelo amigo, pela família possível, com quem se tecem histórias, compartilham-se vivências - ao final, na velhice a que hopefully se chega, essa tessitura de afetos será uma espécie de norte, cada vez mais necessário, para melhor caminhar em direção ao que nos aguarda a todos.

O que Leigh constrói é uma narrativa fílmica de como cada um enfrenta basicamente a solidão. O casal maduro, magnificamente interpretado por Jim Broadbent e Ruth Sheen, que se mantém unido e amoroso, que tem no manuseio da terra uma fonte de alegrias e vitalização - será o ponto de convergência onde aportam os vários personagens a sua volta. Ali eles conversam, desabafam, choram, riem, bebem (bastante, aliás - lembrei de HH: a vida é líquida), contam histórias - tecem os fios de suas existências e os entrelaçam uns aos outros, como se dá com amigos, com os que cruzam nossos caminhos.

Mas ficou no ar (para mim) um certo travo e custei a encontrar a motivo: acho que é esse núcleo indestrutível que o casal idoso constrói em torno de si, de afeto e cumplicidade - penso que está mais no campo da utopia, de uma idealização que não encontra eco em minha memória. Fiquei pensando que havia um tanto de bom mocismo ali e isso, confesso, me incomodou um pouco. Mas nada que impeça o real prazer de fazer parte, por alguns instantes, daquele universo de afetos.

Trash

Trash. Stephen Daldry, 2014.

Há algumas boas passagens no filme, as atuações sempre corretas do Wagner Moura e do Selton Mello, uma Rooney Mara meio apática e um Martin Sheen meio patético. Mas a cena da perseguição dos meninos nos telhados, embora já vista em outros filmes americanos, e melhor, talvez, dá pra torcer e gostar, mas não eletriza. 

O que acho que pega mal mesmo, no geral (e no particular) é a proposta um tanto pedagógico-ideológica, sobretudo no final, absolutamente inverossímel, imponderável e improvável - e mais outros 'áveis', quem sabe. Não achei viável aquela menina surgir feito um fantasma no cemitério, depois se tornar amiga desde sempre dos meninos e todos vão se esconder numa praia aparentemente longe, e vivem de pesca e brincadeiras - nesse final, até Rousseau corou. Sobre a cena da foto, está dentro de um dos sufixos mencionados - impensável.

O juiz

O juiz. David Dobkin, 2014. 

O juiz - um dos melhores filmes de tribunal que já vi, ever - muito bom, emocionante, algumas reviravoltas que levam os personagens pra lá, pra cá,Robert Downey Jr arrasando, Robert Duvall, já bem velhinho e dando também show de interpretação. Para mim, a atuação do Robert Downey é digna de Oscar, mesmo sabendo que esse tipo de filme pertence a uma categoria, aparentemente, menor. Gosto deles demais, e penso que filmes de tribunal deveriam constituir um gênero em si, e norte-americano - uma de suas grandes especialidades, o fazem há milênios e ainda conseguem emocionar. Neste caso, acho que a dupla de atores em cena é uma força da natureza - e não é que tem até um tornado no filme?. Há também acerto de contas entre pai e filho, entre antigos amores, e uma família de homens em que eu, em geral, e se o filme não for muito bom, me sinto um tanto excluída. Não aqui, não nesse grupo, talvez porque todos carreguem sua parcela de desconforto em estar aqui e agora, neste mundo, e mesmo o personagem do filho mais novo, o que tem problemas estruturais, de ordem psíquica, esse tem o poder de trazer o passado de volta, através dos vídeos que vai filmando e acumulando desde a infância. Um flme sobre valores, honra, reencontros com velhas feridas, ressentimentos, coisas não ditas em seu tempo próprio - e de superação. Um filme que faz bem ver.

Take this waltz

Take this waltz, Sarah Polley, 2012 

Às vezes, rever um filme faz-nos vê-lo melhor, redescobrindo suas qualidades, ou encontrando-as sob outro ângulo. Revi ontem Take this waltz (que título interessante no original) - traduzido como "Entre o amor e a paixão", e fiquei encantada. Não lembrava que a direção é da Sarah Polley, bem como o roteiro, e ele ficou de molho de 2009 até 2011, quando começou a ser produzido por ela também.

