quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Relâmpagos II

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Eu tenho a impressão de já ter visto essa pintura no MAM, e tenho igualmente a impressão de que passei por ela, olhei-a meio rapida e displicentemente, como faço quando não entendo bem o que sentir ou como entender um objeto de arte, cujas regras de fruição não estejam de algum modo explícitas. Mas aí o Ferreira Gullar escreve isso para mim, me diz o que foi que eu vi e não entendi, me explica como é que nasce uma cor no coração de uma tela, e eu me lembro então do que não vira, revejo agora, agradecendo pasma pela beleza revelada:

Arcângelo Ianelli: no limite do ver

Não é mais mostrar as formas do mundo
ou do sonho,
da natureza ou da imaginação.
Não é mais figurar, descrever, representar, narrar, aludir.
Não há alusão.
Nem tampouco ênfase, orquestração
das dissonâncias,
dos conflitos de formas ou cores.
Não há conflitos.
Pintar, para Arcângelo Ianelli agora é
suscitar o surgimento da cor.
Fazer silêncio e deixar que ela (a cor) imerja
nele - do cerne dele - densa, luminosa.
Vinda do fundo da sombra, a cor
trêmula tênue
como frágil aparição
que fosse se apagar em seguida
Mas não: essa fragilidade é parte essencial 
da aparição
como a chama que bruxuleia - por ser chama -
mas se mantém viva e ardente.
Pintar para Ianelli agora é mostrar a cor como pura duração.

E os grandes quadros
parecem feitos
para que neles
o pintor, você e eu,
nos apaguemos
fundidos em azul
em violeta
em rosa
em cinza
em luz   (p. 138)
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E há ainda esse pequeno e belo poema, falando do quadro "Natureza morta com copos de leite e violino", do Carlos Bracher (de quem nunca ouvira falar antes):

Pintura

Eu sei que se tocasse
com a mão aquele canto do quadro
onde um amarelo arde
me queimaria nele
ou teria manchado para sempre de delírio
a ponta dos dedos. (p. 143)

Eu não sabia a qual amarelo ele se referia, porque na foto do livro há pelo menos dois espaços em amarelo, mas ao encontrar o quadro na internet pude perceber com clareza do que ele fala: esse clarão à direita e no alto também queimaria meus dedos, depois que o poema me mostrou o incêndio da cor, e sua beleza. 


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domingo, 15 de agosto de 2010

Relâmpagos

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Parece que as coisas começam a entrar nos eixos.  A mãe permanece em estado equilibrado - tudo em equilíbrio: saúde, humor, perspectivas, presente e futuro perceptível. Assim, parei de fazer palavras cruzadas à noite e, voltando a ler, já li quase todo Relâmpagos, do Ferreira Gullar - como tem coisa boa nesse livro. A primeira delas, que eu nunca antes havia notado, é que posso colocá-lo na cama sem qualquer problema, parece que os livros de arte da Cosac têm o dom de parecer não apenos belos, belíssimos, mas limpos, porque brilham e têm um toque de folha suave, são confiáveis, pois, e posso acolhê-los como a um pet que se ama, que coisa estranha, só agora me dei conta disso.

Bom, os textos são magníficos alguns, ótimos a maioria, e absolutamente necessários todos. Fiquei muito grata ao Gullar por ter me devolvido o prazer de ler, a sensação renovada de estar comungando com alguma coisa intrinsecamente bela, maior do que eu, onde encontro sentimentos que apaziguam, me aproximam do melhor em mim. E ele é poeta, portanto lê a arte da pintura com esse viés de poeta-crítico, num texto que tem muito de leveza, no melhor sentido, de beleza, conhecimento e síntese. Ia dizer que talvez o estilo seja meio bloguístico, pela contenção, mas não é verdade, é ensaio crítico da melhor qualidade, com a simplicidade dos grandes escritos. 

