terça-feira, 27 de outubro de 2015

série, filmes etc

Alguns filmes vistos ao longo da semana, e a primeira temporada toda de uma série ótima, "How to get away with murder", com uma Viola Davis acachapante, razão por que ganhou o Emmy de melhor atriz dramática deste ano - merecidíssimo. Uma cena antológica: ela se desfazendo das máscaras do dia (maquiagem, cílios, peruca) para confrontar o marido sobre a amante - boa demais.
Três ou quatro obras que merecem atenção: 
O filme "45 anos" (Andrew Haigh), um trabalho belíssimo em que Charlotte Rampling reina absoluta num duo com Tom Courtney, ambos no momento em que preparam uma festa, ela sobretudo, para comemorar esse tempo todo de casados. Uma carta chega, no entanto, e tudo começa a desandar, lentamente, como um bolo muito aguardado que, ao final, sola. Filme de silêncios, de vazios muito intensos, uma atuação de Rampling magistral, e cuja cena final vira tudo pelo avesso. Muito bom.
"Ponte dos espiões", em que Steven Spielberg volta às cartas marcadas da guerra fria, à década de 60, para filmar o homem comum, vivido com esmero por Tom Hanks, um agente de seguros que se torna peça fundamental num episódio de troca de espiões entre as duas potências de então. Personagens bem comuns, tanto o de Tom, quanto o espião feito por Mark Rylance, e ambos assemelham-se, de algum modo, ao Bartleby, de Melville, na simplicidade da postura que fura os bloqueios diplomáticos mais improváveis, pontuada por frase similar ao mote "Acho melhor não" da clássica novela. O filme vale, talvez, menos pela ideologia de bom mocismo, e mais pelo trabalho dos atores, e uma direção precisa.
"O clube", de Pablo Larraín, é uma porrada no meio da cabeça da Igreja, que ainda repercute na nossa, todo contido, feito de elipses e dizendo muito em todas as brechas, e nas escancaradas violências. Um filme necessário quanto às relações da instituição com seu passado e presente, com suas hipocrisias de todos os tempos, que leva a uma saída final profundamente ambígua - seria aquele novo hóspede um prêmio para o grupo, ou uma penitência?. 
"Circo voador - a nave" (Tainá Menezes) me deu menos da minha vida vivida no Circo e mais dos tempos roqueiros, mas a cultura do Circo está ali, e sua importância na nossa H/história também. Para minha geração, acho que o documentário repercute mais, talvez.

domingo, 11 de outubro de 2015

FestRio 2015 - alguns filmes

Está acontecendo o Festival de cinema do Rio de Janeiro, FestRio 2015, de 1 a 14 de outubro.

Tenho comentado no facebook alguns filmes, às vezes rapidamente, outras mais longamente, e trago esses comentários pra cá, de modo a ter um registro mais seguro, até para eu saber o que já vi esse ano.

A lista, que depois foi acrescida de outros:

Transtorno 
Como gente grande 
Um amor a cada esquina
Mate-me Por Favor
Órfãos do Eldorado
11 minutos
Pecados antigos, longas sombras (La isla mínima)
Schneider vs. Bax
Entertainment
Longe deste insensato mundo
The lobster
Grandma
Anomalisa
Boi Neon
Blood of my blood
Eu, você e a garota que vai morrer
Olmo e a Gaivota
Ned Rifle
H.

Quase memória
Truman
Califórnia
Clarisse ou alguma coisa sobre nós dois
Som guia

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FestRio 2015
Blood of my blood (Marco Bellocchio)

Um filme que se passa em dois momentos, para falar de modo avassalador sobre a permanência das iniquidades no seio da Igreja, ao longo dos tempos. No século XVII, vê-se como uma mulher é sentenciada à prisão, e depois ao emparedamento, por se recusar a confessar que pecou ao amar quem amou - por essa recusa, o tal homem, um suicida, não pode ser enterrado em terreno sagrado. As cenas de lascívia entre o irmão gêmeo dele, que vem ao monastério resolver o impasse sobre a confissão da amante, e as duas mulheres que o abrigam, fazem pensar na iniquidade das diferenças: o amor resulta em ser murada viva; a lubricidade dele não se põe em questão. Num segundo momento, o mesmo ator, agora em nossos dias, intermedeia um negócio de um ricaço russo que quer comprar o antigo monastério, mas nele vive um homem estranho, que só se move pela cidade à noite, com sutis sinais de um vampiro, e que suborna o mediador da compra, ao mostrar que conhece seus podres, e os de quase todos na cidade. O filme trabalha com leveza, ironia, algum humor e fotografia belíssima em várias frentes de crítica social, brincando, de certo modo, com o terror, o mistério e o policial, e consegue traçar um painel de ontem e de hoje sobre nossos mais arraigados fardos morais e políticos.

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FestRio 2015
Eu, você e a garota que vai morrer ( Alfonso Gomez-Rejon)

Melhor filme e prêmio de público em Sundance 2015, esse filme é um primor de bem feito, uma homenagem inteligente, curiosa e bem humorada ao cinema, além de se inserir nessa categoria tão atual de "filmes sobre pessoas morrendo de câncer" de forma leve, divertida, ao acompanhar a vida de dois jovens no último ano de segundo grau que tentam sobreviver às dificuldades inerentes a esse estágio da vida, e da vida escolar, sobretudo. Completam o cenário uma colega que se descobre em fase aguda de leucemia, e o que poderia resultar num dramalhão rende aqui uma comédia em tom leve, divertida e inovadora nas saídas que seus protagonistas oferecem para as prisões que seus cotidianos representam. O fato de ser o cinema uma das estratégias mais interessantes para sair da mesmice de suas vidas, e de entrada no mundo da imaginação, é só mais um dos traços da energia boa dessa ótima quase-comédia, quase-drama.

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FestRio 2015
Som guia (Felipe Rocha)

Já faz algum tempo que vi esse curta excitante, excelente, original e fora de qualquer padrão do que já possa ter visto, em curta, média ou longa duração. Como tudo ali é inteligência e provocação, opto por deixar falar o Rodrigo Fonseca, que exprime algumas de suas muitas facetas com maestria, aqui:

"Anote aí um nome na lista de potenciais reinventores de narrativas no cinema brasileiro: Felipe Rocha. Mais conhecido como ator, ele se arrisca como diretor na experiência mais radical (até agora) em curta-metragem do Festival do Rio 2015: a comédia sinestésica Som Guia. Com um elenco de dar inveja a muito longa, pilotado por Enrique Diaz, o filme faz blagues com as noções de sensorialidade no (e do) cinema, adotando como foco a falta de sincronia sonora entre labiais e palavras. A partir dessa brincadeira, o dire-a-tor parte para um jogo de sedução, que evolui para uma briga de casal (entre Enrique e a valquíria pós-moderna Mariana Lima) de dela para uma vida a dois, com filha e problemas de miopia. Tudo isso se expressa entre elipses, tiques de microfonia e trocas de foco, que, juntos, dão margem para uma investigação sobre a invisibilidade, feita com bom humor e esmero plástico, na fotografia de Mauro Pinheiro. Filmaço! (por Rodrigo Fonseca)."