O que me fez grudar na tela são algumas qualidades que me parecem um certo modo Sarah Polley de trabalhar, que eu vejo como uma acentuada atenção ao universo psíquico e social da mulher, enxugada ao máximo das visões e versões estereotipadas que nos cercam. Por exemplo, o banho das mulheres depois da piscina, quando a personagem de Michelle Williams, adorabilíssima, faz xixi durante uma aula de hidroginástica, num frouxo de riso - existem três delas com corpos ótimos, em nus frontais e naturais, e algumas outras com corpos fora do padrão, em nus frontais e naturais. Nada ali é feito pra mostrar o corpo, mas pra mostrar o banho, numa cena de conversa entre mulheres muito boa.

E tem a paixão - e o amor. O filme explora os momentos do casamento em seu fluir, onde a insatisfação está presente claramente, mas um deles não vê, ou não pode ver. E também os vários momentos em que eles mostram sua parceria, os jogos de intimidade que, entre esses dois, ocorrem pela referência às várias formas de crueldade, de morte macabra, que se vê em filmes de terror ou de terrir, tipo 'vou esfolar sua pele com raspador de batata' - esses são momentos realmente sem graça para mim, não consigo achar humor nisso, e parece no filme que há uma espécie de "leitura" de algo que já rendeu aproximação entre eles, risos, e talvez não funcione mais.

E há a paixão entre Margot e Daniel (esse Luke Kirby, muita beleza e ternura na aura dele todo!). Um personagem homem muito parecido com o personagem mulher que a própria Sarah faz no filme onde eu a conheci - "A vida secreta das palavaas" (Isabel Coixet, 2005), ou seja, estranhos seres, introspectivos, com trabalhos inusuais, que dizem um pouco de seus modos particulares de estar na vida - no caso dele, carregador de riquixá para ganhar algum dinheiro, e também fotógrafo-pintor, e um amante sensível, que tem a cena mais deslumbrante sobre como fazer uma mulher feliz (ela, a Margot que está a sua frente, na mesa do bar) só quase murmurando e olhando pra ela e descrevendo todas as ações m.i.n.u.c.i.o.s.a.m.e.n.t.e - olhando-a com um jeito maroto, um tanto enigmático - melhor, impossível.

E tem também uma alcoólatra, em duas cenas onde o essencial da doença é dito, de modo claro, expressivo, perfeito. As falas do roteiro são uma marca de qualidade Polley, que não desperdiça palavras, nem ao vento, nem à tolice.

E o final perfeito: nada como voltar a uma roda gigante onde já se foi feliz com alguém para tentar achar a graça em si mesma, consigo mesma - Margot tem um longo percurso a sua frente, mas achará seu caminho, e sua escrita. 


Relatos selvagens

Relatos Selvagens. Damián Szifron, 2014.

São quatro episódios, e mais dois curtinhos (me lembra Enic), cujo núcleo e motor é a violência, em variadas situações e intensidade relativamente alta (só um não olhei tudo, porque já sabia o que estava acontecendo e aqueles dois não tinham jeito mesmo), mas com humor, quase sempre, o que torna tudo interessante – as situações de violência brotam dos atos mais comuns do cotidiano, daí todos nos encontramos ali, em algum momento: dirigindo um carro, um sujeito num carreco atrapalha a vida do sujeito num carrão que vem atrás, quando dá pra ultrapassar o dono do carrão tripudia o outro, mas daí o pneu dele fura mais na frente - pois é, já viu – chega a ser histriônico, de tão imbecil o motivo de tudo - e tem de tudo, até o fim.

Noutro, um garoto rico atropela e mata uma mulher grávida - todos da família dele se acertam com um empregado antigo e com o detetive para livrá-lo da cadeia – mas acontecimentos inesperados embolam-se e... .