Sobre "Las meninas", uma pintura que já teve a análise definitiva e complexíssima de Foucault (além de outra estupenda de uma amiga minha, Maria Antonieta Jordão de Oliveira Borba, que pode lida aqui ), Gullar consegue ainda acrescentar coisa nova para mim. Sim, porque todos sabemos que se trata de uma pintura en abîme, reflexos de espelhos vários mimetizando a atividade-que-se-realiza-no-instante-de-fazer-se, mas ele abre seu comentário desse modo arrebatador:

O quadro está de costas e está de frente: de costas para você (que o vê por trás ao lado esquerdo) e de frente para Velázquez que o pinta. Mas a verdade é que está de frente para você e já pintado. Aliás, desde 1656. Não obstante, Velázquez (você o vê) o está pintando. São duas faces do tempo numa mesma superfície de tela. (p. 30).

Não é promissor para o que virá a seguir? E o que vem é muito interessante, permite rever o quadro para além das leituras todas, permite re-ver a intrínseca beleza da arte de Velázquez.

Sobre Rembrandt e seu "Aristóteles com um busto de Homero" a homenagem comentário em forma de belíssimo poema, cujos versos iniciais emocionam,


Como um jorro de seda (em pregas,
em dobras) a luz
se instala na tela, naquele
espaço que é treva
como todo espaço
onde a luz (o pincel
de Rembrandt) ainda não
chegou (p. 38)

mas o texto em prosa-homenagem também tem poder de encantar:

Não é uma sensação apenas visual - é também táctil, de espessa (e fulgurante) materialidade: no ombro esquerdo da figura, que emerge da sombra, um dos pontos onde se dá a passagem, o conflito de luz e treva, a matéria pictórica é rugosa, ferida, quase desordem... (p. 39)

E há, por fim, outro poema que comenta a "Madonna of the carnation", de Da Vinci, quando ele recorre à imagem de uma mancha azul. Nesse momento, eu percebi que há muita ignorância em meu olhar, séculos de ignorância, porque tentei muito mas não vi o azul - no máximo, um lilás clarinho, mas quem sou eu para não ver azul onde o mestre o vê desse modo tão pungente?

Mancha

Em que parte de mim ficou
aquela mancha azul?
    ou melhor, esta
    mancha
de um azul que nenhum céu teria
   ou teve ou mar?
   um azul
que a mão de Leonardo achou
ao acaso e inevitavelmente
   e não só:
um azul
que há séculos
   numa tarde talvez
feito um lampejo surgiu no mundo
   essa cor
essa mancha
   que a mim chegou
de detrás de dezenas de milhares de manhãs
e noites estreladas
   como um puído
   aceno humano.
Mancha azul
que carrego comigo como carrego meus cabelos
ou uma lesão
oculta onde ninguém sabe.    (p. 47)

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Ferreira Gullar. Relâmpagos - dizer o ver. São Paulo: Cosac Naify, 2003; 2007; 2010 (?)

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domingo, 8 de agosto de 2010

Inception

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São evidentes os ecos de Matrix nesse A origem, mas nem por isso o filme deixa de ser um thriller que envolve o espectador quase todo o tempo (duas horas e meia). Os dois filmes lidam com a questão dos mundos reais e virtuais e/ou imaginários, mas nesse último trata-se de criar as realidades virtuais através do sonho induzido. Há inteligência, sim, na criação desses mundos quase alucinógenos, mas há também grande dose de confusão e perguntas sem respostas. Em geral, aos mais jovens cabe discutir ad infinitum o sentido de tal ou qual cena, os detalhes que explicariam tal ou qual interpretação, mas acho que as coisas são feitas - como em Lost - para confundir mesmo, e deixar trechos ininteligíveis, o que poderia contribuir para um certo "boca a boca", ou seja, manter o filme em cena enquanto se discutem seus enigmas, suas charadas.