Fonte:  http://somguia.blogspot.com.br

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FestRio 2015
Clarisse ou alguma coisa sobre nós dois (Petrus Cariry)

Um  filme sobre acerto de contas entre pai e filha, mortos e vivos, num mundo visual cheio de silêncios, elipses, sobretudo no cenário da fazenda vazia onde mora o pai, agora muito doente, que definha em certos momentos, em outros conversa com vigor à mesa com a filha. O filme me parece ter altos e baixos, sobretudo porque quer filmar o silêncio que subjugou a irmã, a filha, a mulher sem desejo. Um silêncio que ele propõe romper com a vingança, em que algumas cenas parecem fugir à economia geral que rege tudo - a cena do homem sendo jogado no rio, todo o ritual que a precede, tudo ali me pareceu excessivo e desnecessário para a simbologia daquela morte.  A cena final, o jorro de sangue que agora pode cobrir o corpo físico, exceder, exsudar o estupor, por mais sentidos que lhe possamos atribuir, sempre parecerá um exercício visual sobre o excesso, e menos sobre a délivrance, a vida que se entrega, enfim, e explode. 

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FestRio 2015
Quase memória (Ruy Guerra)

Não li o romance/livro de memórias de Coni, mas acho que o filme consegue um tento ao criar esse alter ego jovem do narrador que, ao fim da vida, busca lembrar do quem foi através da memória dos feitos do pai. Também gostei de haver os dois registros de estilo, um mais farsesco, onde habita o pai jovem e suas peripécias, vivido por um ótimo João Miguel, e o dramático, na dobra do tempo onde habita agora tanto o filho jovem, quando elemesmo já decrépito, numa interpretação intensa, de absoluta entrega, por um ótimo Tony Ramos - fiquei muito bem impressionada com essa atuação dele, e mesmo um certo excesso tonitruante no monólogo final, beirando o melodrama, mesmo aí eu gostei, achei adequado. Tem também uma fotografia de primeira, e o conjunto todo funciona, salvo um ou outro momento, em que a ação raleia. Enfim, um filme com fortes patrocínios, que fez por merecê-los, acho.

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FestRio 2015
Truman (Cesc Gay)

Tem uns dois momentos no filme "Mia Madre" em que a diretora diz para seus atores, a certa altura do trabalho: "quero ver você como a personagem, e também a atriz/o ator, ao lado". Ninguém entende bem o que ela quer com esse, talvez, distanciamento brechtiano, e penso, aproveitando a deixa da diretora lá, que o hiato entre a interpretação e o intérprete pode estar na origem de um certo descompasso nesse filme em que Darín vive um homem em fase terminal de um câncer metastático, que recebe a visita de seu grande amigo, vivido por Javier Cámara, que vem basicamente para despedir-se. Penso que talvez a vontade de tornar tudo leve, sem drama, a vontade de não pesar a mão, tenha impedido o filme de firmar-se, ou de afirmar-se, dizer a que veio. Todo o tempo fiquei esperando que alguma coisa realmente importante acontecesse - algo entre a vida desse ator que chega ao fim e a entrega do cão Truman a seu amigo, já no aeroporto. Mas não aconteceu, pelo menos para mim faltou o filme que eu aguardei.

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FestRio 2015
Right now, wrong then (Hong Sangsoo)

Esse me parece um filme antípoda daquele outro, cujo nome não precisa ser redito, um bordado sobre a delicadeza. Tudo nele transpira simplicidade, sentimentos delicados, educação, uma certa formalidade no trato com o outro, ou seja, um mundo que talvez só tenha sobrevivido em alguns países orientais - nessa Coreia do Sul, por exemplo, de onde ele vem.
A história, muito simples, narra o encontro de um diretor de cinema, que chega um dia adiantado para uma palestra sobre seu filme, com uma jovem pintora, que se encontra descansando, tomando um suco de banana, sentada numa espécie de vão de um lugar público, mas onde apenas os dois são vistos. Começa então uma conversa entre eles, hesitante, em que ele vai-se aproximando delicadamente dela, vai-se insinuando, tudo milimetricamente encenado, em paralelo com a milimétrica dosagem de emoção que move a aproximação dos dois. A primeira hora, e a primeira parte do filme, trata desse encontro, e de como uma atitude, uma palavra ou apenas gestos inadequados podem mudar o rumo daquilo que mais teimamos em conquistar.
A segunda parte, na hora seguinte, retoma a cena inicial, os diálogos quase idênticos, com a diferença de que ele muda um pouco sua postura - o que muda tudo, e quase nada. Não é apenas revelar que é casado, o que faz nessa parte do filme logo no início da conversa no bar, onde bebem bastante. Trata-se de algo mais - de uma postura face a seu desejo, de um cuidado em relação à outra pessoa. São nuances mínimas, que mudam diametralmente o modo de estar na vida do outro, o modo como se pode permanecer na história do outro, e em nossa própria história igualmente. Embora longo, esse foi um dos filmes mais interessantes que já vi sobre a tessitura da delicadeza nas relações humanas.

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FestRio 2015
Anomalisa (Charlie Kaufman)

Se eu tivesse prestado atenção à sinopse desse fllme, onde se lê quase no final "stop motion", talvez não tivesse comprado ingresso para vê-lo, e tivesse perdido uma experiência muito interessante de desenho animado, cujo protagonista é um executivo em grande crise existencial, que se hospeda num hotel na véspera de uma palestra sobre o livro que escreveu, um sucesso de vendas. A história é cheia de peripécias, buscas existenciais, encontros e desencontros, cenas eróticas e sexo, muito bem feitas todas, de tal modo que quase esquecemos que não são criaturas de carne e osso ali na tela. E a cena final, da volta para casa, em que todos se parecem com todos, é o fecho perfeito que se segue à fatal luz do sol, a iluminar uma boca que mastiga o fim do desejo, no café da manhã da despedida. Filosofia da existência pura - e um tanto anômala.

