segunda-feira, 29 de junho de 2009

Fora sarney


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Renato Pompeu de Toledo escreve um artigo excelente na última página da mais recente Veja - "Politicolíngua, série Sarney", e replico aqui alguns trechos:

[...]

Lixeiras e despensas – "Julguei que tivesse sido eleito para presidir politicamente a Casa, e não para cuidar de sua despensa ou para limpar suas lixeiras", disse Sarney. O titular do baronato do Maranhão e Amapá olha-se no espelho do salão e o que vê é o estadista. Que desagradável o barulho que vem da cozinha. Que insuportável o cheiro das estrebarias. O que lá se produz é não apenas necessário, como obedece aos propósitos do grão senhor. Mas por que fazê-lo deixando escapar o som e o cheiro? O Sarney que José Sarney imagina no espelho é o literato sensível, o detentor da sabedoria, o benfeitor das gentes e o salvador da pátria. Acreditaria José Sarney em José Sarney?

Mordomo – A denúncia de que outro frequentador da folha do Senado, Amaury de Jesus Machado, por alcunha o "Secreta", na verdade prestaria serviço de mordomo à governadora Roseana, filha de Sarney, provocou a indignação do patriarca. "O Senado nunca pagou nenhum mordomo", disse. "A senadora Roseana não tem mordomo em casa." A indignação, ainda uma vez, era contra a palavra. Mordomo não, mordomo nunca, mas, a começar da própria Roseana, ninguém da família negou que o "Secreta" (de "secretário", embora pudesse ser também de "secretamente lotado em lugar indevido") seria um faz-tudo a serviço da hoje governadora do Maranhão. "Ele é meu afilhado. E vai lá em casa quando preciso, umas duas ou três vezes por semana."


Pessoa incomum – A frase que vai ficar como emblema do rodamoinho que envolve o presidente do Senado foi produzida pelo presidente Lula: "Sarney não pode ser tratado como se fosse uma pessoa comum". Não é que ele tem razão? Não é em qualquer um que a fantasia do estadista convive com a resistente realidade do oligarca nordestino, cercado de parentes e agregados, quando não são afilhados, ou afilhados da filha, os limites entre os bens públicos e privados embaralhados e manipulados segundo os interesses do clã. Com força incomum, Sarney puxa o Brasil para trás.


[...]

http://veja.abril.com.br/010709/pompeu.shtml



Fora sarney

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Para quem se interessar, o blog FORA SARNEY está coletando assinaturas de todos que não aguentam mais tanta roubalheira e queiram expressar isso (acho que ficará mais na expressão, pois tirar mesmo o homem de lá vai ser difícil).
http://www.forasarney.com/


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sábado, 27 de junho de 2009

Eucana, blog e grande poesia

Descobri o site do Eucanaã há pouco. Gosto da poesia dele quase toda, há uma técnica perceptível, uma vontade estética que tem parentesco, às vezes, com Cabral, mas ele fala uma linguagem poética própria.
Hoje saiu uma entrevista dele no
Idéias & Livros do JB em que diz que escreve poesia, em grande medida, por causa de Manuel Bandeira.

Os poemas vieram do blog dele, url ao lado, vale a visita.
E ele também coedita a revista on line Errática, muito boa.

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O equilibrista



Traz consigo resguardada
certa idéia que lhe soa
clara, exata.

No entanto, hesita: que palavra
a mais bem medida e cortada
para dizê-la?

Enquanto não lhe vem o verso, a frase, a fala,
segue lacrada a caixa
no alto da cabeça.

In
Rua do mundo. São Paulo: Cia das Letras, 2004; Vila Nova de Famalicão: Quasi Edições, 2007.

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Procurar palavra...

Procurar palavra
em palheiro.

Sem circunlóquios,
não faltando à clareza.

Obstáculos
não façam extensa

e fatigante a marcha
contra o dicionário.

O gesto necessário.
E só.

Eucanaã Ferraz. Desassombro. Vila Nova de Famalicão: Quasi Edições, 2001; Rio de Janeiro: Sette Letras, 2002.