Em outro, ótimo, a festa de casamento vira um caos porque a recém casada descobre que o marido tem uma amante e ela está ali, na festa, daí o que parecia aquela coisa chatinha de festa de casamento vira um pandemônio, a recém casada se transforma numa maluca-beleza e a festa fica ótima – ah, e o final também é muito bom (esse é o segundo melhor, para mim).

Por fim, o episódio com meu rei Darín não é o último, mas ele é um engenheiro especialista em implosões, e é também um sujeito dado a explosões porque a vida é cheia de arestas e de situações injustas, além de que os caras do Detran de lá não dão trégua ao personagem e rebocam o carro dele toda hora, até que o homem não agüenta mais e...bom, já deu para imaginar, né. Achei o melhor episódio, o Darín está ótimo, podem falar o que quiserem, mas ele é minha Fernanda Montenegro da Argentina, difícil errar a mão, e tem também o final mais surpreendente (todos os episódios têm um final mais, ou menos, surpreendente). 


O físico

O Físico, Philipp Stolzl, 2014. 

Trata-se de um épico, que se passa no século XI, em plena Idade Média, sobre o nascimento da Medicina, baseado no livro de Noah Gordon, de 1999, e um dos livros mais populares do mundo. Segundo alguns espectadores e leitores do livro, aquele não faz jus a este. 

Eu não li o livro, e gostei do filme, que traz os ingredientes adequados de aventura, busca por conhecimento, drama amoroso, lutas entre povos e religiões (cristãos, judeus e muçulmanos), barbárie e redenção, na história do menino que perde a mãe para uma doença cuja cura inexiste então.

Movido por essa perda, ele pede para ser aprendiz de uma espécie de médico-barbeiro, meio saltimbanco, vivido muito bem por Stellan Skarsgårdr, que vai de cidade em cidade oferecendo curas com estardalhaço, embora faça apenas o pouco que seu tempo permite. Com ele, aprende rudimentos de cura, e se descobre com o dom de sentir quando um doente vai morrer.

Sua sede de conhecimento o leva a uma longa jornada, em busca de se tornar discípulo de renomado cientista do outro lado do mundo. E o filme segue esse jovem, interpretado por Tom Payne, até a Pérsia, onde reviravoltas inúmeras acontecem – guerras, amores, amada que quase se perde, e depois se ganha, batalhas entre mil soldados, até que se salvam os dois amantes, e de volta a Londres ele abre um hospital, onde exercita sua grande paixão. Acho que o filme cumpre sua função de contar uma ótima história, embora pudesse ser um pouco menor (mas li que ele já foi reduzido em mais de meia hora).


Filmes a comentar

Homens, mulheres & filhos. Jason Reitman, 2014. 
Minhas tardes com Marguerite. Jean Becker, 2010. 
O crítico. Hernán Guerschuny, 2014.
Ida. Pawel Pawlikowski, 2014. 
Boa sorte. Carolina Jabor, 2014. 
Michael Kohlhaas. Justiça e Honra. Arnaud des Pallières. 
Short term 12. Destin Cretton, 2013. 
O Hobbit: a batalha dos cinco exércitos. Peter Jackson, 2014. 
De volta ao jogo. Chad Stahelski, 2014. 
Tom à la ferme. Xavier Dolan, 2013. 
O ciúme. Philippe Garrel, 2014. 
Mommy. Xavier Dolan, 2014. 
I'm here. Spike Jonze, 2010. 
The captive. Atom Egoyan, 2014.
As duas faces de janeiro. Hossein Amini, 2014. 
Cold in July, Jim Mickle, 2014. 
O último concerto, Yaron Zilberman, 2014. 
Uma nova chance para amar, Arie Posin, 2014. 
Bistrô romantique, Joël Vanhoebrouck, 2014. 
Garota exemplar, David Fincher, 2014. 
Magia ao luar, Woody Allen, 2014. 
Miss Violence, Alexandro Avanas, 2014. 
Mesmo se nada der certo, John Carney, 2014.
Tim Maia, Mauro Lima, 2014. 
Boyhood, Richard Linklater, 2014. 
O homem mais procurado, Anton Corbijn, 2014. 
The Immigrant, James Gray, 2014. 


