segunda-feira, 18 de novembro de 2013

O estranho caso de Angélica

Para Egídio

Já devo ter assistido a mais algum outro filme de Manoel de Oliveira, além de O gebo e a sombra (2012) e de O estranho caso de Angélica (2010). Mas é sobre esse último que falo aqui, porque me parece assombroso que esse homem tenha feito tal trabalho aos 102 anos de idade, tendo nascido em 11 de dezembro de 1908, ou seja, vai completar 105 anos no próximo mês em plena atividade. Não é apenas a longevidade lúcida e atuante que faz dele um homem extraordinário, mas o viço de seu trabalho, a percepção de que estamos diante de uma obra de arte, estruturada a partir de um olhar personalíssimo, em que a fotografia tem papel preponderante.

Menos do que sobre a morte de uma jovem, o filme explora a questão do olhar, da fotografia como elemento formal de conhecimento do mundo - além do protagonista ser fotógrafo por profissão (vivido pelo neto do cineasta, Ricardo Trepa), ele é também um homem obsedado por capturar instantes de vida através da lente, e quando ele fotografa o corpo inerte de uma jovem morta, durante a sessão de fotos ela abre os olhos e sorri para ele. A partir daí sua alma esvai-se, ele não tem mais domínio sobre si, nem sobre a realidade que o circunda - o que, afinal, caracteriza um dos estágios agudos da paixão.

Apaixonado pela figura bela e plácida que ele retrata, sua vida foge a seu controle, e apenas fotografar pode trazê-lo ao chão da vida: as fotos que faz dos homens trabalhando a terra resumem alguns temas primordiais aqui: fotografias realistas ao extremo, e belíssimas, assemellham-se a quadros da pintura clássica; a adesão irrestrita aos valores vigorosos de uma certa tradição do trabalho manual, do trabalho com a terra; a escuta dos cantos de trabalho, uma tradição rural que se apaga mais e mais com a velocidade das mudanças contemporâneas, e que Oliveira põe-nos a ouvir, em sintonia com uma paisagem deslumbrante das terras, das colinas, das árvores, dos casarões antigos (a igreja, a casa de chão rangente, martelando os passos dos vivos, onde habita a morta; a pensão, cujos aposentos ecoam ruídos estranhos durante a noite).

E há as conversas entre os hóspedes da pensão, conversas que beiram o non sense a princípio, mas que vão revelando uma ligação com o aspecto surreal que tomou a paixão do fotógrafo: a par dos voos noturnos do protagonista com sua amada, realizados em estado de transe hipnótico, os homens ao redor da mesa e a mulher brasileira, uma engenheira emérita vivida por Ana Maria Magalhães, entretêm uma dessas conversas estranhas, mas que, de algum modo, explica a um Isaac confuso e à beira da exaustão, a possibilidade quase real de haver um sentido para suas viagens noturnas com o, talvez, ectoplasma de sua amada morta. Ele ouve tudo de pé, afastado do grupo de hóspedes, como será sua postura em relação a eles todo o tempo - estranho ao cotidiano da casa, de certo modo estrangeiro ao mundo contemporâneo, de que se afastará mais e mais.

Um filme estranho, belo e difícil para o olhar acostumado à velocidade dos tempos atuais. Mas que nos deixa pregados diante da tela, imersos num mundo onde a beleza caminha de um modo original, e intransigentemente pessoal.

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

Thaise Diaz - poeta

De vez em quando um ex-aluno, ou mesmo alguém que não conheço, mas que leu alguma coisa minha, sobretudo a respeito de Hilda Hilst, escreve pedindo algum tipo de ajuda ou de orientação. Confesso que já havia esquecido o que eu teria feito por essa mestranda, Thaise, mas qual não foi minha surpresa ao receber, há algum tempo, esse belíssimo poema e um agradecimento. O que quer que eu tenha feito por ela, ou dito, sequer tangencia a beleza do gesto dessa moça, ou seu enorme talento para a forma poética.

O nome dela é Thaise Maria Diaz, uma professora que defendeu na Unimontes, em junho de 2012, a Dissertação de Mestrado "Agonia da carne: mística e erotismo em A obscena senhora D, de Hilda Hilst", que comecei a ler, encantada - o que não é comum de acontecer com trabalhos acadêmicos. Ela é não apenas ótima poeta, mas uma pensadora de primeira, e uma escritora rara.

Outro poema, também aqui.

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Não soneto de despedida II

               Para Vera Queiroz

Quando ele partiu
o dia amanhecera a nossa cara
As flores de Enrico Bianco
em total abandono
se abriam
Enquanto
Kazuo Ohno lindamente
para nós dançava

Quando ele partiu
Orides decretou a crueldade
dos signos e do amor

Quando ele partiu
não olhou para trás
Não disse adeus
ou algo mais
engoliu a frase tatuada em meu braço
E comeu sem cerimônia, o poema

segunda-feira, 11 de novembro de 2013

Capitão Phillips (com spoilers)

Eu nem vou dizer da minha frustração ao ver esse Capitão Phillips (Paul Greengrass, 2013), com Tom Hanks fazendo seu bom trabalho habitual, e Barkhad Abdi, o chefe do grupo de piratas inimigo - cuja atuação me pareceu uma das poucas coisas convincentes do filme, aliás o grupo somali me pareceu convincente em sua raiva, mas vou apenas enumerar uma ou duas coisinhas que percebi como absolutamente insatisfatórias:

1. um filme para os sócios do clube do Bolinha. Sim, eu sei que não há piratas somalis mulheres, até porque as mulheres somalis estão tentando escapar do genocídio que há anos grassa na região, e na tripulação de um navio cargueiro imenso tampouco cabem mulheres, parece. Bom, não importa, não há qualquer mulher atuando na tela, salvo uma esposa de Phillips em aparição relâmpago, que serve apenas para sublinhar o protagonista como homem-família;

2. um filme feito para o Tom Hanks posar de mocinho, muito bom moço mesmo, com uma postura humanitária louvável durante todos os acontecimentos envolvendo a invasão de seu navio: quando um dos invasores corta o pé nos cacos de vidro, ele se apieda de sua juventude desperdiçada; na proteção de sua tripulação; no jeito de pacificador que ele apresenta ao longo de todo o processo;

3. um filme surpreendentemente cheio de furos, ao tentar nos convencer, primeiro, de que um mega navio como aquele, com carga valendo milhões, não tem um grupo armado de proteção, não apenas contra piratas, mas contra qualquer outra ameaça; segundo, que quatro homens armados, mas muito frágeis fisicamente, controlem rapidamente um navio com uma tripulação de homens robustos e bem mais numerosa. Parece que esses personagens nunca viram um filme de Rambo, ou desconhecem que a indústria onde ele foi produzido investe rios de dinheiro na ideologia do 'justiceiro solitário'. Como ficaram todos tão de repente acuados e burrinhos, não me pareceu verossímel;

4. a tentativa de Hanks de escapar jogando-se ao mar, e sua posterior captura pelos 'bandidos' (parecem tão frágeis esses homens que chamar de bandidos soa quase como agressão), parece filme de Groucho Marx - é primária, patética e inconcebível que os homens daqueles navios de socorro norte-americanos, com todos os seus super equipamentos e radares e sonares e lunetas não tenham visto claramente e identificado o homem ao mar, nem podido atirar nos piratas, nem resgatá-lo, nem nada;

5. mais inconcebível ainda me pareceu que três navios de grande porte, além de um avião com vários soldados de elite, tenham ficado horas e horas à volta de um bote salva vidas ridiculamente pequeno, com os piratas e o capitão como refém, acuados todos pelas formiguinhas armadas. Não ficou convincente sob nenhuma hipótese o fato, verídico ou não, daqueles três portentos da marinha norte-americana terem tomado tamanha volta de três somalis famintos, mesmo que armados. Segundo a tradição de seu cinema, não teria sobrado nem pó pra contar a história se houvesse mais verossimilhança com sua própria tradição cinematográfica;

6. o resgate final de Hanks foi fácil, toda aquela lenga lenga de pontaria era só pra encher o saco e criar um pseudo suspense, e o filme alonga tal desenlace até o infinito da paciência do espectador. Eu levantei irritadíssima antes do fim, mas vi de pé a cena patética em que a médica do navio de resgate fala com ele, que aparenta estar aparvalhado e emocionado, chorando sem controle, como se tivesse acontecido um milagre, ou ele estivesse transtornado pela morte de seus captores. Muito, muito triste ver o Hanks fazer aquelas caras ridículas. Prefiro mil vezes vê-lo conversando com um coco, mas com convicção total.

6. a trilha é irritante, e existe para aumentar significativamente a tensão geral que o filme deveria criar, e só cria irritação. Em mim, pelo menos.

7. de onde veio aquele bonequinho aplaudindo o filme de pé que eu vi no jornal, e me levou, de certo modo, a ver o filme? Vergonha dos outros. O filme é mico. Micaço, até para os padrões da indústria deles nesse tipo de produção.

quinta-feira, 7 de novembro de 2013

Serra Pelada

Grande, excelente trabalho de Heitor Dhalia, esse Serra Pelada (2013), que parece ter levado vários anos para ficar pronto, e eu vi como um filme épico, trágico, violento, além de brasileiríssimo, nisso que retrata um episódio sem similar em nossa história: esse amontoado de trinta mil homens, em sua fase mais densamente povoada, em busca de ouro, tomados pela doença do ouro, do enriquecimento fácil e, para alguns, do poder a ferro e fogo.

Impressiona a recriação do garimpo, as forças que se criam em torno dele, movidas pelo poder do ouro, pela ambição desmesurada que vai nascendo a cada pepita encontrada. Os amigos se estranham, os aliados se matam para ocupar mais espaço, seja no garimpo, seja no coração das poucas mulheres belas, em meio a tantas que fervilham à caça de recompensas financeiras por sexo, num leilão em que ganha quem tem mais dinheiro e sabe matar mais rápido.

Além desse décor quase fantasmagórico e surreal, os atores principais, e os secundários também, estão ótimos, com destaque para Wagner Moura, (já vi aquela expressão quando diz a frase "e precisava chegar a isso?"), mas seu cinismo é perfeito, além da dupla Julio Andrade e Juliano Cazarré, que praticamente carregam o filme, muito bons ambos. Matheus Nachtergaele fica menos tempo em cena, e convence um pouco menos como o terror do pedaço; Sophie Charlotte dá conta da mulher linda e sexy disputada a bala pelos amantes, que ganha alforria depois de muito sofrer.

A trilha sonora acompanha a barranqueira geral, e faz todo sentido naquele mundo de prostíbulos, de gosto pelo brega e pelo sertanejo. Não tendo eu a menor paciência para esse universo musical (só faço turismo de barco pelo Nordeste com protetor de ouvido), aqui essa referência musicial torna-se muito atraente e sensual, com aquele monte de gente suada e colada feito abelha em colmeia. Vendo pelo olhar da câmera, dá até pra bater pezinho no ritmo. Por tudo, um filmaço, que merece muito ser visto.