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Móbile

Passamanarias de arame, papel
e luz, que recobri com a pele,

onde instalei meus ossos desatados percutindo
no vento, está lá

o arabesco,
sem arrimo, pingando um tempo estacionário entre



palmeiras, contra o céu da Voluntários, o Cristo
ao fundo, o cinema. Seu movimento

hesita, esgrima, cigarra, urina, é-não-é,
flores da ferrugem, palavras fáceis e cento

e um dentes ameaçando carros e coisas
elétricas, edifícios em fila, famílias. Fiz



o que tinha de ser. Ficou lá, inútil, ardendo
sobre o trânsito,

o móbile
gigante que seus olhos não viram,

que seus olhos não quiseram,
que seus olhos não e não.

Ficou lá, inútil, adiado
sobre o domingo,

o monstro
que seus cuidados não souberam,

que seu medo não quis,
que nem ao menos.

Está lá, inútil, ardil desativado,
sobre nada,

lixo,
lixo,

mas, esteja certo disto, tinha o tamanho
certo de nos vestirmos com ele, para,

dentro dele, suspensos,
descansarmos na palma um do outro, acredite,

era lindo, era fácil,
era puro.
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Eucanãa Ferraz. Cinemateca. São Paulo: Cia das Letras, 2008; Lisboa: Quasi Edições, 2000.


sexta-feira, 26 de junho de 2009

Michael


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Não tinha relação especial com a música do Michael Jackson, mas a dança achava muito bonita.
A figura dele era meio assustadora, claro, pelo tanto que a loucura pode ser desenhada no rosto, no corpo, na vida.
Morreu muito jovem. Mesmo para alguém que começou tão cedo a trabalhar, a cantar e a sofrer.
(até hoje não tenho certeza sobre o que pensar de sua conduta com relação às crianças - amor puro ou doença?).

Enfim, rest in peace.


quarta-feira, 24 de junho de 2009

Tinha que ser você

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Tinha de ser você a gente assiste com um sorriso nos lábios, de prazer - é agradável, os diálogos são leves e interessantes, os atores têm simpatia e química, na verdade, os dois atores são quase tudo que o filme tem - Emma Thompson incrivelmente charmosa, e o Dustin Hoffman com seu eterno biquinho e jeito meio zombeteiro, mas ambos funcionam muito bem juntos, a gente percebe que são amigos, que estão curtindo fazer aquele trabalho.

E, claro, trata-se de uma comédia romântica que fala do amor entre pessoas com mais de 50; fala também de superação, de recomeços, de tocar outro ser com sua presença, de dar força para o outro crescer, ficar melhor. Vale ser visto e faz bem à saúde mental.


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domingo, 21 de junho de 2009

Geraldo e os tempos

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Assisto no Canal Brasil a um show do Geraldo Azevedo no Circo Voador, boba de ver o tanto de gente jovem aplaudindo e cantando os sucessos dele.
Sou transportada a um tempo muito, muito anterior, quando suas músicas compunham uma espécie de rito de passagem, circulavam em grupos restritos e, no meu grupo de então, ele era ouvido como se fosse parte de uma cultura especial, que compartilhávamos. Nos sentíamos especiais porque curtíamos sua música - e éramos, como todos os jovens o são a seu tempo. Tempo, tempos.


Hoje vejo o Geraldão cantando bonito, mesmo com a voz mais fraquinha, um rosto marcado, o timbre muito particular, o sotaque nordestino, e por instantes brechas do tempo e daquele então se presentificam. Não há exatamente nostalgia, mas uma sensação forte de estar viva, de ser parte daquela gente que o admira, de fazer - ou já ter feito - parte da tchurma.

Bicho de Sete Cabeças

Geraldo Azevedo
Composição: Geraldo Azevedo - Zé Ramalho - Renato Rocha


Não dá pé não tem pé nem cabeça
Não tem ninguém que mereça
Não tem coração que esqueça
Não tem jeito mesmo
Não tem dó no peito
Não tem nem talvez
Ter feito o que você me fez
Desapareça cresça e desapareça

Não tem dó no peito
Não tem jeito
Não tem coração que esqueça
Não tem ninguém que mereça
Não tem pé não tem cabeça
Não dá pé não é direito
Não foi nada eu não fiz nada disso
E você fez um bicho de 7 cabeças
Bicho de 7 cabeças

Não dá pé não tem pé nem cabeça
Não tem coração que esqueça
Não tem ninguém que mereça
Não tem jeito mesmo
Não tem dó no peito
Não tem nem talvez
Ter feito o que você me fez
Desapareça
Bicho de sete cabeças, bicho de sete cabeças
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Dia Branco

Geraldo Azevedo
Composição: Geraldo Azevedo/ Renato Rocha


Se você vier
Pro que der e vier
Comigo...