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FestRio 2015
H.  (Rania Attieh, Daniel Garcia)

Trata-se da história de duas mulheres completamente diferentes, de nome Helena, que moram em Troia, Nova Iorque, casadas, e ambas têm relação com bebês. Uma, a mais velha, resolve a questão cuidando de um boneco muito semelhante a um bebê natural, a quem ela amamenta, inclusive dá o peito; a outra está grávida, mas uma ultrassonografia não consegue encontrar o feto. Um dia, coisas estranhas começam a ocorrer na cidade, zumbidos fortíssimos, olhos vermelhos em algumas pessoas, um cavalo negro que surge inopinadamente para outros, sono profundo de repente. Há uma crescente tensão à medida que coisas vão acontecendo sem que saibamos exatamente o quê. O filme prende a atenção até o desfecho final, quando uma cabeça de mulher (Helena de Troia?) é resgatada boiando no rio, e a simbologia do cavalo de Troia, que guardava inimigos em seu ventre, talvez explique o destino da mulher jovem. Achei interessante, mas não excelente.
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FestRio  2015
Órfãos do Eldorado (Guilherme Cezar Coelho)
Achei o filme muito bom, transitando entre as águas e os igarapés da cidade de Belém, a luz que se move constantemente, os closes nos rostos e o embaraço dos corpos, tudo girando em torno dos conflitos e obsessões presentes na literatura de Milton Hatoum, alicerçados tais conflitos em culpas, paixões extremadas, e relações incestuosas. A dupla de protagonistas, vivida por Daniel de Oliveira e Dira Paes, explora à exaustão uma química de corpos mesclada ao desespero que impregna cada canto do casarão, repleto de memória e de histórias do passado. Um filme denso, tenso, e bonito, que vale ser visto. 
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FestRio 2015
Califórnia (Marina Person)

Do conjunto de filmes vistos hoje, "Califórnia" sem dúvida parece ser o mais interessante - filme tipo formação e aprendizado de uma jovem, roteirizado e dirigido de forma irretocável por Marina Person, em seu primeiro longa. Tudo funciona muito bem, da trilha sonora nota dez, ao trabalho dos três atores principais - Caio Blat, como o tio; Clara Gallo, que se parece fisicamente com a diretora; Caio Horowicz, um garoto mutio fofo e talentoso, e ainda a participação especial de Paulo Miklos e Virginia Cavendish como os pais de Estela. Por sorte, ainda pude cumprimentar a diretora ao final da projeção, e quase beijei-lhe as mãos ::))

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FestRio 2015
Longe desse insensato mundo (Thomas Vinterberg)

Um filmão, tipo blockbuster, muitíssimo bem feito, de quase duas horas, que eu não senti passar, apesar do horário avançado e de uma sala lotada. Uma história de amor que dura anos, envolvendo três homens e uma mulher, que a gente acompanha sem piscar. Com a linda Carey Muligan o tempo todo - e ela canta, muito bem (de novo)! Além disso, um dos pretendentes é o Matthias Schoenaerts, oh, céus!

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FestRio 2015
Ned Rifle (Hal Hartley)

O filme que fecha a trilogia do Hal Hartley, falando sobre várias relações mal resolvidas (mãe/filho; pai/filho; amantes enrolados etc), numa trama muito bem urdida, que só se esclarece mesmo nas cenas finais. O ator que faz o protagonista, Liam Aiken, parece muito adequado ao personagem, aquele ser meio perdido, meio fora do ar - o problema é que já o vi fazendo parecido em outros filmes, aí fica um pouco mais do mesmo. Mas o filme achei bem interessante.

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FestRio 2015
Como gente grande (Mathieu Vadepied)

Um filme francês sobre dois jovens, em torno de 14 anos, que vivem no subúrbio pobre de Paris e se envolvem com venda de drogas. O menino mais velho é bom aluno, e isso acaba sendo um aliado de sua possível saída daquele ambiente. Um ponto a favor é a relativa leveza com que a câmera acompanha os dois meninos, tanto em suas andanças para vender a droga, quanto em seu percurso existencial. Ambos têm salvação, a crer no final da história. 

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FestRio 2015
Olmo e a gaivota (Petra Costa)

Um filme estupendo, misto de ficção e documentário, que começa acompanhando os ensaios da peça 'A gaivota', de Tchekov, em que contracenam os atores Olivia Corsini e Serge Nicolai, que são também marido e mulher na vida real. A horas tantas, ela faz um exame e constata, para felicidade do casal, que está grávida. A partir daí o filme acompanha a mudança na vida deles, a partir de uma reclusão forçada da atriz e futura mãe, cuja gravidez de risco impõe cuidados. O temperamento dela é forte, e a qualquer momento vemos esse casamento ruir, tanto pela ausência dele nos momentos de enclausuramento dela, como pelas dificuldades dela em aceitar viver tão longamente fora do palco, sem trabalho. Ao fim e ao cabo, trata-se de um filme sobre os riscos de viver - o amor, a maternidade, o casamento, o trabalho, tudo está aqui, em closes e grandes talentos. 
Se não fiquei especialmente tocada pela poesia que consagrou Elena, o primeiro filme da diretora, aqui me rendo a seu enorme talento, que permitiu nos oferecer uma obra madura, cuja costura entre o inventado e o real se faz ao modo de pura arte.

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FestRio 2015
The Lobster (Yorgos Lanthimos) - ou, como criar um mundo ideal onde a violência é um atributo inquestionável

Imagine um lugar, tipo um hotel, onde as pessoas vão para encontrar um par, obrigatoriamente, num espaço de tempo determinado. O par a ser por força encontrado deve ter algum tipo de afinidade com essa pessoa – tipo um defeito na perna, um nariz que escorre sangue, talvez até alguém que espirre de modo semelhante. Achou esse ser? Beleza, você agora pode ascender a outros níveis do hotel, ou talvez morar na cidade como um feliz casal, um família perfeita.
Caso você tenha a infelicidade de não achar nenhum outro com idiossincrasias parecidas, você pode ser transformado no animal que escolher – qualquer um, até mesmo uma lagosta. Nesse espaço-tempo-lugar, as pessoas falam com o mínimo de emoção possível, tipo quase-robô, para demonstrar talvez a imparcialidade das escolhas, se é que me entendem, e é entrando nele que vamos encontrar o personagem de Collin Farrell – David, que ao fim de um certo tempo encontra uma mulher de coração duro, sem emoções, parecida com ele naquele momento. Os dois se casam e ficam juntos até que ele a abandona depois que ela comete uma grande crueldade com um ser que ele prezava.
Fim da primeira parte do filme, e da primeira hora. São duas.
Imagine agora um lugar completamente diferente, no meio de uma floresta luxuriosa e bela, onde as pessoas vão para ficar sozinhas – isso mesmo, agora a brincadeira é ao contrário, sacaram? Antes era obrigado a ter um par; agora é obrigatório não ter ninguém, não namorar, não roçar com segundas intenções, nada de namoros, ou serão punidos furiosamente.
É nesse lugar que Farrell aporta quando foge do hotel lá de cima, e a gerente geral aqui é vivida por Lea Seydoux, sim, ela, aquela fofa do filme que todos amamos. David está agora no território dos Solitários, onde um beijo será considerado alta traição. Mas ele começa a olhar pra personagem da Rachel Weisz e achá-la levemente interessante. Daí a tentarem ficar juntos é um pulo. Claro que serão descobertos, porque tesão é sempre bandeiroso, e claro que haverá punição – cruel, macabra e fria.
Isso é mais ou menos como eu vi The lobster.
O filme levou umas duas horas nessa história sem fim de diálogos chochos. Não houve um momento sequer em que eu não me sentisse levemente ridícula por ter que levar a sério um universo de banalidades que só quer, na real, falar de e expor violência. Será mesmo necessário criar um universo tão inverossímil para praticar os atos mais vis e mesquinhos e cruéis? O nosso mundo palpável e concreto já não tem material suficiente para suprir séculos de violências? E não dava para melhorar os diálogos, aprofundar um pouquinho que fosse as bobagens que eles falam? Porque 'sem emoção' não significa necessariamente sem profundidade. E ali, tudo é raso, salvo furar os olhos com faca para ficar com a amada.