A gatinha esquisita

A Gatinha Esquisita (Das Merkwurdige Katzchen, Alemanha, 2013. Dir:Ramon Zurcher. 

Obra prima inconteste – o diretor filmou, do começo ao fim, todo o universo existencial, psicológico e filosófico das obras literárias de Clarice Lispector, a escritora brasileira que fotografa com a palavra cada milímetro das sensações que perpassam o cotidiano das relações entre as pessoas e o mundo, os objetos familiares, os acontecimentos comuns e banais, seja ele olhar nos olhos de um búfalo no zoológico, seja o esvoaçar de uma pena no ar, ou o cruzamento fortuito de alguém no bonde com o olhar de um cego. Todos os contos de 'Laços de família' estão aqui; todo o clima de 'A paixão segundo GH' está aqui, até mesmo cenas que se lêem em Clarice estão filmadas como se transpostas para a tela – e isso independe de o diretor conhecer ou não a obra da autora brasileira, porque é um modo de estar no mundo que os aproxima, flagrantes da existência cotidiana que em ambos adquirem estatuto de obra de arte – sob a palavra, uma; sob as imagens, outro.

Essa é a primeira vez que ”vejo” na tela uma obra literária desse tipo, ou seja, um filme feito de sopros, de sensações e observações intensas sobre o mínimo, os objetos comuns, as situações cujos significados residem nas impressões que causam, expressas por pequenas, contínuas e intensas epifanias, como se o cotidiano fosse pleno de riquezas, de sentidos que nos oprimem e nos excitam, como se a vida fosse esse diuturno brilho do singular e do comum, do banal, de onde se extraem as pepitas, o que comove, o que existe, o que pasma simplesmente por estar vivo, e pulsar e existir para e sob nossos olhos.

Há cenas antológicas, como a da mulher que faz a mãe e tem uma relação difícil com o gato, e coloca um pé sobre o bichano, no vão da porta, aproximando-o lentamente do animal, como se fora esmagá-lo – dura um átimo e uma eternidade, porque ali estão resumidos todos os nossos desejos ancestrais de um dia ter esmigalhado um gato, um besouro, uma mosca, um inseto, um tudo; ou quando essa mesma mulher-mãe toma o leite deixado sobre a mesa, onde há um pelo do gato, já quase no final do filme e da refeição com os amigos – ela toma o leite, e essa cena tem o mesmo sentido de comer a barata n’A paixão – uma redenção, talvez, em meio à culpa do que não se sabe bem o motivo, mas que está lá, sempre premente, e presente.

Há quase todo o tempo, igualmente, frases brilhantes, interessantíssimas, muitas vezes emoldurando uma situação comum, como quando a menina pergunta sobre os lóbulos dos pulmões:

_ Que são lóbulos?
_ São as asas dos pulmões. Para que voem, quando necessário.

Ou quando uma das filhas está olhando pela janela, provavelmente vendo lá fora o cão da casa, e observa para o rapaz, que parece ser o irmão:

_ Não queria ser um cão preto no verão.
_ Ainda não é verão.
_ Queria ser um no outono?
_ Aí, sim.

Ou a cena em que esse mesmo rapaz reconta a ela o momento de uma festa em que uma mulher bêbada faz uma cena, e meio que enlouquece. Ele conta uma coisa, e a tela mostra outra, ou seja, a delicadeza de um sorriso. A cena toda adquire um significado novo, revigorante, quando se vê que a mulher se acalmou não pela luz da lanterna do guarda, como ele diz simplesmente, mas por vê-lo sorrir – o mundo se refez para ela de novo com aquele sorriso, todas as gárgulas se desvanecem para ela face ao – não há outro nome – amor daquele sorriso. Ele omite isso, o que nós vemos, e essa omissão é também de uma delicadeza infinita.

Um filme magistral, que requer um olhar sensível, do mesmo modo que se dá com a literatura de Clarice – nem sempre se consegue adentrar seus meandros, e percorrê-los com o prazer das descobertas de um mundo quase sempre nos interstícios – das coisas, dos seres, dos tempos.