Eu lhe prometo o sol
Se hoje o sol sair
Ou a chuva...

Se a chuva cair
Se você vier
Até onde a gente chegar
Numa praça
Na beira do mar
Num pedaço de qualquer lugar...

Nesse dia branco
Se branco ele for
Esse tanto
Esse canto de amor
Oh! oh! oh...

Se você quiser e vier
Pro que der e vier
Comigo

Se você vier
Pro que der e vier
Comigo...

Eu lhe prometo o sol
Se hoje o sol sair
Ou a chuva...
Se a chuva cair

Se você vier
Até onde a gente chegar
Numa praça
Na beira do mar
Num pedaço de qualquer lugar...

E nesse dia branco
Se branco ele for
Esse canto
Esse tão grande amor

Grande amor...
Se você quiser e vier
Pro que der e vier
Comigo

Comigo, comigo.

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Caravana
Composição: Geraldo Azevedo e Alceu Valença
Para osvjor, que lembrou:
Corra não pare, não pense demais
Repare essas velas no cais
Que a vida é cigana
É caravana
É pedra de gelo ao sol
Degelou teus olhos tão sós
Num mar de água clara

Leitor de Onetti

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Onetti continuará para sempre en mi vida, e antes de começar a ler os 47 contos (completos) publicados pela Cia das Letras, com tradução da poeta Josely Vianna Baptista, paro fascinada com a precisão e o encantamento do prefácio escrito por Antonio Muñoz Molina, sob o título “Sonhos realizados – um convite aos contos de Juan Carlos Onetti”, que não apenas situa, esclarece, sugere chaves de leitura para os contos, mas se mostra um leitor apaixonado pela obra onettiana. Gosto de ler crítica em que o autor, além de mostrar algum domínio do assunto de que trata, no caso a obra, também se coloca pessoalmente ali, empenha-se numa história de sua própria leitura, e é isso que faz com maestria o Antonio Muñoz.

Dentre todas as coisas interessantes que diz difícil será recortar algum trecho:


Há escritores que admiramos como se admira um edifício ou uma estátua, com reverência, mas sem intimidade: são os escritores que parecem dirigir-se a nós em público, como se fizéssemos parte da multidão que os escuta de um modo não muito diferente de como se pode escutar um astro de ópera. Com Onetti ocorre o contrário: não se trata, apenas, do fato de que, ao lê-lo, nossa tendência seja pensar que essas palavras foram escritas apenas para nós, mas de que assistimos, com despudor, milagrosamente, a uma narrativa que existiria do mesmo modo se ninguém a conhecesse nem a escutasse. Intuições semelhantes podem ser encontradas na pintura ou na música: há canções, e sinfonias, e quadros, que se exibem enfaticamente diante do espectador, que o adulam, que desejam descaradamente seduzi-lo, maravilhá-lo ou constrangê-lo. Os retratos de Van Dyck nos olham de cima, do alto de sua hierarquia absolutista, de seu desprezo: quando é Velázquez, um rei que é dono do mundo aparece tão sozinho e vulnerável ou tão digno quanto um mendigo ou um bufão. Velázquez é grande porque respeita e sugere o segredo humano de seus personagens: eles nos olham e parece que se olham num espelho, do jeito que alguém se olha quando sabe que está sozinho. Na música de Fauré, nas “Variações Goldberg”, nos solos de piano de Bill Evans, na voz de, Bessie Smith ou de Dinah Washington parece que estamos surpreendendo um milagre que não precisava de nós nem de nenhuma testemunha para existir. Essas formas supremas da arte criam ao seu redor uma espécie de espaço íntimo, feito uma redoma de vidro na qual é preciso encerrar-se a sós para compreendê-las: delimitam o espaço e o tempo em torno de si mesmas.
Com Onetti dá-se o mesmo. A atenção normal, sempre um pouco distraída, que dedicamos aos livros, mesmo a alguns dos que mais gostamos, não nos serve perante os dele. Ao ler Onetti é preciso que se tensionem as destrezas usuais da leitura a um grau máximo, como se ouve uma música na qual não há uma única nota que não importe, ou como se vive um encontro memorável do qual se quer aproveitar sem distração cada segundo: suas páginas nunca se esgotam, e cada frase volta a surgir com tal delicadeza e poder, com uma intensidade tão arrebatadora, ou tão insuportável, que temos sempre a impressão de que a lemos pela primeira vez.
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Antonio Muñoz Molina. “Sonhos realizados: um convite aos contos de J. C. Onetti”. In 47 contos de J. C. Onetti. Trad. Josely Vianna Baptista. São Paulo: Cia das Letras, 2006.