Eu mesma não faço questão de entender tudo, não há necessidade porque tudo ali é feito para impactar, para deixar o espectador sem fôlego - ação, cenários, cenas vertiginosas, vemos e interagimos com a velocidade quase ininterrupta dos acontecimentos, sem muito tempo para compreender exatamente tudo que acontece. Trata-se de ótimo entretenimento, com atuações convincentes de Leonardo di Caprio, que finalmente tornou-se (a meus olhos) um homem adulto e ótimo ator; da bela  e talentosa Marion Cotillard, que impacta sempre que aparece pela carga dramática de seu personagem, e pela beleza; e Ellen Page, que ainda não me convenceu de que nasceu para ser uma atriz com recursos maiores do que os já demonstrados em Juno

De todo modo, o filme se vê com prazer a maior parte do tempo, e mesmo o final meio pífio diante de tantos acontecimentos extraordinários vale o tempo longo que a ele dedicamos.

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sábado, 7 de agosto de 2010

exposição de poesia

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Espero poder ir abraçá-lo, embora eu nunca tenha visto uma exposição de poesia visual, e sabendo que ele não é herdeiro das façanhas concretistas, estou curiosa.

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Fui lá meio rapidamente, mas vou voltar para rever e ler com calma os versos, as palavras, os poemas, a exposição, enfim (percebi que a estação Ipanema do metrô deixa perto do Oi Futuro).

Trata-se de uma larga caixa de vidro onde se lêem versos de vários tamanhos, cores, e de onde se ouve todo o tempo ruídos de vidro quebrando. Do que pude ver (e ler), achei muito interessante, mas não deu para ter uma noção do conjunto porque havia muita gente, todos querendo ler, ver, se aproximar, entender.

Enfim, dei um grande abraço nele, muito afeto e ternura por essa pessoa e artista maravilhoso, e qualquer hora estarei lá de novo.


















terça-feira, 3 de agosto de 2010

Vanessa e Julieta

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Cartas para Julieta encontrou hoje sua espectadora ideal - totalmente submissa à sedução da linda e romântica história, dos cenários de uma Itália  plena de horizontes, vinhedos e verdes belíssimos; um Gael García Bernal meio histriônico, mas convincente para mim e sempre bom ator, e as duas belas, muito belas louras: a atriz que fez tão bem Chloé, Amanda Seyfried, me convenceu completamente em seu papel de mocinha ultra romântica, que encarna um Cupido quase o filme todo, para quem? quem? Ela, claro, a mais fofa das idosas do cinema, a mais talentosa, a mais classuda, a mais bela, a mais: Vanessa Redgrave, (de quem já sinto uma falta absurda porque sei que ela se vai e não deveria. Em off ainda: todo o tempo fiquei tentando ler no rosto dela onde reside a força para suportar a morte de uma filha já adulta, que ocorreu no mesmo ano em que fez o filme, 2009), que interpreta uma senhora em busca de seu amor de juventude, pretexto e mote para viagens pelos compos da Toscana, linda e que amei conhecer.

Vanessa/Claire encontra afinal o amado e o filme (eu leio desse modo) a homenageia trazendo um senhor Lorenzo cheio de charme e força viril, que vem a ser o homem real que ela amou quando jovem, Franco Nero, com quem tem um filho e reatou o casamento, além de ter sido indicado por ela para o papel (em off again: eu tinha a impressão de conhecer aquele rosto, e de fato já o vi em vários filmes de faroeste, era e continua sendo um homem lindíssimo). Bom demais ver a brincadeira dar certo e todos tão afinados e demonstrando real prazer de estar juntos - assim vi e nem me importei com as bobices e clichês desse mundo ultra romântico, eles não me agrediram em nenhum momento (talvez a queda do balcão pudesse ter sido evitada, mas enfim, é o clássico romântico, tá?). 

O filme se vê com alegria, sobretudo por ela, que ilumina a tela toda, e eu gostei muito de estar ali - ele me chegou no dia certo, na hora certa e só me fez bem, o que já está de ótimo tamanho.














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