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FestRio 2015
Boi Neon 2 (Gabriel Mascaro)  – Para Solange

Boi Neon é um poema do agreste, um filme que fala da vida dos seres simples, que fazem o trabalho simples de passar giz nas crinas dos bois, tangê-los pras pistas de terra bruta, para que outros homens possam derrubá-los e, desse modo, ganhar a vida; nele, a mulher dirige o caminhão, carregando bois de lugarejo em lugarejo, e o conserta quando ele enguiça, ou dança à noite usando roupas e fantasias do universo que compartilham. Também é um filme sobre os afetos entre os homens rudes, as mulheres, as crianças; sobre como na natureza simples, onde os animais são importantes, os sentimentos e as necessidades mais viscerais dos que vivem em torno deles são igualmente tratados de modo simples, e radical: comer, beber água, tomar banho, embelezar-se, abraçar, amar, fazer amor; por último, o filme tematiza de modo diferente o que na verdade deveria ser simples, e nós complicamos – gênero nós inventamos com o nosso querer, nosso rumo, nosso destino, nossas escolhas. E, por fim, se não fosse o poema narrativo que é, o filme valerá por algumas das cenas mais bonitas e inovadoras do nosso cinema. O Gabriel Mascaro pode se orgulhar da obra, fez um trabalho de mestre.

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FestRio 2015
Boi Neon (Gabriel Mascaro)

Boi Neon foi o filme mais impactante dos três que vi hoje, por vários motivos, mas ele é todo interessante, e foge de modo muito próprio aos estereótipos que regem o universo das vaquejadas. O que se tem é a observação atenta e bem colada aos rostos das atividades e das pulsações de um grupo de pessoas que viaja pelos lugarejos num caminhão, ajudando nas vaquejadas. Juliano Cazarré é Iremar, o cara que passa giz na crina dos bois antes de entrar na arena, mas gosta mesmo é de costurar, quer criar roupas, essa é sua paixão; Maeve Jinkings vive a Galega, motorista do caminhão, que viaja com a filha e está à espera de que o marido volte um dia. Tudo acontece meio devagar: a vida simples no meio dos bois, dos cavalos, as viagens que se repetem e as corridas dos vaqueiros em torno dos bois.
De repente, Iremar e um colega resolvem aprontar: tentam roubar o sêmen de um cavalo muito valioso, mas a empreitada dá errado porque o bicho ejacula na cara do amigo, e não no jarro. Aquele enorme pênis em close já causa um certo estranhamento, em meio à relativa mesmice daquelas vidas, mas tudo parece natural, em razão do convívio constante dos personagens com os animais. E já que vimos o do cavalo, com absoluta naturalidade, outra cena mais à frente também será mostrada no mesmo diapasão: trata-se de um banho coletivo de homens, todos daquele universo que aprendemos a reconhecer como machista, e todos nus, alguns (Cazarré, por exemplo) em nu frontal, e tudo encenado como se estivéssemos à mesa jogando conversa fora, ou seja, do modo mais natural possível. Touché para a equipe, para o diretor, para os atores, e para Cazarré em especial, por razões que só a vista alcança.
De todo modo, será ele ainda a viver uma das cenas mais impactantes e mais bonitas de sexo vistas em nosso cinema, por tudo que ela envolve, quando encontra uma moça grávida e linda, Geise, (Samya de Lavor), revendedora de perfumes, e também segurança de uma fábrica de confecções. Ela sabe do interesse de Iremar por essa atividade, e o convida para conhecer as instalações. Lá, ele fica encantado com tudo, e nesse clima de enlevo, em cima da mesa de cortes, acontece a cena em close aberto: um balé de posições, em função da barriga da moça, construído sob a égide da beleza, da elegância, da simplicidade – um momento de puro, belo, e explícito sexo. Bom demais esse filme, com um nível de simplicidade que esconde com maestria sua completa e alta artesania.

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FestRio 2015
Mate-me por favor (Anita Rocha da Silveira)

Muito estranho esse filme, embora eu vagamente entenda a proposta, ou as, porque parece ao mesmo tempo terror adolescente, alerta com relação à violência, crítica à evangelização e sua banalidade, além de painel do cotidiano de jovens da classe média da Barra, com seus amassos sem fim nos banheiros da vida. Enfim, todo um universo highly ET para essa senhora. Concedo que não deu pra mim, ficou longe demais de onde minha vista alcança. Fim.
PS. O cinema estava lotado de jovens, parece que todos os colégios de 2º grau foram convidados, até a moça da limpeza deu uma sentadinha no chão para assistir.

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FestRio 2015
Grandma (Paul Weltz)

Grandma é uma espécie de inventário de uma geração de mulheres que viveu sob a égide da segunda onda feminista, e teve a sorte de poder escolher seu destino, seu modo de viver, seus próprios erros. O filme abre com o rompimento entre Olivia (Judy Greer) e Elle, a protagonista – feminista poderosa, intelectual e poeta, com obra reconhecida e aclamada, além de ter um temperamento inquieto, falastrão, áspero e vibrante, vivida com maestria por Lilly Tomlin. Vemos o destempero de Elle na cena de despedida, e sabemos também que ela ficou viúva do grande amor de sua vida, Violet, com quem viveu muitos anos, que educou a filha delas, e tem-se a impressão de que Violet foi a mãe na relação, a fim de que Elle construísse sua carreira.
Logo em seguida, a chegada da neta, Sage, ainda adolescente, pedindo ajuda para fazer um aborto, marcado para o mesmo dia, aciona a história do filme propriamente dito, que se constitui numa espécie de Bildungsroman existencial, um novo aprendizado na busca dessa avó pelo dinheiro, que ela não tem, para ajudar a neta. Ambas começam um périplo que é ao mesmo tempo uma aproximação entre duas gerações muito distantes, e uma tomada de consciência de Elle sobre seu próprio passado, sua história pessoal, profissional e política, bem como a de um certo feminismo, em que The Feminine Mystique (1963), de Betty Fridan, teve papel fundamental. Por isso, a horas tantas, Elle tem a ótima ideia de vender as primeiras edições de seus livros, que em algum momento do passado custaram uma fortuna. A graça, e a ironia da coisa, é a confusão gerada entre o que já foi importante (para a avó, para nós) e o completo desconhecimento da neta sobre tais figuras emblemáticas, de onde surge a confusão entre a Mystique do livro e a personagem do X-Men – Sage, evidentemente, só conhece a última. Ellen supõe guardar uma fortuna em livros raros, mas na verdade todos estão a preço de banana no E-Bay – a história esfarela-se a olhos vistos.
O filme segue fazendo essa acareação com as figuras do passado, e cada uma delas revela um pouco de Elle: a amiga tatuadora (Laverne Cox); o ex-marido abandonado (Sam Elliot), e chega-se finalmente à visita mais temida: à dona do dinheiro, a própria filha, a quem ambas, avó e neta, sempre temeram. Esse encontro finaliza não apenas o périplo, e o filme, mas deixa em aberto um novo caminho de afetos e possibilidades para aquela brava old lady. Gostei muito de assistir, e ao desempenho inigualável de Tomlin, que mescla humor e sarcasmo (e alguma melancolia em quem vê), para criar um personagem que ao mesmo tempo nos constitui, e de que somos, em grande parte, herdeiras.