terça-feira, 16 de junho de 2009

Garapa


Não se pode dizer que os personagens do filme Garapa não estão estacados naquela situação de miséria absoluta, e mesmo com o programa fome zero, que é só o que eles têm, aqueles personagens não têm saída.
E também não se pode dizer que eles são personagens, eles são pessoas que vivem na mais absurda miséria, bem ali no Ceará, mas também no Maranhão, no Pará, no Mato Grosso, em qualquer interiorão desse país. Também não se pode dizer que são cidadãos aqueles seres, porque lhes falta tudo, menos filhos, fome e muriçocas (uma das crianças está devastada pelas picadas dos mosquitos, mas isso parece ser o de menos).


Enfim, como é que se pode falar de Garapa? Por onde começar? O que dizer? Talvez que o filme seja o que de mais próximo Graciliano poderia ter desejado para seu Vidas secas. Talvez. Mas a situação dessas três famílias é pior, eu acho. Pelo menos havia alguma dignidade em Fabiano, em sinhá Moça... até Baleia era / é um cão com uma certa graça.


Aqui é tudo muito pior, até porque já se passaram 71 anos desde a triste retirada, e esses miseráveis do filme continuam na mesma. E não têm saída. Eles não têm saída. O fome zero ajuda a mantê-los vivos por mais algum tempo, mas não lhes dá emprego, não lhes dá escola, não lhes devolve a dignidade. Vivem um pouco como bichos, as crianças sobretudo, infestadas de verminoses, de moscas e de mosquitos.


Os homens parece que estão numa situação pior - as mulheres pelo menos agem, fazem garapa pros filhos, varrem o chão com vassoura de palha, lavam roupa, cuidam do que podem. Os homens não têm horizonte, já que não têm como prover nada - sem trabalho, ficam a esmo, o olhar mirando o nada, quando não são tomados pela bebida, ou pela loucura.


Não há saída pra eles, não tem fome zero que dê jeito naquela situação. Seria necessário criar alternativas de trabalho praqueles homens, criar escolas praquelas crianças, tem de ser possível reverter isso, tem que haver um país melhor para eles - e para nós, porque somos nós aqueles ali, somos responsáveis por aquilo ali, somos irmãos em tudo.
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Em tempo: acho que o Padilha fez um filme que não podia ser mais pungente, porque simplesmente deixou falar a situação daquelas três famílias. A violência fica restrita à coisa mesma, à existência dela, que acompanhamos meio impotentes, mas ainda atônitos, aparvalhados...

domingo, 14 de junho de 2009

No coração do país


Terminei de ler há algum tempo No coração do país, o segundo livro de John Maxwell Coetzee, publicado em 1977, e achei um romance espantoso, forte, denso, embora alguns aspectos de sua estrutura sugiram que ali está a base não apenas do futuro Desonra, mas o laboratório dessa personagem feminina que está no centro de ambos os romances.

De início, o livro captura o leitor pelo impacto da cena em que a narradora mata o pai e a madrasta, impiedosamente, já nas primeiras páginas, num ato de extrema violência e barbárie. Queremos saber então o que houve de tão terrível para que ela chegasse àquele paroxismo de horror, para logo mais à frente descobrir que tudo fora apenas imaginado. Interessante.

O que não quer dizer que ela não matará o pai, ela o fará, mas então já estamos imersos nos domínios dessa mente completamente devastada pela solidão, pelo abandono, pelo desalento. A mulher que narra os acontecimentos apodera-se de nossa sensibilidade de modo avassalador. Ela não apenas age o tempo todo, como pensa o tempo todo, pensa sozinha, fala sozinha, ela praticamente desvaira sozinha. E filosofa.

