quinta-feira, 29 de novembro de 2012

Liberdade - uma forma de narrar


Quando as sombras o engolfam

E se ela não voltar a noite inteira, o que ele vai fazer a noite inteira, 
e se voltar
à meia-noite e for direto para a cama
o que vai fazer enquanto ela dorme. Amanhã lhe dirá que o 
dinheiro dela
está a salvo, que de agora em diante está livre, e que ele
não serve mais para nada. Por volta das nove há um corte de energia, 
e como
um alpinista solitário vendo
a noite cair num lugar desconhecido, ele tateia no escuro, encontra 
uma
lanterna, as sombras giram ao redor. Cansado de sombras, ele
desiste e vai até a casa de Bettine, que também está no escuro,
apenas uma pálida luz
de emergência
acesa ao lado da cama. E como a luz não volta e a lâmpada de
emergência se
apaga, ele se vê contando que um passarinho não convidado, todo
molhado, foi fazer seu ninho
lá na sua casa, e que ainda hoje ele próprio a tinha feito -
por quê? - bater as asas. Lendo nas entrelinhas, Bettine captou
seu segredo e o achou, por um lado, de um ridículo cruel, por
outro, triste e
vergonhoso. Tomou a mão dele
na sua e ficaram ouvindo o mar ao longe, revolvendo-se nas 
profundezas
da escuridão, e então as mãos se estenderam e se tocaram, um
abraço
tímido, sem se despirem, um pouco pela solidão da carne, outro
tanto por afeto e 
compaixão. Bettine
soube por instinto que Albert estava imaginando uma outra ao
tocá-la, mas perdoou: não fosse pela outra,
nunca teria acontecido.    

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Amós Oz. O mesmo mar. Tradução do hebraico de Milton Lando. São Paulo: Cia das Letras, 2001; p. 102-3.
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Sim, é poesia. Porque ele assim o decidiu, e também por exceder, aqui,  na liberdade de uma forma que nunca se decide - e por isso vaga, vagueia como os personagens, buscando algum canto ou sentido para o que quer que se chame: aventura de viver.

Sugestão de leitura de Aguinaldo Médici, em seu blog livros que eu li: http://guinamedici.blogspot.com.br/

Nostalgia rules: Because

quarta-feira, 14 de novembro de 2012

Interregno

Alguns filmes vistos, livro empacado (ainda) do Valter Hugo, outro em andamento do Amós Oz, lindo em seus inícios (O mesmo mar), a coletânea de poesia da Ledusha, agora Leda Beatriz Abreu Spinardi, de quem resolvi reler o Finesse e fissura (1984), que só escapou da doação aos alunos de Fortaleza porque faz parte da minha história pessoal e intelectual (como quase todos da coleção Cantatas Literárias), para ver onde e quando as coisas andaram nessa poeta, e em sua obra, até porque o Finesse está no Notícias da ilha mas sem nenhuma observação formal - pelo que estou percebendo (recém comecei a leitura) os poemas já publicados estão fora dos colchetes, no índice. A conferir.

quarta-feira, 7 de novembro de 2012

Gonzaga, Gonzaguinha - nossas histórias


E Luiz Gonzaga - de pai para filho foi uma viagem intensa ao coração do país, à cultura musicial onde vivi na infância - meu pai amava o Gonzaga e todas as canções dele fazem parte de meu imaginário afetivo. Além disso, tem o próprio sertão, a cidade de Exu, de onde vem e para onde volta o cantor em momentos distintos da carreira e da vida, e o filme caminha por aqueles mundos secos e ermos - também me lembro desse universo, estive ali até os sete anos, quando vim para o Rio, e tudo aquilo é parte de um momento fundador para mim.