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FestRio 20154
Jonas  (Lô Politi)
Fiquei animada com o filme, e quando vi o Jesuíta Barbosa, mais animada ainda. Mas ficou muito aquém do que eu esperava, uma história de amor, samba e drogas um tanto confusa, e a Laura Neiva ainda não me convenceu aqui de que realmente seu trabalho é atuar. Não gostei, embora ver o Jesuíta não me tenha feito perder tempo.

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FestRio 2015
11 Minutos (Jerzy Skolimowski)

... daí eu entro primeiro numa fila imensa, pela primeira vez no festival, justamente no cinema em Botafogo que já foi (ou ainda é) um dos polos mais ativos de cinema da cidade, em geral, e não apenas nessa época. Entro na fila, mas antes vou lá fora para tentar falar ao celular, porque lá dentro não se consegue, não tem "linha"; tampouco tem conexão wi-fi. Volto, entro na fila, reclamo da bagunça porque de repente abriu-se uma clareira, metade do povo vai para um lado, outra metade para o outro, me distraí e onde eu estava mesmo na fila? Consegui entrar, sentei numa fileira mais para trás, na terceira poltrona, coloquei meu guarda-chuva na poltrona vazia a meu lado, torcendo para que ninguém a ocupasse, porque gosto de espaço vazio. Busco os óculos para encontrar o celular e baixar o volume, mas cadê? Perdi os óculos, ou caíram embaixo da poltrona. Acendo a lanterna do celular, miro embaixo da poltrona da frente do meu vizinho à direita, lá está ele, o objeto sem o qual pouco vejo. O rapaz pega-o pra mim, ficamos felizes, mas logo percebo que falta uma lente. Acendo de novo a lanterna, o filme já vai começar, peço ao rapaz à frente do moço à direita que ele veja, por favor, se há uma lente embaixo de sua poltrona, mostro o aro dos óculos, dou-lhe o celular com a lanterna acesa, ele abaixa e - achou! Fico feliz de novo, tudo deu certo. Uma moça senta na poltrona da ponta a minha esquerda, mas a do meu lado continua vazia, meu guarda-chuva apoiado nela. Começa o filme, entra o lanterninha, e aponta para alguém a poltrona a meu lado. Retiro o guarda-chuva e nela senta-se um rapaz que, olhando rapidamente, reconheço, e quase não acredito: Francisco! Brinco baixinho que ele tomou o lugar do meu guarda-chuva, e o filme segue - uma colcha de retalhos de vidas, histórias, momentos, pessoas que vão e vêm, um avião muito barulhento que passa algumas vezes também muito perto dos prédios, a lembrar que houve (e haverá outro, talvez) um 11 de setembro. 
Estamos avisados, mas meu olhar não se prende muito às histórias, é tudo meio confuso, muito barulho, quase ensurdecedor, a mulher que quer ser atriz de repente passa mal no apartamento do possível diretor, ou produtor, que quer mesmo é transar com ela, muito bonita, e, de repente, tudo se esfacela, todos os personagens soltos em seus momentos juntam-se agora, nesse final que é : E.S.T.R.O.N.D.O.S.O!
Um filme que, para mim, só existe para afunilar-se nesse final espetacular, e espetacularmente sincronizado e filmado. O público aplaude. Eu saio antes dos créditos porque o barulho na tela é infernal, tomo um café. Saio e acabo encontrando o grupo de cinema aqui do face todo lá fora. Dou e ganho um abraço muito bom de alguém que não frequenta mais essa mídia, Enic Cine. O melhor do filme.

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FestRio 2015
Scheneider&Bax (Alex van Warmerdam)

Um thriller que envolve dois assassinos de aluguel contratados para matar um ao outro. Em princípio, só um saberia quando o outro chegaria, mas as coisas dão errado e os dois acabam sabendo de tudo. Para complicar, a filha deprimida e chatinha de um deles vem visitá-lo, mas o pai não está com muita paciência para ela porque, claro, precisa de energia para evitar ser assassinado. A filha sai de casa, embrenha-se no pântano que rodeia a casa. Daí, para complicar de novo, chega o avô, junto com sua jovem amante. Este idoso parece ser o cão chupando manga, porque é tratado pelo filho como lixo. A horas tantas, o homem manda seu pai procurar a filha que saiu da casa. O velho vai, tenta molestar a neta e ela o esfaqueia. No frigir dos ovos, restam um dos assassinos e a moça, que a esta altura já descobriu a fonte da adrenalina. Minha restrição ao final do filme se dá pela forma como ela consegue se manter viva. Penso que se perde uma ótima chance de dar uma saída para a depressão daquela moça. Talvez fosse mais legítimo, e mais adequado àquela pessoa, se ela herdasse o trabalho do pai.

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FestRio 2015
Entertainment  (Rick Alverson)
Quem programou esse filme estava bêbado ou doido. Putz, que coisa chata chata chata. Fiquei uma hora vendo um deprimido tentar contar piadas sem gracíssimas e olhar-se no espelho sem expressão. Uma hora pra ver se fazia qualquer sentido. Não fez, e não me interessa se a filha existe ou é delírio, porque ele é muito chato!.