[Que fazem a dor, o ciúme, a solidão na noite africana? Uma mulher à janela, olhando para a escuridão, significa alguma coisa? Coloco os dez dedos na vidraça fria. A ferida em meu peito se abre. Sou um emblema, sou um emblema. Sou incompleta, um ser com um buraco por dentro, significo alguma coisa, não sei o quê, sou tola, através de uma lâmina de vidro olho para a escuridão que é completa, que vive em si mesma, morcegos, arbustos, predadores, tudo que não me diz respeito, que é cega, que não significa, simplesmente é. [p. 16]


Talvez nessas longas reflexões sobre a natureza das coisas, recorrentes elocubrações mentais que não têm fim, talvez aqui resida uma nota de fragilidade na estrutura, porque a mim pareceu que essa personagem não poderia ter o nível de elaboração ou complexidade filosófica que o autor lhe empresta (diferentemente do Riobaldo, aqui senti a estrutura meio falsa).
Dá a impressão de que há alguém 'soprando' aquela coisa toda para ela dizer, pensar. Mesmo assim, há uma força descomunal em tudo que faz, há uma obsessão - a obsessão dos loucos - a guiá-la para seu inelutável destino trágico.

Aqui também o estupro é um acontecimento fundador. A personagem não apenas habita uma fazenda distante do 'mundo civilizado', como tem sua solidão de mulher acentuada por traços físicos desagradáveis e porque não há mesmo com quem interagir naquele fim de mundo. A violência sobre ela aprofunda uma espécie de loucura que já a habita desde o início, e ela radicaliza o jogo entre opressor e oprimido: passa a servir sexualmente o empregado negro que a viola e, mais ainda, muda as relações de domínio até então existentes.

Quase tudo que acontece gira em torno desse pai, que ela deseja e odeia intensamente, origem dos delírios e das perquirições que persegue ao longo da narrativa. Não se trata de compreender por que ela precisou matar o pai, mas grande parte do que se lê constitui a voz assustadora desse ser, que não por acaso é uma mulher, buscando compreender o que faz ali, como chegou àquele estado de deterioração humana, como se tornou quase um bicho, como sobreviver ao inteiramente só.

Ela então começa a ouvir vozes, e depois começa a ver fantasmas, e eles são, afinal, tudo que lhe resta. Pode sentar com o pai (morto) e tomar conta dele, cuidá-lo como sempre fora seu trabalho. E caminhar lentamente rumo a uma certa pacificação, com perguntas para as quais aceita não ter respostas.

Dois momentos do pai:

Quando Hendrik está fora, executando algum miserável trabalho no calor da tarde, meu pai visita sua esposa. Cavalga até a porta do casebre e, sem desmontar, fica esperando até que a menina saia e se ponha à sua frente, piscando ao sol. Ele lhe fala. Ela se mostra acanhada. Oculta o rosto. Ele tenta acalmá-la, talvez chegue a sorrir, mas não consigo ver. Inclina-se e lhe dá um embrulho de papel pardo. São balas, corações e diamantes com lemas escritos. Ela fica segurando o pacote, ele se vai. [p. 46].


Meu pai está sentado, se é que se pode chamar isso de sentar-se, em sua antiga poltrona de couro, a brisa fresca na pele. Seus olhos não vêem, são duas paredes vidradas azuis, orladas de rosa. Nada ouve, só o que se passa dentro dele, a menos que eu tenha estado o tempo todo equivocada e ele me ouça tagarelar, embora prefira não me fazer caso. Já tomou ar por hoje, é hora de levá-lo para dentro e descansar um pouco. [p. 178]

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J. M. Coetzee. No coração do país. Tradução Luiz A. de Araujo. São Paulo: Círculo do Livro, 1997.


quinta-feira, 11 de junho de 2009

O mesmo filme

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Eu poderia ver A partida sob outra perspectiva, a da vida que pulsa ali também, e poderia dizer que o protagonista encontra nas lides com os defuntos um novo trabalho, com o qual ele vai aos poucos se encontrando, e que vai aos poucos dando um novo sentido a sua vida.

Se inicialmente ele recusa aquela função, por mal vista pela comunidade - e depois mais radicalmente desprezada pela mulher -, aos poucos ele vai percebendo a beleza que há em todos os pequenos sinais de apreço que o defunto merece receber em sua hora final, e ele vai gostando do que faz, vai-se aperfeiçoando nos detalhes, nos cuidados, vai, de certo modo, honrando aquele que parte, oferecendo-lhe uma última nota de dignidade. E aos poucos aqueles que estão a sua volta também se modificam, também vêem o que há de belo e necessário no trabalho do homem.

(Tudo isso é comovente, mas às vezes um pouco arrastado demais).