Além disso, a escolha pelo foco da relação entre pai e filho não poderia ser mais acertada: Gonzaguinha é tambem parte de uma história pessoal e política, suas canções carregam sempre a emoção de falar de uma época dura, são gritos de uma geração de que fiz parte, com ele gritei e dancei todos os sons, todos os protestos - e o filme dá a dimensão da tragédia que foi perdê-lo num acidente de carro tão jovem, com tanto a fazer ainda em sua arte. Quando ele solta a voz nesses versos não há como não se emocionar intensamente.

O filme acerta em tudo, até mesmo ao carregar no drama dessa reaproximação entre pai e filho, além de ter conseguido atores absolutamente convincentes e muitíssimo parecidos com seus personagens: Gonzaga adulto, vivido pelo desconhecido (para mim) Nivaldo Expedido não apenas parece muito com o cantor nordestino, como tem um ar doce e maroto, que lhe faz parecer quase um sósia do original; o mesmo se pode dizer do ator que faz Gonzaguinha (Julio Andrade), conseguiu uma caracterização absurdamente semelhante ao cantor, na seriedade da expressão, na tristeza que o acompanha desde a infância, e que se pode compreender então de onde vem - tudo perfeito. Um filme de resgate não apenas do vínculo entre pai e filho, o que ele faz; mas também de aproximação com um núcleo de nossa cultura que está lá, acho que em todos nós, desde sempre.

E mais um dos motivos de orgulho: ninguém sai enquanto os créditos (longos) aparecem na tela porque é ao som de uma canção de Gonzaguinha (O que é, o que é, não tenho certeza), e eu fico ali olhando como crescemos em termos de indústria de cinema - pra mim, que sou leiga, olhar e ver aquele mundo de gente que tornou possível esse trabalho, e as subdivisões em Unidades várias, como nos créditos de filmes estrangeiros - Unit 1 etc - me deu a dimensão de uma indústria nossa, e super, mega profissional - muito orgulho de estar vendo isso acontecer.

E pra terminar, enquanto eu olhava os créditos e as lágriamas desciam, porque Gonzaguinha cantava e me ressituava no (meu) tempo e no modo como eu o vivera, uma senhora a meu lado também não arredava o pé - ou melhor, os pés, dançando alegre e animadamente. Eu devia ter ido com ela àquele show - teria aprendido a expressar mais as emoções pela dança, quem sabe.

domingo, 4 de novembro de 2012

Sessão de terapia - um grande seriado

Sessão de terapia é a melhor série que estou vendo no momento. Na verdade, vi ontem pela primeira vez, na maratona de sábado, com os cinco capítulos da semana - é um por dia, cada dia com um personagem diferente', no GNT, às 22h, e o trabalho deles é simplesmente de cair o queixo - desde o terapeuta, vivido por Zécarlos Machado, cuja imagem não me sai da cabeça, aquele olhar que atravessa a alma - quem já fez terapia teme esse olhar, por muitas razões -, a todos os intérpretes dos pacientes, com destaque para uma Maria Fernanda Cândido em sua melhor versão para o papel - desglamurizada, humanizada e muito boa atriz, bem como todos os outros, brilhantes. Vejam aqui mais sobre essa ótima novidade de nossos melhores profissionais, fazendo um trabalho de altíssimo nível, que máximo.

Em tempo: hoje, quarta, 7/11, vi uma parte da sessão da personagem ginasta - muito, muito boa: as intensidades das revelações a respeito da capa protetora que ela armou para si mesma, que desmorona ao ser confrontada com o álbum de fotos de modelos nuas feitas por seu pai. Algumas das qualidades fortes da série me parecem, primeiro, o texto; segundo, o modo como os atores expressam zilhões de emoções pelo olhar, só na intensidade do olhar - muito incrível isso.
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Aproveitando o universo das intensas sensações, vi hoje de novo no cinema do Museu As vantagens de ser invisível - mesma emoção, mesma ternura, mesma beleza de filme, bom de ver sempre, rever, compartilhar aquele mundo e se emocionar de novo - que belíssima corrente de energia, de vida e de amor há ali. Fonte de onde se volta sempre revigorado para olhar a vida - à frente, à frente.