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FestRio2015
La isla mínima (Alberto Rodriguez) 

Filme espanhol de Alberto Rodriguez que ganhou 10 prêmios Goya esse ano, inclusive de melhor filme, direção, ator etc, etc. Difícil falar de um filme cuja força está tanto no que expõe de modo explícito - os corpos das jovens seviciadas numa cidadezinha perdida nos confins da Espanha, onde nada ou quase vida nenhuma parece brotar, salvo a natureza vorazmente pujante, majestosa, sobretudo quando vista do alto, contraposta a vidas muito precárias, pobreza e ignorância; mas igualmente no que se lê implicitamente, em frases entrecortadas, nos encontros ambíguos, e num ritmo cujo andamento caminha sempre em direção a mais e mais instabilidade. O filme impõe um estado de tensão constante ao espectador, porque a qualquer momento algo fundamental, ou trágico, ou revelador, ou abissal vai ocorrer. É como se ele nos segurasse pela gola da camisa, e nos dissesse: olhe, pense, veja - é isso, mas não é apenas isso, ou preto, nem branco, é isso e aquilo, é mais além, é quase tudo isso, mas não apenas. Um filme sempre muito bom, muito instigante, talvez o melhor que vi até agora.

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FestRio 2015 
Transtorno (Alice Winocour)

Um filme de bandido e mocinho, em que o mocinho é um ex-soldado com transtornos emocionais pós-guerra, que faz trabalhos como segurança em festas e casas de ricos. Daí surge um imbroglio entre ele e uma mulher casada com um ricaço que tem negócios escusos, e que desaparece numa viagem. A história prende pela agilidade dos acontecimentos, que vão num crescendo até o desfecho meio inesperado, e um tanto sem graça. Mas tem o Matthias Schoenaerts, sempre interessante de ver. E a Diane Kruger, muito bem, e muito linda.

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FestRio 2015 (02/10)
Um amor a cada esquina (Peter Bogdanovich)

Trata-se de uma comédia divertida, dirigida pelo fera Peter Bogdanovich, e que me pareceu também um exercício de estilo à moda de, ou uma homenagem explícita a Woody Allen - por várias razões, até mesmo pelo personagem de Owen Wilson lembrar um pouco seu outro de Midnight Paris (mas só no jeitão meio perdido entre mulheres). De resto, tudo funciona bem nessas histórias que se cruzam, e Jen Aniston de psi um tanto maluquinha faz a ligação entre todos os fios humanos destrambelhados. Bom de ver. 

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Não é do FestRio, mas vale o registro:

Perdido em Marte (Ridley Scott) - Gostei bastante, mas não entendi, como de praxe, quase nada que os envolvidos, ou seja, os cientistas, discutem a respeito de como proceder para realizar aquele resgate - a parte técnica eu achei hard. Menos o desenho - explico: em certo momento, um muito louco especialista em "astrodinâmica" explica aos superiores como ele descobriu a pólvora, e, literalmente, "desenha" na sala, com movimentos muito engraçados, como tudo será feito. O filme puxa um tom para a comédia, e a trilha - ah, a trilha sonora - ajuda um pouco nisso. Eu mesma achei retrô, e parece que é tudo do tempo de eu menina, ou seja, muito louca e muito boa. Daí que, seguindo a trilha, chega-se a vários momentos de humor, e acho que esse é o primeiro filme desse tipo (viagens espaciais) com mais humor que já vi. A paisagem de Marte é belíssima, e ainda fico pasma de saber que tiraram esse filme de dezessete horas de filmagem. Deve ter mais uns cinco ali dentro. Mas não vi em 3D, hélas.



domingo, 22 de março de 2015

Dois filmes

Duas irmãs, uma paixão explora o triângulo amoroso entre duas irmãs e o poeta alemão Friedrich Schiller. O interesse fica em torno da ambiguidade sobre o que move as duas moças em direção a um pacto que claramente envolve fortes sentimentos entre elas - seriam apenas sentimentos fraternos, ou também amorosos?. Essa ambiguidade, e a entrega total ao amor de Schiller, bem como a paixão do poeta por temas profundos, ligados não apenas à poesia, mas à História do pensamento, ou um nascente pensamento histórico sistemático, tornam o filme necessário. Um pouco menos longo, talvez, em pelo menos um momento: o longo discurso da mãe pela reaproximação das filhas me pareceu uma das cenas dispensáveis. As duas atrizes são ótimas, mas o ator que faz Schiller cumpre o esperado, não mais que isso, me pareceu. 


Já em O amor é estranho temos uma comédia sobre as relações contemporâneas, nesse caso entre um casal homossexual de meia idade que se vê repentinamente sem um lugar para morar,e o modo como eles enfrentam essas adversidades, dividindo-se em casas de parentes, até que as coisas começam a desandar, como esperado, claro. Nunca morar em casa de alguém por necessidade será fácil ou agradável, para quem recebe aquele "intruso", ou para o que não tem outro lugar pra ficar. De todo modo, o filme enternece, faz rir, e faz pensar nas dificuldades atuais para achar um canto pra morar (por coincidência, estou no meio de um processo parecido, embora não tenha tido necessidade de pedir asilo a ninguém - eu mesma me exilei de minha casa e cidade por mais de um ano). Lá e cá também, a situação de moradia parece difícil - e ser um casal gay apenas nos faz ficar mais cúmplices de suas desventuras.


segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

Still Alice

Still Alice (Richard Glatzer, Wash Westmoreland, 2015) tem na atuação de Julianne Moore uma forte candidata ao Oscar deste ano, mas a cena do filme que mais me comoveu foi aquela em que sua filha mais nova, vivida por uma madura Kristen Stewart, recita a fala de uma peça para a qual fará teste em Nova York, e ao final pergunta à mãe, já em processo acelerado de um Alzheimer precoce, de que trata o texto que ela acabara de ouvir. Com alguma dificuldade para articular as palavras, ela praticamente sussurra: amor - o texto trata de amor.

Se esse foi um momento particularmente tocante, embora com seu tanto de pieguice, a emoção não me acompanhou ao longo do filme, ao contrário, a sensação foi de que a indústria do cinema norte-americano resolveu investir em dramas que exploram a morte de uma forma meio glamourizada. 

Os elementos que compõem o quadro são absolutamente adequados: mulher de classe média alta, professora conceituada de Linguística em Universidade de prestígio, mãe de uma família de filhos amorosos, marido parceiro e cúmplice, começa a ratear as frases durante as aulas, a fazer suas corridas sem saber onde foi parar, a esquecer nomes, palavras. Nesse horizonte de pessoas bem de vida, e de bem com a vida, o drama que se desenha não chega em nenhum momento a incomodar verdadeiramente - até a tentativa de suicídio, programada por computador, resolve-se de outro modo, meio por acaso, e Alice continua seu processo, sem nenhum estardalhaço, rumo a um declínio mental discretamente percebido, menos ainda vivenciado - um Alzheimer limpo, em que um xixi nas calças é o máximo de degradação a que se chega.

Parece inevitável a comparação com outro momento, em que o cinema francês encena um processo de declínio semelhante, também de um personagem feminino, em ano relativamente recente. Trata-se do filme Amor (2013), de Michael Haneke, em que ele coloca em cena o casal vivido por Jean Louis Trintignant e Emmanuelle Riva, numa experiência excruciante face à perda de movimentos da mulher, que sofre um abrupto derrame, a partir do qual a vida de ambos será solapada, sem misericórdia, dia a dia. 