E se a vida está presente como resposta ao momento final de cada um de nós, a vida que insiste em achar saídas para a beleza, claro (por exemplo, a música do violoncelo, a liberdade encenada pelo homem e seu instrumento no descampado verde e imenso a sua volta), é desse momento que o filme trata, é desse gesto de torná-la - a morte - uma cerimônia que embeleza os que vão, e engrandece os que ficam.


(PS. A esta versão se pode assistir comendo um sacão de pipoca, discretamente; na versão abaixo será melhor segurar as pontas).

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domingo, 7 de junho de 2009

A partida


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Li em algum lugar que A partida aborda a morte mas quer mesmo falar é da vida. Sinto discordar, mas para mim foi o filme mais barra pesada sobre a morte que já vi. De um modo suave, poético, é verdade, mas é da morte que ele trata todo o tempo, da morte morte, aquela dos defuntos sendo cuidados, do corpo sendo cremado, dos rituais de vestir, limpar, velar, cuidar do morto, com sua cara de morto, seu jeito de morto, sua morte morte.


Em alguns momentos fiquei incomodada, tudo é bem lento, bem oriental, mas no terço final do filme (que é longo, dura mais de duas horas) a coisa fica impossível e a gente chora mesmo, porque o protagonista vai enfim rever o pai, que o havia abandonado quando ele era criança. Precisa dizer em que circunstâncias isso acontece? É de cortar o coração, isso para ficar no espírito um tanto sentimental dessa parte final.

Enfim, se alguém quer travar uma conversa em bom estilo com essa senhora, que está longe de ser aqui a 'indesejada das gentes', esse é o filme. E o ator que faz o protagonista é qualquer coisa, bom demais, muito expressivo, meigo, belo e sensível. Ah, e toca um senhor violoncelo.

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sexta-feira, 5 de junho de 2009

A mulher invisível

Gostei de ter visto A mulher invisível, mas há um grande problema no filme que diz respeito ao tom narrativo. Ele não é inteiramente comédia, mas sua vocação é para ser completamente comédia. Ou seja, quando os personagens se entregam àquela maluquice da relação com a mulher invisível o filme fica engraçado, mas quando advém um certo ar de drama, a coisa desanda. 

Tanto a vocação do filme é a comédia que a parca aparição da Fernandinha Torres dá uma levantada geral no humor, ela está impagável nos poucos momentos em que fica na tela.

O gracinha do Selton Mello tem altos e baixos, bem no estilo das várias vozes que ele usa e abusa no filme - uma espécie de gag de voz fina e grossa, além dos tiques de sons que explora com algum resultado de humor. Acho que ele percebe que precisa explorar mais o humor do que o drama que o diretor impõe, não sei.

De todo modo, não sou indicada para falar do Selton porque sou tiete, então vejo qualidades até nos defeitos dele - e aqui tem alguns defeitos, sim, sobretudo nas cenas de romance que ele faz sozinho, como se estivesse com a Luana, que me parecem um tanto exageradas.

Ah, e a Luana está belíííísssima - é o máximo que posso dizer da atuação dela que, aliás, é para ser isso mesmo: a gostosona do pedaço.


A trilha sonora é muito boa, com minha ídola de juventude Janis Joplin abrindo e fechando o filme. Enfim, se não houver grandes expectativas, dá para ver, arejar a cabeça e se divertir.

Santayana again


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Parece que vou ficando fã do Mauro Santayana, talvez porque tenho a chance de lê-lo no JB que eu assino nos fins de semana, mas não apenas por isso, porque no mesmo jornal há textos do Vilas-Boas Correa, por exemplo, que eu acho chatíssimos.

De todo modo, ouvi o discurso do Obama na CNN (coisa impressionante é que eu entendo quase tudo que ele fala, a dicção é ótima, o mesmo não acontece com os comentadores e jornalistas da rede) e achei bom demais, uma fala tocante e corajosa, com um sopro de vigor semelhante ao discurso da vitória.

Sim, me declaro fã do Obama, que fazer se o homem é o cara.


E reproduzo o texto do Mauro porque também achei muito bom (ele só deixou de mencionar a defesa que Obama fez dos direitos incondicionais de a mulher estudar, sob qualquer tipo de regime. Foi bonito de ouvir, emocionante também).