Child of God

Criança de Deus (Child Of God), EUA, 2013. Dir: James Franco - Nota: 9

O filme é muito bom, na verdade um tour de force do ator Scott Haze, que leva o filme inteiro em sua interpretação brutal, na pele de um homem que perdeu o pai aos dez anos e, vivendo a esmo e no ermo da cidadezinha, vai-se tornando cada vez menos um homem, e cada vez mais um sujeito doente de solidão, que o leva aos poucos a uma forma de loucura, mas com um sentido agudo de sobrevivência, buscando descobrir como sair das situações difíceis que aquela sua existência comporta. A partir de um certo momento, esse estado esgarça-se, e ele se aproxima de práticas mais bestiais, e será desse lugar, em que todos os sentidos retesam-se para garantir a sobrevivência, que ele se vê um quase selvagem, matando a sangue frio para manter sua recém descoberta possibilidade amorosa: a necrofilia.

O modo como o diretor James Franco apresenta sua história não permite ao espectador julgar as ações desse (quase) homem de um ponto de vista das normas sociais – ele é acompanhado pela câmera, pulando e caçando, evacuando e matando um bicho aqui e ali para alimentar-se, de modo que quando ele mata um homem quase sem pensar,e depois a mulher, não há aparentemente nenhuma mudança brusca – o pássaro morto mata sua fome de comida; a mulher morta mata sua fome de sexo e de amor. Assim, acompanhamos sua degradação na escala humana, rumo a seu estado mais duro e mais brutal, ao mesmo tempo em que vai-se movendo para o mais fundo da caverna, achando os buracos onde se abrigar e guardar os que lhe aprouveram amar - a mulher, os bichos de pelúcia.

Mas perder é de sua natureza de ser híbrido - entre bicho e gente, então ele perde o braço. Mas não a vida. Essa segue a trilha dentro das pedras, por um caminho que só os íntimos da natureza conhecem, e ergue-se por fim em meio a uma campina vasta – essa cena final, em que ele corre e grunhe de alegria, mostra um ser que caminha para um lugar indecidível na escala dos valores humanos, talvez. O que ele será ou fará, a partir de então, só pode ser dito em relatos de lendas, escritas ou filmadas. Ele adentra, para nós, sua mais funda, e terrível, invenção.

Um grande filme, em que se percebe como Franco acertou ao deixar seu ator agir, e filmá-lo quase como o documentário de uma loucura anunciada. E sem esse ator, sem essa entrega absurda e visceral do ator ao personagem, não haveria o filme sobre essa gestação de insanidade por absoluta falta de tudo - passo a passo. Muito bom, e muito terrível.

(Apenas um detalhe, de pouca importância, talvez, soou falso, mas mesmo esse ambíguo mínimo detalhe serve ao filme, ou seja, diz que ali há representação, e é disso que se trata aqui, visceralmente: os dentes quase sempre expostos do ator desmentem a vida selvagem do personagem, em sua perfeição e brancura).

A mulher na areia

A Mulher da Areia (Suna no Onna, 1964). Dir. Hiroshi Teshigahara. 
Nota 10

Um filme magnífico, para ser visto numa telona, em excelente projeção. Não é apenas a história, entre o drama e o terror puro e simples, mas o modo como os rostos expressam as emoções, e as emoções expressam as intensidades do aprisionamento; os detalhes dos poros, de cada fio de cabelo tomado pela areia, do suor melado de terra, de tudo naquele buraco sem fim tomado pelo vento, pelo zumbido do vento. É belíssimo, e aterrador. Quando se supunha que o final poderia ter alguma escapatória, tal saída, ao contrário, apresenta-se quase como uma rendição, como se o vento tivesse vencido, quando ele sai, vê o mar, e volta - mais calmo, mais sereno. E, finalmente vencido, acaba de alguma forma vencedor por uma descoberta - não do que ele viera pesquisar, mas outra, nesse momento de inquestionável valor maior - água. Desse modo, seguimos quase sem ar uma tragédia aparentemente sobre a imobilidade das coisas e dos homens, encarcerados pelo açoite dos ventos, mas que desliza para a magia do engenho humano que se refaz, se redesenha, alia-se a seu captor - fazendo da areia e do sal, seu lugar.