Ambos ligados à arte da música, já aposentados e vivendo sozinhos, ela vai perdendo os movimentos, a expressão dos olhos torna-se embaçada, e nós vemos surgir na tela a presença da morte, que praticamente se presentifica, e se petrifica, através da atuação magistral de Riva. Tal atuação mereceu a indicação ao Oscar daquele ano, perdido injustamente, segundo penso, para outra jovem e esfuziante atriz.

Diferentemente de Riva, a doença e a decrepitude vividas com toda a dignidade, e talento, por Julianne Moore, talvez sejam reconhecidas com mais uma estatueta. Hollywood sabe honrar suas estrelas.


segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

Depois da chuva

Depois da Chuva. Claudio Marques, Marília Hughes, 2015. 


Depois da chuva parece um filme movido a carreira, a correria, talvez porque a trilha sonora à la Chico Science e outros agitados do mangue é quase um personagem, já que os jovens se comunicam também através do rock e dos sons que ouvem, poesia incluída.  

A história mesmo é um tanto confusa, o roteiro é deliberadamente disperso, para se acertar com a instabilidade que se vê na história do país, recém saído de uma ditadura que silenciou uma geração, e na tela a geração de jovens, bem jovens, sonha sonhos belos, enevoados, inebriados, destemperados, um pouco alucinados - como o momento histórico, como o momento pessoal, coletivo, e nacional. 
Um filme muitíssimo interessante, com um jovem ator muito bom fazendo o aluno-poeta-rimbaud-anarquista, sem amor de mãe, e lutando bravamente para encontrar um sentido - qualquer sentido na confusão reinante da pós-ditadura.

Uma cena já me parece antológica: o grupo reinterpretando um tango (Negue, que Nelson Gonçalves tornou imorredoura dor de cotovelo nacional) na festa da escola, aos berros, aos gritos, Caio quase engolindo o microfone, num canto de guerra contra toda ordem morna e chocha, ou seja, um aceno violento pra vida.

E a trilha é formidável - embora eu não tenha a menor ideia do que seja aquele ritmo, sobretudo o que toca na rave da fábrica, quase ao final - rock alternativo?

quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

Mais um ano (republicado)

Mais um ano. Mike Leigh (FestRio 2012) - Nota 9,5

Um filme de 2010 que só agora pudemos ver, onde Mike Leigh faz um trabalho de mestre, num filme belíssimo, tocante, transparente em sua leitura da solidão e da natureza humanas. 
É generosa sua forma de lidar com as carências de afeto, de calor e de amizade de alguns personagens, sobretudo quando retrata uma mulher madura que ainda não se deu conta inteiramente de quem é, e não consegue aceitar completamente o nível de suas reais necessidades afetivas.

Ela pertence àquele rol de seres muito perdidos, cujos anos vividos parecem não ter ensinado o suficiente sobre esse dado estrutural e fundante de nossa humanidade: somos e estamos sós, embora alguns de nós consigam fazer-se acompanhar durante um percurso da vida, longo ou breve, pelo ente amado, pelo amigo, pela família possível, com quem se tecem histórias, compartilham-se vivências - ao final, na velhice a que hopefully se chega, essa tessitura de afetos será uma espécie de norte, cada vez mais necessário, para melhor caminhar em direção ao que nos aguarda a todos.

O que Leigh constrói é uma narrativa fílmica de como cada um enfrenta basicamente a solidão. O casal maduro, magnificamente interpretado por Jim Broadbent e Ruth Sheen, que se mantém unido e amoroso, que tem no manuseio da terra uma fonte de alegrias e vitalização - será o ponto de convergência onde aportam os vários personagens a sua volta. Ali eles conversam, desabafam, choram, riem, bebem (bastante, aliás - lembrei de HH: a vida é líquida), contam histórias - tecem os fios de suas existências e os entrelaçam uns aos outros, como se dá com amigos, com os que cruzam nossos caminhos.

Mas ficou no ar (para mim) um certo travo e custei a encontrar a motivo: acho que é esse núcleo indestrutível que o casal idoso constrói em torno de si, de afeto e cumplicidade - penso que está mais no campo da utopia, de uma idealização que não encontra eco em minha memória. Fiquei pensando que havia um tanto de bom mocismo ali e isso, confesso, me incomodou um pouco. Mas nada que impeça o real prazer de fazer parte, por alguns instantes, daquele universo de afetos.

Trash

Trash. Stephen Daldry, 2014.

Há algumas boas passagens no filme, as atuações sempre corretas do Wagner Moura e do Selton Mello, uma Rooney Mara meio apática e um Martin Sheen meio patético. Mas a cena da perseguição dos meninos nos telhados, embora já vista em outros filmes americanos, e melhor, talvez, dá pra torcer e gostar, mas não eletriza. 

O que acho que pega mal mesmo, no geral (e no particular) é a proposta um tanto pedagógico-ideológica, sobretudo no final, absolutamente inverossímel, imponderável e improvável - e mais outros 'áveis', quem sabe. Não achei viável aquela menina surgir feito um fantasma no cemitério, depois se tornar amiga desde sempre dos meninos e todos vão se esconder numa praia aparentemente longe, e vivem de pesca e brincadeiras - nesse final, até Rousseau corou. Sobre a cena da foto, está dentro de um dos sufixos mencionados - impensável.

O juiz

O juiz. David Dobkin, 2014. 

O juiz - um dos melhores filmes de tribunal que já vi, ever - muito bom, emocionante, algumas reviravoltas que levam os personagens pra lá, pra cá,Robert Downey Jr arrasando, Robert Duvall, já bem velhinho e dando também show de interpretação. Para mim, a atuação do Robert Downey é digna de Oscar, mesmo sabendo que esse tipo de filme pertence a uma categoria, aparentemente, menor. Gosto deles demais, e penso que filmes de tribunal deveriam constituir um gênero em si, e norte-americano - uma de suas grandes especialidades, o fazem há milênios e ainda conseguem emocionar. Neste caso, acho que a dupla de atores em cena é uma força da natureza - e não é que tem até um tornado no filme?. Há também acerto de contas entre pai e filho, entre antigos amores, e uma família de homens em que eu, em geral, e se o filme não for muito bom, me sinto um tanto excluída. Não aqui, não nesse grupo, talvez porque todos carreguem sua parcela de desconforto em estar aqui e agora, neste mundo, e mesmo o personagem do filho mais novo, o que tem problemas estruturais, de ordem psíquica, esse tem o poder de trazer o passado de volta, através dos vídeos que vai filmando e acumulando desde a infância. Um flme sobre valores, honra, reencontros com velhas feridas, ressentimentos, coisas não ditas em seu tempo próprio - e de superação. Um filme que faz bem ver.