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O discurso do Cairo

http://www.jblog.com.br/politica.php 05/06/2009 - 00:05 Enviado por: Mauro Santayana


Pouco importa o que virá depois, porque nenhum homem, nenhum povo, tem em suas mãos as rédeas da História. A rota do homem na Eternidade é semelhante às estradas nos mapas antigos, nos quais as cidades eram marcadas sucessivamente em uma linha reta, com os dias de jornada entre uma e outra. Não podemos retificar o caminho da civilização, fazendo-o derivar para mais ao Norte ou mais ao Sul do tempo transcorrido. Só podemos nos situar no ponto em que nos encontramos, neste dia, nesta hora, neste minuto. O discurso de Obama, no Cairo, foi para este dia, esta hora, este minuto. Mas este dia é a soma dos milhões de dias passados. Em razão disso, o presidente foi lá, nas marcas da rota do mapa antigo, para explicar que somos caminhantes de inúteis e ilusórias intolerâncias.

Obama falou aos muçulmanos, na Universidade do Cairo, que segue a tradição de um dos centros de cultura mais antigos do mundo, a universidade islâmica de Al Azhar, criada no século 10. O discurso de Obama foi importante para mostrar o que tem sido a banalidade da insensatez na história dos povos, e o seu interesse político legítimo se situou no falso confronto entre o islã e a cultura judaico-cristã. Ele poderia ter sido mais claro, na contrição que nos cabe, e se ter referido às Cruzadas e à expedição de Juan de Áustria contra os otomanos, vencidos em Lepanto (1571) pelas forças aliadas da Espanha de Filipe II, da República de Veneza e do papa Pio V.

O exame da História – e nisso Obama foi preciso – mostra que os muçulmanos sempre foram muito mais tolerantes diante de outras crenças do que os cristãos. Ele se referiu à Andaluzia, sob o Califato de Córdoba, que, durante sete séculos, não conheceu perseguição contra os cristãos, nem contra os judeus. As três culturas conviveram bem, como atesta, entre outros documentos, as conversações interreligiosas (Libre del Gentil e dels três Savis, de Ramon Lull, no século 13) entre muçulmanos, cristãos e judeus, quando concluem que têm o mesmo Deus.

As palavras do presidente, não obstante as necessárias e fundadas referências históricas, são ditadas pelos desafios da atualidade. Ele foi corajoso, ao dizer que a guerra contra o Iraque não nasceu da necessidade, mas foi escolha política equivocada. Foi ainda mais firme, quando assegurou que “nenhum sistema de governo pode ou deve ser imposto sobre uma nação, por qualquer outra”. Mesmo amenizando o discurso – ao afirmar que os americanos têm relações mais fáceis com os países democráticos de modelo ocidental – trata-se de virada histórica na política externa dos Estados Unidos.

Embora cercado de todos os cuidados, Obama deixou claro que, sob seu governo, o Estado de Israel não contará com a carta branca de Washington para fazer o que desejar. Defendeu, de forma destacada, o direito do povo palestino à autodeterminação, dentro de fronteiras estatais seguras. Condenou, sem qualquer concessão, a existência dos assentamentos judaicos nos territórios atribuídos aos palestinos em 1948, bem como outras formas de violência sobre as populações da Cisjordânia e de Gaza. Não poderia deixar de reclamar também o reconhecimento do Estado de Israel pelos palestinos, mas não conseguiu ocultar a sua simpatia pelos menos poderosos, massacrados periodicamente pelo Exército de Israel.

Outro ponto importante foi o reconhecimento de que Washington derrubara um governo eleito democraticamente no Irã. Ele se referia ao golpe patrocinado pela CIA e pelos serviços britânicos, em 1953, contra Mohammed Mossadegh, que nacionalizara o petróleo e obrigara o xá Reza Pahlevi, aliado das empresas estrangeiras, a buscar o exílio.

Ontem mesmo, a direita norte-americana, acampada no Partido Republicano, insurgiu-se violentamente contra o discurso do presidente. O deputado republicano John Boehner, líder da minoria, disse que o pronunciamento do presidente revelava “fraqueza” dos Estados Unidos. Ao contrário: Obama confirmou velho adágio político, o de que só os fortes podem parecer fracos.

O discurso do Cairo foi o mais importante pronunciamento de um presidente dos Estados Unidos no exterior. A História, se ele conseguir torná-lo realidade, poderá registrá-lo como registrou o de Lincoln, em Gettysburg, em 19 de novembro de 1863, em que o estadista curvou-se diante de todos os mortos de uma guerra que a política não conseguira evitar. O Cairo está na linha histórica da velha cidade da Pensilvânia.