Downton Abbey - começos

Comecei ontem a ver Downton Abbey, uma série brilhante, que não vou comentar porque já deve haver uma tonelada de textos sobre ela, cuja primeira temporada começou em 2010, mas no Netflix só tem até a terceira. A quinta deve estar passando agora na Inglaterra. De todo modo, são histórias fascinantes porque focadas na perspectiva de um conjunto grande de empregados de uma propriedade de nobres em começo de decadência, no início do século passado. 

Vi os sete episódios da primeira temporada em dois dias, e tudo ali me pareceu interessante: atores entregues a um tempo que não é o nosso, com histórias de todos os tempos, porque lidam com o básico de nossa condição: ambição, inveja, poder, dominação entre senhores e seus serventes, com o detalhe de que entre os próprios empregados trava-se uma guerra mais ou menos surda por espaço, poder e lugar melhor na hierarquia da casa. 

Destaque para o talento da sempre impagável Maggie Smith; para a fotografia primorosa, os belíssimos cenários, um roteiro de primeira, com diálogos plenos de ironias, sarcasmos e aquele humor corrosivo que costuma caracterizar um certo modo de ser inglês.Tudo isso com peripécias amorosas, códigos de honra e de conduta, e o começo da luta feminista - nesse momento, no final desta temporada, as lutas pelo sufrágio entram em Downton Abbey pela voz de uma das filhas, e a primeira guerra mundial também.

Downton Abbey - chovendo no molhado, mas como não fazê-lo

Ao final da terceira temporada de Downton Abbey, a última exibida aqui no Brasil, já me sinto órfã daqueles seres com quem convivi intensamente nas últimas duas semanas. E embora tudo já tenha sido dito a respeito dessa magnífica série, não resisto e deixo aqui minhas impressões.

Na segunda temporada os acontecimentos fluem velozmente em torno da Primeira Guerra Mundial, o casarão-quase-castelo virando uma espécie de clínica para convalescentes graduados, feridos em batalhas, e a aristocracia inglesa, e seu reverso axial, os serviçais, tentam adequar-se aos estranhos e sofridos novos hóspedes.

Matthew ficar paralítico e recobrar mais à frente todos os movimentos me pareceu uma homenagem aos dramalhões que imperavam nos antigos filmes de guerra, quando havia quase sempre um paralítico que voltava ao lar e à esposa metade do homem que partira – sem braços, ou pernas. Mas, para sorte do casal de protagonistas pelo qual todos torcemos, não apenas Matthew volta a andar, mas recupera também sua potência sexual, além de acontecer a morte da noiva meio sem graça, mas muito rica, pela gripe espanhola, que, aliás, quase leva também a condessa Cora Crawley, que quase não sobrevive.

De todo modo, um trabalho como esse esconde pepitas de ouro nos detalhes, além de constituir um painel vivo e interessantíssimo dos começos do que somos hoje: nós, mulheres emancipadas, feministas e com direitos civis assegurados; nós, cidadãos que lutamos a duras penas para manter e aumentar os direitos à igualdade das minorias sexuais e sociais, que no começo do século passado ainda são criminalizadas, como talvez ainda o sejam hoje em vários países e continentes; nós, os que lutamos para tornar livres homens e países tanto da escravidão individual, quanto da dependência servil, embora nem toda forma de colonização tenha sido extinta ainda; nós, por fim, que já conseguimos enxergar formas novas na constituição das famílias, além do núcleo pai-mãe-filho biológicos, vemos na série alguns ramos desse vasto tronco de uma árvore que ainda cresce, que ainda amadurece seus frutos, de modo que o afeto seja o laço a unir quem se procura, ou se deseja.