Take this waltz

Take this waltz, Sarah Polley, 2012 

Às vezes, rever um filme faz-nos vê-lo melhor, redescobrindo suas qualidades, ou encontrando-as sob outro ângulo. Revi ontem Take this waltz (que título interessante no original) - traduzido como "Entre o amor e a paixão", e fiquei encantada. Não lembrava que a direção é da Sarah Polley, bem como o roteiro, e ele ficou de molho de 2009 até 2011, quando começou a ser produzido por ela também.

O que me fez grudar na tela são algumas qualidades que me parecem um certo modo Sarah Polley de trabalhar, que eu vejo como uma acentuada atenção ao universo psíquico e social da mulher, enxugada ao máximo das visões e versões estereotipadas que nos cercam. Por exemplo, o banho das mulheres depois da piscina, quando a personagem de Michelle Williams, adorabilíssima, faz xixi durante uma aula de hidroginástica, num frouxo de riso - existem três delas com corpos ótimos, em nus frontais e naturais, e algumas outras com corpos fora do padrão, em nus frontais e naturais. Nada ali é feito pra mostrar o corpo, mas pra mostrar o banho, numa cena de conversa entre mulheres muito boa.

E tem a paixão - e o amor. O filme explora os momentos do casamento em seu fluir, onde a insatisfação está presente claramente, mas um deles não vê, ou não pode ver. E também os vários momentos em que eles mostram sua parceria, os jogos de intimidade que, entre esses dois, ocorrem pela referência às várias formas de crueldade, de morte macabra, que se vê em filmes de terror ou de terrir, tipo 'vou esfolar sua pele com raspador de batata' - esses são momentos realmente sem graça para mim, não consigo achar humor nisso, e parece no filme que há uma espécie de "leitura" de algo que já rendeu aproximação entre eles, risos, e talvez não funcione mais.

E há a paixão entre Margot e Daniel (esse Luke Kirby, muita beleza e ternura na aura dele todo!). Um personagem homem muito parecido com o personagem mulher que a própria Sarah faz no filme onde eu a conheci - "A vida secreta das palavaas" (Isabel Coixet, 2005), ou seja, estranhos seres, introspectivos, com trabalhos inusuais, que dizem um pouco de seus modos particulares de estar na vida - no caso dele, carregador de riquixá para ganhar algum dinheiro, e também fotógrafo-pintor, e um amante sensível, que tem a cena mais deslumbrante sobre como fazer uma mulher feliz (ela, a Margot que está a sua frente, na mesa do bar) só quase murmurando e olhando pra ela e descrevendo todas as ações m.i.n.u.c.i.o.s.a.m.e.n.t.e - olhando-a com um jeito maroto, um tanto enigmático - melhor, impossível.

E tem também uma alcoólatra, em duas cenas onde o essencial da doença é dito, de modo claro, expressivo, perfeito. As falas do roteiro são uma marca de qualidade Polley, que não desperdiça palavras, nem ao vento, nem à tolice.

E o final perfeito: nada como voltar a uma roda gigante onde já se foi feliz com alguém para tentar achar a graça em si mesma, consigo mesma - Margot tem um longo percurso a sua frente, mas achará seu caminho, e sua escrita. 


Relatos selvagens

Relatos Selvagens. Damián Szifron, 2014.

São quatro episódios, e mais dois curtinhos (me lembra Enic), cujo núcleo e motor é a violência, em variadas situações e intensidade relativamente alta (só um não olhei tudo, porque já sabia o que estava acontecendo e aqueles dois não tinham jeito mesmo), mas com humor, quase sempre, o que torna tudo interessante – as situações de violência brotam dos atos mais comuns do cotidiano, daí todos nos encontramos ali, em algum momento: dirigindo um carro, um sujeito num carreco atrapalha a vida do sujeito num carrão que vem atrás, quando dá pra ultrapassar o dono do carrão tripudia o outro, mas daí o pneu dele fura mais na frente - pois é, já viu – chega a ser histriônico, de tão imbecil o motivo de tudo - e tem de tudo, até o fim.

Noutro, um garoto rico atropela e mata uma mulher grávida - todos da família dele se acertam com um empregado antigo e com o detetive para livrá-lo da cadeia – mas acontecimentos inesperados embolam-se e... .

Em outro, ótimo, a festa de casamento vira um caos porque a recém casada descobre que o marido tem uma amante e ela está ali, na festa, daí o que parecia aquela coisa chatinha de festa de casamento vira um pandemônio, a recém casada se transforma numa maluca-beleza e a festa fica ótima – ah, e o final também é muito bom (esse é o segundo melhor, para mim).

Por fim, o episódio com meu rei Darín não é o último, mas ele é um engenheiro especialista em implosões, e é também um sujeito dado a explosões porque a vida é cheia de arestas e de situações injustas, além de que os caras do Detran de lá não dão trégua ao personagem e rebocam o carro dele toda hora, até que o homem não agüenta mais e...bom, já deu para imaginar, né. Achei o melhor episódio, o Darín está ótimo, podem falar o que quiserem, mas ele é minha Fernanda Montenegro da Argentina, difícil errar a mão, e tem também o final mais surpreendente (todos os episódios têm um final mais, ou menos, surpreendente). 


O físico

O Físico, Philipp Stolzl, 2014. 

Trata-se de um épico, que se passa no século XI, em plena Idade Média, sobre o nascimento da Medicina, baseado no livro de Noah Gordon, de 1999, e um dos livros mais populares do mundo. Segundo alguns espectadores e leitores do livro, aquele não faz jus a este. 

Eu não li o livro, e gostei do filme, que traz os ingredientes adequados de aventura, busca por conhecimento, drama amoroso, lutas entre povos e religiões (cristãos, judeus e muçulmanos), barbárie e redenção, na história do menino que perde a mãe para uma doença cuja cura inexiste então.

Movido por essa perda, ele pede para ser aprendiz de uma espécie de médico-barbeiro, meio saltimbanco, vivido muito bem por Stellan Skarsgårdr, que vai de cidade em cidade oferecendo curas com estardalhaço, embora faça apenas o pouco que seu tempo permite. Com ele, aprende rudimentos de cura, e se descobre com o dom de sentir quando um doente vai morrer.

Sua sede de conhecimento o leva a uma longa jornada, em busca de se tornar discípulo de renomado cientista do outro lado do mundo. E o filme segue esse jovem, interpretado por Tom Payne, até a Pérsia, onde reviravoltas inúmeras acontecem – guerras, amores, amada que quase se perde, e depois se ganha, batalhas entre mil soldados, até que se salvam os dois amantes, e de volta a Londres ele abre um hospital, onde exercita sua grande paixão. Acho que o filme cumpre sua função de contar uma ótima história, embora pudesse ser um pouco menor (mas li que ele já foi reduzido em mais de meia hora).