segunda-feira, 19 de maio de 2014

Praia do futuro

                                                       Para Egídio 

Já tantos disseram e comentaram e analisaram o filme que vou apenas pontuar o que achei forte, especialmente, em Praia do futuro, de Karim Aïnouz (2014).

1. Um ritmo tenso, descosido, sem linearidade, cuja forma está absolutamente de acordo com o conteúdo: aqueles três homens ziguezagueiam em busca de caminhos - literalmente expressos pelas braçadas mar a dentro, de um; pelo trabalho com e meio de transporte na moto, de outro; pelo andar sem rumo em busca do irmão por uma Berlim estranha e estrangeira para o terceiro. A primeira cena de sexo entra pela cara do espectador como uma rajada de bala: ninguém ali está para amenidades, meus senhores, o papo aqui é curto, e direto (foi nesse momento que um casal de idosos saiu devagarinho da sala).

2. Um amor e um erotismo fortes e másculos - não há mimimi por ali, tudo é cheio de tesão, intensidades e descobertas. Na verdade, quando o filme termina, meu primeiro pensamento, além de seguir atávica aquela paisagem final gelidamente bela foi: filme macho pacas! Um amor entre homens, que se amam como homens, com direito a expressões de afeto coreografadas como uma luta de boxe, e sexo sem expressões de ternura. Salvo depois, sobretudo em um dado momento em que Donato passeia pela rua depois do amor com Konrad, com aqueles incríveis cabelos cacheados, e a expressão de enlevo que Wagner imprime ao rosto me acompanha até agora - o meio sorriso é mais bonito e terno que o da Monalisa, e de uma delicadeza, uma graça e um afeto absolutos. Wagner, com a perícia dos grandes artistas, domina tudo nesse filme.

3. O tema do estranho e do estrangeiro que percorre toda a estória é um leitmotiv extremamente bem realizado, porque ele se apresenta tanto para cada indivíduo, em sua busca pessoal de auto conhecimento (o homem viaja de moto com o amigo para conhecer-se no mundo; o outro viaja para o estrangeiro para se conhecer e se descobrir no amor; o menino viaja para desvendar seu passado e seu futuro com o irmão-pai), quanto no sentido mais amplo, do homem face ao estrangeiro que ele é em cada lugar e ao estranho que ele é para o outro, o que se deixa ler na duplicidade e ambiguidade do título - Praia do futuro remete tanto ao lugar da capital nordestina que acolhe visitantes estrangeiros de vários partes do mundo, quanto condensa em seu sintagma um possível caminho de constituição metafórica dos personagens.


4. O Parangolé que Donato usa, numa cena belíssima, lá naqueles confins de uma praia que não tem mar, símbolo da ligação dos irmãos e memória afetiva desencavada nas entranhas do gelo e do vento (um vento que na cidade de cá se conhece como brisa), vem para lembrar que dá para carregar o país para onde se vai, na verdade o país nos carrega onde quer que estejamos. Esse é o mote para a declaração de amor do irmão para o outro, o filho-abandonado: ele foi porque precisava, mas estava de volta porque nunca deixara de amá-lo, lá atrás - no país, na cidade e na província que sempre seria a sua, e cuja identidade essa foto - essa imagem - flagra como sinete de pertencimento, tatuagem na pele da cultura, e do próprio corpo.



segunda-feira, 5 de maio de 2014

Memórias (1) - Uns sapatos e seu cheiro



O cheiro dos sapatos novos jamais me abandonou. Aquele 
cheiro específico, misturado com odor de papel novo, cola, 
couro, novidade, cheiro de gente de verdade.

Eu era menina, devia ter uns seis, cinco anos, morava nos 

cafundós do Ceará (para registro: Alto Santo). Meu tio tinha vindo
do Rio de Janeiro, do outro lado do mundo, para nos visitar, 
trouxe todo o luxo com que jamais sonhara - máquina de tirar 
fotos, roupas, sabonetes, muitas novidades. Minha mãe, mesmo 
paupérrima, comprou os sapatos em Mossoró, segundo me disse. 

Esse cheiro que eu reconheci muitas vezes depois de adulta, com

um sentimento que, tenho certeza, Proust descreveu quando falou do gosto da madeleine
nostalgia, esgarçamento, distância, tempo, alegria, existência, futuro bom pressentido, outra 
vida. Tento não esquecer, mas o cheiro me escapa, faço força para lembrar e o encontro às 
vezes inesperadamente. Jamais poderei compartilhar o que significa isso na minha história, 
a não ser como 'marca', 'sinete' inscrito na percepção dos cheiros.

Já o vestido fora feito por ela que, muito pobre, tinha um orgulho imenso do bordado de 

sianinha sobre o TV8 (sim, era o nome do tecido) marinho, reforçado com goma ao passar
para ficar armado, sinônimo de elegância. O vestido pinicava, o bolero esquentava, mas a 
mãe não abria mão da singela elegância dos filhos, fazia sacrifícios e ela mesma cuidava
para que os três parecessem "gente".

Mas fora da foto, a gente se vestia exatamente como a menina encostada na parede. Ela 

parece diferente de nós, mas não era, e ficou na foto na marra...