No núcleo dos serviçais há um vigor intenso, e ali travam-se algumas das batalhas mais visíveis do que aqui se mencionou. Uma delas por um dos personagens mais interessantes da história, o criado Rob James, que vai mudando de um ser humano quase abjeto, em sua mesquinharia, intensificada por sua parceria com Siobha, criada da condessa e, por essa função, detentora de um certo poder sobre os outros. Os dois serão aliados nas duas primeiras temporadas, mas as vidas e as situações se complexificam e tanto ele, quanto ela, adquirem uma densidade outra.

Ele, sobretudo, me tocou especialmente, porque seu erotismo voltado para homens o criminaliza, e não há o que ele possa fazer nesse sentido. A série mostra de modo muito claro, e muito simples ao mesmo tempo, o que significa ser diferente da maioria no terreno sexual, tendo que ser o que se é e ao mesmo tempo controlar os impulsos mais básicos, mais urgentes, sob pena de denúncia, exclusão e mesmo prisão. Ou seja, o tesão já matou, e não está tão distante esse tempo de nós como gostaríamos de acreditar, e como seria justo desejar.

Para as mulheres, igualmente, a série tem-se mostrado riquíssima no modo como apresenta os movimentos das filhas do conde de Granthan em direção a espaços mais amplos socialmente, sobretudo a mais nova, Sybil, e a do meio, Edith. Uma apaixona-se aos poucos pelas ideias de emancipação feminina, empenha-se na luta pelo voto da mulher, e acaba por ouvir, com a mente e o coração atentos, o que o chofer da família tem a dizer sobre direitos civis, liberdade e um nascente socialismo – apaixona-se pelas ideais, e pelo autor delas.

A outra, a mais jovem, essa de algum modo terá que cavar seu lugar num mundo novo que se inicia, a partir dos escombros das velhs ideias que teimam em cruzar seu caminho, e barrar suas escolhas. É sobretudo amorosamente que ela paga preços além do que deveria, mas nesse momento da série parece que ela começa a compreender sua própria força, e seu valor. Ela é muito especial, porque se constitui nesse entrelugar de várias coisas, de várias situações, pessoais e sociais. Por isso vai precisar empreender uma conquista de si mesma, de alguém que se constrói a partir de um novo modelo de mulher, de esposa, de filha, de profissional, de tudo. E também porque ela é a mais comum das três – não tem uma beleza excepcional, nem uma inteligência brilhante. Mas tem um talento especial e, nesse momento, esse será seu salvo conduto rumo ao controle de sua vida: ela sabe escrever.

O abutre, Dan Gilroy

O abutre. Dan Gilroy, 2014. Nota 9

O filme vai adquirindo força e interesse à medida que cresce a voracidade do personagem Louis Bloom, na magnífica interpretação de Jake Gyllenhaal, que vai num crescendo a partir do momento em que conhece Nina Romina (Rene Russo), diretora de jornal televisivo que primeiro percebe o notável faro daquele iniciante para as notícias pingando sangue, que alavancam a audiência, salvam sua carreira em franco descenso e levam o rapaz ao lugar que ele planejou para si, milímetro por milímetro. Para tanto, vai-se tornando o olho que registra os fatos mais grotescos, mais violentos, mais vis - um olho indiferente, que não se emociona, que só quer o registro do negror, o que aquilo pode render, o que trará audiência, o que lhe dará uma carreira.

O mais impressionante na atuação de Jake é a passagem que ele faz entre o jovem aspirante a qualquer coisa que possa lhe render algum trocado, a descoberta dessa forma de ganhar dinheiro e como ele vai-se adequando ao novo nicho, como ele vai ficando à vontade ao descobrir-se ali, num caminho tão sem querer encontrado, e tão fissuradamente percorrido.

Sim, porque Jake não adquire uma profissão, mas um vício: é preciso ir lá dentro do corpo dilacerado do outro, é preciso filmar mais perto, pelo avesso, mais fundo - na verdade, por que esperar que o acidente aconteça, por que não fazê-lo acontecer e filmá-lo no instante-já de sua acontecência? Trair o ajudante e filmar sua morte será apenas parte do percurso, um dos altos momentos de sua carreira. E a caracterização do ator, com os olhos esbugalhados, a magreza que ressalta ainda mais a expressão faminta, tudo nele, nessa máscara que ele cria, merece aplauso, e os prêmios que vierem.

A família Bélier

A família Bélier. Eric Lartigau, 2014. Nota 8,8

Impliquei um pouco com o filme por causa do ator, que tenho visto em quase todos os filmes franceses recentes. Mas fui capturada pela força de suas interpretações - Karin Viard, a mãe; François Damiens, o pai; e Louane Emera, a filha. Numa família em que todos são mudos, só a jovem filha fala, daí porque assumirá o papel de intérprete para os outros membros – filho menor, pai, mãe. Não apenas nas transações comerciais oriundas das vendas da fazenda, onde moram e trabalham, mas nas mais inusitadas situações – a da consulta ao ginecologista será apenas a mais engraçada.

Os atores fazem um trabalho extraordinário, expressando muitas e intensas emoções sem falar, utilizando o corpo (ela, um belo corpo, que aparece sublinhado), as mãos, os olhos, gestos, e a língua dos sinais. Acredito que não tenha sido fácil para eles aprender a se expressar, nesse nível, usando tal linguagem. Por outro lado, tal desafio para um ator pode ser muito enriquecedor, ou um fiasco completo. Aqui, todo o elenco saiu-se muitíssimo bem, e não sentimos falta de linguagem, até porque a certa altura a história da jovem assume a primazia, e passamos todos a torcer para que consiga fazer seu teste de canto em Paris.

E sua voz belíssima, a canção meio sentimental que interpreta, incorporando os pais em sua performance, deixam no espectador uma sensação boa, de que tudo pode, afinal, dar certo.

Brincante, Walter Carvalho

Brincante. Walter Carvalho, 2014. Nota 9

Brincante me comoveu em vários momentos, em sua proposta de apresentar o universo cultural de Antonio Nóbrega, esse artista originalíssimo, cujo trabalho envolve pesquisa etnográfica, resgate de canções e danças folclóricas de várias regiões do país, sobre cujas bases ele aporta novas inflexões e intensidades. É muito bonito ver o encontro de seu trabalho com a herança de Mário de Andrade, em que se identifica um par à altura, num filme belissimamente fotografado, não fora o diretor um de nossos melhores talentos nesse campo.

O filme compõe-se de esquetes pontuados tanto pela figura do personagem Tonheta, como pelo percurso do casal num caminhão, no qual carregam circo e fantasia pelo sertão adentro. Simultaneamente no interior do país, de onde retira a matéria prima de sua reflexão sobre a arte, e também ocupando espaços heterogêneos dentro da grande metrópole, Nóbrega passeia sua dança e sua arte pelos quatros cantos, imprimindo força, energia e intensa beleza a cada momento, em cada movimento.

Uma das inúmeras alegrias do espectador é ver como os jovens de seu Instituto dançam bem, como são intensos, viscerais, energéticos, tomando o frevo com experiência local para reinterpretá-lo e expandi-lo como dança contemporânea e universal. Se o frevo tem essa dimensão de pontuar um lugar cultural, em sua força centrífuga, será entretanto um extraordinário número de dança quase extática a condensar uma das vertentes dramáticas fundantes de uma estética que talvez se possa chamar "do árido" e "do seco", metáforas de um sertão que também compõe o universo de que se nutre a arte empenhada de Nóbrega.

O número apresenta homens e mulheres literalmente nascendo da terra e do barro, movendo-se lentamente cobertos por areia, contorcendo-se numa dança quase liturgia, à maneira dos poemas sobre o rio, de João Cabral de Melo Neto, como se lê nesse excerto de O cão sem plumas: "Aquele rio ... / Sabia dos caranguejos / de lodo e ferrugem. // Sabia da lama / como de uma mucosa. / Devia saber dos povos."

Um filme imprescindível para nos conhecermos - longe das selfies de pura vaidade, compõe um de nossos melhores retratos, e um dos mais expressivos momentos de nosso cinema.